Um Portugal raro, num tempo de sombras

No final da década de 1960, o fotógrafo Neal Slavin conseguiu um retrato precioso de um Portugal em decadência de regime. Quase 50 anos depois, regressa para fechar aquele que foi o trabalho mais importante da sua vida.

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O fotógrafo americano esteve em Portugal cerca de um ano, entre 1967 e 1968 FOTO: NEAL Slavin
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Bolseiro da Fullbright, Neal Slavin foi um dos poucos fotógrafos estrangeiros a captar o Portugal do Estado Novo ao longo de tanto tempo FOTO: NEAL Slavin
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Foram as pessoas e o ambiente soturno e pesado do país, em plena decadência da liderança de Salazar que mais lhe despertaram os sentidos FOTO: NEAL Slavin
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Quando Neal Slavin puxa da carteira para trocar cartões-de-visita, saltam à vista as imagens que tem impressas numa das faces desses rectângulos de utilidade e cortesia: são fotografias tiradas em Portugal. De um lado, o nome, o email, a morada do site e o número de telefone. Do outro, uma rapariga numa janela em forma de arco canopial dentro do Portugal dos Pequenitos, Coimbra. Ou então, um homem austero e aprumado à porta da loja número 10, onde se amontoa quinquilharia e mobiliário, em Évora. E isto quer dizer que a extensa série de imagens que o fotógrafo norte-americano captou em Portugal durante um ano, entre 1967 e 1968, quando tinha 27 anos, lhe deixou marcas tão profundas que decidiu fazer-se acompanhar por elas neste gesto de quotidiano mais corriqueiro, como se já fossem parte de si, da sua identidade, da sua morada e do seu número de telefone nova-iorquino.

De certa forma, Neal Slavin nunca deu por terminado este trabalho. E, passados quase 50 anos, percebeu que estava na altura de o resolver. Escolheu a linguagem do filme documental e a fotografia a cores, uma nova série que, desde meados de Setembro deste ano, tem vindo a captar em geografias variadas, de norte a sul do país.  

No início deste ano, enquanto remexia no arquivo, Slavin encontrou centenas de provas vintage de fotografias tiradas durante esse ano em que gozou de uma bolsa do Programa Fulbright. Foi ter com o seu galerista para lhas mostrar e este lançou-lhe o desafio: “Porque não fazes aqui um filme?” Slavin: “De que é estás a falar?” Galerista: “Só tens de regressar e falar com as pessoas sobre este tempo.” E o fotógrafo regressou. Não vinha a Portugal desde 1990, altura em que a Casa de Serralves recebeu uma exposição sua, comissariada por António Sena, por ocasião da FotoPorto – Bienal de Fotografia. Agora, quer fazer um filme e captar mais fotografias para fechar o mais longo capítulo da sua obra, que passou (e passa) sobretudo por fotografar pessoas, e por tentar perceber as razões pelas quais se juntam e como isso pode ajudar a compreender os tempos, as culturas e a vida em sociedade.

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FOTOGRAFIA: NEAL Slavin

E este filme será um trabalho de comparação, do tipo antes e depois? “Não. Regresso porque quero olhar para as pessoas de hoje e ouvir o que têm a dizer sobre esse período da História de Portugal. Interessa-me saber o que os mais novos sentem em relação a esse tempo.” O trabalho de 1968 será o ponto de partida e também surgirá no filme, mas haverá muito material captado por estes dias. “É como se as primeiras fotografias fossem o fado e as segundas a música contemporânea, aquilo que Portugal ouve hoje.”

[Filmagens e fotografia a cores em Lisboa no escritório/loja de Nuno Gama: Neal Slavin está estarrecido com o vídeo do YouTube que o estilista Nuno Gama, de cócaras, lhe mostra num monitor Mac de muitas polegadas. É de um dos seus últimos desfiles onde os modelos, para além da roupa de desenho, levam pratos para, no final, partir no chão causando estardalhaço e agitação na plateia. Slavin está atento a tudo e depois do lado cénico da loiça partida vai repetindo: “Amazing! Amazing!” Nuno é um bom anfitrião. Mostra à entourage de Slavin coisas boas e bonitas que já fez ao longo de 30 anos na moda. Mas Slavin está impaciente e quer tirar-lhe retratos, aproveitando a luz de fim da manhã que entra por um janelão. Nuno encosta o ombro a uma parede e fala dos seus cães whippet. A dada altura, quando a Leica digital já está a pleno vapor, Nuno solta uma gargalhada que estremece o fotógrafo, que pede mais riso (“Façam-no rir outra vez! Adoro!”) e, depois, pede ainda outra postura de mãos, desta vez a tocar o rosto.]

Slavin respeita o passado, mas não gosta de remexer demasiado nele. “É preciso avançar. Se este projecto tivesse como objectivo dar esse passo atrás, nunca o faria. Quero avançar. Tudo começou com uma lógica de continuação. O documentário é uma coisa diferente do que já fiz até aqui. Não é sobre o passado, é sobre o presente e o futuro.”

Já agora, um salto ao passado. Quando a bolsa da Fulbright lhe bateu à porta, em 1967, Neal Slavin pouco ou nada sabia sobre Portugal. “Fiquei intrigado. Havia este pequeno país de que ninguém falava.” O projecto com que se candidatou estava relacionado com um trabalho fotográfico sobre ruínas da antiguidade clássica, mas não especificava um destino. A Fulbright propôs-lhe Portugal. Slavin hesitou, mas depois de uma semana a estudar o país descobriu, com espanto, todo um passado ligado ao Império Romano que o fez desembarcar em Lisboa, na antiga Olisipo. Ainda começou a fotografar ruínas (foi a Conímbriga e a outros locais com achados arqueológicos importantes), mas foram as pessoas e o ambiente soturno e pesado do país, em plena decadência da liderança de Salazar (haveria de sair em Setembro de 1968), que mais lhe despertaram os sentidos. “Por lei, não era suposto fazer isto. Nessa altura não podia fotografar comboios, ruas, pessoas. A pobreza que havia era inacreditável.”

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FOTOGRAFIA: NEAL Slavin
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Durante a longa road trip que fez por todo país, Slavin captou cerca de 12 mil fotografias FOTOGRAFIA: NEAL Slavin

Durante um ano, o fotógrafo contrariou as regras e conseguiu movimentar-se no país registando tudo o que quis. Dessa longa road trip resultaram cerca de 12 mil fotogramas. Quando chegou a Nova Iorque, imprimiu cerca de 200 imagens e percebeu de imediato que este trabalho tinha ofuscado as ruínas arqueológicas do Império Romano da Lusitânia. E a Fulbright não protestou? “Não, adoraram.”

[No escritório de Nuno Gama agora é tempo de arrumar charriots de casacos e camisas e mover um pilha de caixas de sapatos para preparar a filmagem de uma conversa mais formal. Nuno senta-se numa cadeira baixa de pele de vaca. O fundo é dominado por uma fotografia gigante colada à parede. Nela vemos do alto um modelo solitário a caminhar por uma passerelle de luxo: a Praça do Comércio, mesmo em frente do arco da Rua Augusta. Aquele gigantismo todo faz com que este homem pareça caminhar para nós, como se estivesse sempre a entrar no escritório, mesmo depois do fim do desfile. Nuno começa a responder às perguntas de Neal, que o deixa falar sem interrupções.]

Apesar de alguma experiência como fotógrafo de rua, Slavin nunca tinha fotografado pessoas de uma maneira tão estruturada e procurando transmitir sentimentos tão fortes, como a melancolia, o desânimo e o desespero. Encontrar um rumo nesse Portugal de 68 foi difícil. “Lembro-me de ter chegado e de começar a vaguear pelas ruas, mas não conseguia perceber o que fotografar. Nos primeiros dias continuei a tentar e não aconteceu nada. Decidi – não sei bem porquê – pôr a câmara de lado. Andei pelas ruas e tentei apenas absorver o ambiente para perceber o que tinha sentido nos dias anteriores (não sabia nada sobre ‘saudade’ e da primeira vez que ouvi fado odiei). Notei que havia uma atmosfera muito triste e se tivesse de pôr tudo o que vi numa palavra escolheria ‘desespero’.”

Cerca de um mês depois, o fotógrafo americano pegou outra vez na câmara. “Não posso dizer que tenha sido fácil, mas tive um pressentimento que me ajudou a escolher o que fotografar. Era algo...” Palpável? “Sim, é a forma acertada de descrever essa revelação. Podia sentir o que fazer, podia tocar-lhe. Lembro-me do cheiro das queimadas de campos para cultivo, do fumo das castanhas e das sardinhas. Para onde quer que apontasse a minha câmara, conseguia boas fotografias. Não estou a dizer que sou muito bom, mas estava a conseguir fazer imagens desse sentimento que se tinha entranhado em mim.”

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A ideia inicial era fotografar ruínas do Império Romano em Portugal. As pessoas sobrepuseram-se FOTOGRAFIA: NEAL Slavin

Slavin admira Robert Frank, imigrante suíço nos EUA. E gosta de citar o exemplo do mítico The Americans (1958) para sublinhar as maravilhas que um olhar de fora podem trazer a um lugar e a um povo. “Gosto de pensar que a partir de um par de olhos frescos se consegue o distanciamento suficiente para ter um visão mais eficaz. Os fotógrafos têm de se separar de alguma maneira do sujeito e, ao mesmo tempo, manter uma ligação mínima com ele para conseguirem entrar nos assuntos e ir aonde os instintos nos levam.”

O instinto fez com que Slavin se metesse num carro, sozinho, a conduzir por todo o país, cidade e campo, litoral e interior. Ficava uma ou duas semanas fora e regressava a Lisboa. “Foi uma experiência fantástica, como deve imaginar.” O trabalho de Portugal foi de tal maneira marcante que toda a obra posterior do fotógrafo americano encontrou nele todas as suas raízes: o interesse pelo retrato de pose de olhar directo, iluminações e reflexos cheios de ambiguidade, composições inesperadas que assimilam o fortuito, procura de marcas simbólicas e traços da cultura local. “São as fotografias fundadoras da minha carreira. Sou um fotógrafo de rua, adoro este género, mas depois do trabalho de Portugal nunca mais soube exactamente por onde ir.”

Assim que chegou aos EUA, Slavin começou a procurar uma editora para dar vida aos milhares imagens que trouxe na bagagem. “Toda a gente gostava, mas não foi fácil publicar.” Foi bater à porta da novíssima Lustrum Press, do fotógrafo Ralph Gibson, que decide avançar com o livro Portugal, em 1971, ano em que, na mesma editora, foi publicado o seminal Tulsa, de Larry Clark. “Ficaram impressionados e tiveram todo o cuidado para não fazerem nada que prejudicasse as imagens.” O livro com a chancela da Lustrum (que viria a tornar-se uma das mais relevantes editoras independentes de fotolivros dos anos 70) teve impacto no meio fotográfico dos EUA, mas fora de portas, Portugal incluído, não foi notado nem referido. Slavin acha o livro o suporte mais “democrático” e aquele onde os fotógrafos podem ter “o melhor resultado final” do seu trabalho. “É a experiência fotográfica mais importante que podemos ter.”

[Nesta altura, a luz que entra no escritório/atelier de Nuno já é muito forte e faz brilhar as placas metálicas de um vestido icónico pendurado num manequim. É um brilho que encandeia, mas o set está resguardado da violência do sol. O fotógrafo vai indagando o estilista sobre o que representam para si os tempos em que Salazar era rei. Nuno era novo, mas lembra-se de perguntar porque é que tantas pessoas andavam de preto. Neal vai disparando perguntas. O sonho e a poesia de Sebastião de Gama, tio de Nuno, entram na conversa. Assim como o drama por que passou o estilista por causa dos incêndios que lhe queimaram as lojas. E há também uma certeza quase absoluta: Nuno jura que sim, que tem o livro Portugal algures no meio dos caixotes que herdou da biblioteca do pai. Aquela capa com a fotografia do Portugal dos Pequenitos, diz, é difícil de esquecer. Se o encontrar, manda uma fotografia por mail como prova. E mandará também uma T-shirt preta com o rosto estilizado de Amália como a que tem vestida, que encantou o fotógrafo, que, afinal, passou a gostar de fado.]

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FOTOGRAFIA: NEAL Slavin

Para além de rostos famosos e talentos reconhecidos, Neal Slavin quer voltar a fotografar pessoas anónimas e realidades (para ele) novas em Portugal, como a presença de imigrantes das antigas colónias, um quotidiano urbano que em 1968 praticamente não existia. E nessa época, a polícia política nunca o abordou? “Não.” Excepto uma vez quando decidiu ir fotografar uma manifestação em frente da embaixada norte-americana em Lisboa contra a Guerra do Vietname. “Alguém veio ter comigo, agarrou-me a câmara, abriu o tambor (sabia bem como o fazer), e destruiu o rolo dizendo ‘não pode fotografar’. Foi um momento assustador.” O facto de não ter havido outros episódios como este e a relativa invisibilidade e liberdade de movimentos de que gozou em 1967/68 tornam Neal Slavin um dos poucos estrangeiros a fotografar o Portugal do Estado Novo de maneira extensiva e sem filtros.

Depois da publicação do livro nos EUA, o trabalho entrou em modo adormecimento. Até à chegada de uma carta do professor e crítico do Expresso Jorge Calado, em 1989, a perguntar a Slavin se estaria interessado em vender fotografias da série portuguesa para integrar na Colecção Pública de Fotografia, que desde 1988 começara a ser formada. “Fiquei muito honrado. Disse-lhes: ‘digam-me quantas querem comprar e eu dou-vos mais do que aquelas que pedirem’.”

E assim foi: “Acho que queriam comprar umas 50 e dei as restantes. Eram todas impressões vintage, mas achei que Portugal devia tê-las.”

[No final das perguntas com palavras, Neal quer continuar a saber coisas sobre Nuno, agora outra vez com fotografias. “Só mais uma”, pede o fotógrafo. Slavin tenta isolar Nuno de tudo, menos de si próprio. Encosta-o a um espelho de pé alto num recanto e começa a disparar.]

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