A arte feita por mulheres é diferente?

A Bienal de São Paulo quis tornar as mulheres mais visíveis no mundo da arte. Convidou 47, será que isso faz dela uma bienal melhor?

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Pedro Ivo Trasferetti/Fundação Bienal de São Paulo

Com oito metros de altura, as torres de Lais Myrrha são a única obra verdadeiramente monumental desta Bienal de São Paulo, a grande exposição que durante três meses e até Dezembro ocupa o pavilhão Ciccillo Matarazzo, desenhado por Oscar Niemeyer na cidade brasileira. A artista, uma mineira que vive em São Paulo nascida em 1974, quer mostrar nesta obra intitulada Dois Pesos, Duas Medidas (2016) como a arquitectura moderna brasileira pouco incorporou das culturas indígenas na sua maneira de construir, apesar de uma ou outra referência no vocabulário formal.

São duas torres, exactamente iguais, uma feita de tijolos, betão, ferro e PVC, com as matérias-primas da arquitectura moderna, outra com palha, madeira e taipa, utilizando elementos usuais das construções indígenas, que têm a característica de serem biodegradáveis e não darem origem a ruínas. Se as medidas destas torres gémeas são iguais, o seu peso, como sugere o título, é bastante diferente pela natureza dos materiais.

Lais Myrrha ocupa o espaço nobre do edifício, com um triplo pé-direito, e é possível ir descobrindo esta obra impressionante à medida que se vai subindo pelas rampas de Niemeyer e espreitando dos mezaninos. Como as suas torres, a artista mede-se e rivaliza, de certa forma, com o ícone da arquitectura moderna brasileira para denunciar “como as construções indígenas e as cosmologias dos seus criadores são relegados a notas menores na história social e cultural brasileira”, escreve o antropólogo e ensaísta Fábio Zuker no catálogo da bienal.

No mesmo piso, a artista alemã Hito Steyerl, outra mulher, usou a voz, mais propriamente as letras das canções retiradas de uma compilação encontrada na Internet, para compor um hino da última década que reflecte um estado permanente entre euforia e violência. A instalação Hell, Yeah, We, Fuck, Die/Inferno, Sim, Nós, Foda, Morrer constrói em cimento, acrílico e luz uma síntese das cinco palavras mais usadas nos títulos das músicas em inglês.

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Vídeo Illusions de Grada Kilomba

O jornal brasileiro Folha de São Paulo usou este trabalho de Hito Steyerl para ilustrar um artigo intitulado Mensageiras do Apocalipse, sublinhando que a 32.ª edição da Bienal de São Paulo reúne a maior presença de mulheres da história. “O evento paulistano tem mais de metade do seu elenco formado por mulheres, o maior número de todos os tempos. E elas têm os olhos vidrados num mundo em colapso, alvo de catástrofes insuspeitadas que ganham vulto no horizonte.” São 47 mulheres num total de 81 artistas e colectivos.

Ao curador principal da bienal, o alemão Jochen Volz, perguntámos se o tema da bienal, “Incerteza Viva”, com um forte pendor ambiental, torna as mulheres artistas “mensageiras” privilegiadas ou é apenas uma coincidência e a maioria feminina surgiu por outra via? “Acho que são dois caminhos”, responde. “Quando a gente viaja e olha para colecções, para os museus ou para o que está a ser resenhado em revistas e em jornais, sempre vai ter uma maioria de artistas homens. Então tem que virar uma disciplina: não vamos pelo óbvio.” Houve, portanto, uma tentativa de quota? “De quota ou de, pelo menos, cultivar esta disciplina: não vamos pela superfície, pelo que está nos museus, vamos descobrir quem são as artistas mulheres que trabalham sobre um certo tema.”

Mas se foi uma metodologia, Jochen Volz também acredita que as narrativas não dominantes que a bienal de certa forma investiga facilitaram a selecção de mulheres: “São outras formas de conhecimento, uma convivência entre conhecimento científico e espiritual, uma pesquisa cosmológica, de inícios e fins e processos. Isso tudo são temas que talvez as artistas mulheres trabalhem até de uma forma mais interessante do que os artistas homens. Então, pela pesquisa e pelos temas, a gente também chegou a este resultado de uma forma muito natural.”

Entre os curadores há igualmente uma maioria de mulheres (três mulheres e dois homens): a sul-africana Gabi Ngcobo, a brasileira Júlia Rebouças, o dinamarquês Lars Bang Larsen e a mexicana Sofía Olascoaga. E o mesmo acontece entre os cinco artistas portugueses seleccionados (quatro mulheres e um homem): Lourdes Castro (1930, Funchal; vive na ilha da Madeira), Grada Kilomba (1968, Lisboa; vive em Berlim) Carla Filipe (1973, Aveiro; vive no Porto), Priscila Fernandes (1981, Coimbra; vive em Roterdão) e Gabriel Abrantes (1984, Chapel Hill, EUA; vive em Lisboa).

À excepção de um nome histórico como Lourdes de Castro, todos os portugueses apresentam obras inéditas e estiveram em São Paulo para a inauguração da bienal. 

Às três artistas mulheres portuguesas que estiveram em São Paulo perguntámos se a presença de uma maioria feminina faz da bienal uma exposição diferente. “Sim, é muito encorajador que exista uma grande representação de artistas mulheres na bienal, especialmente porque a exposição não lida necessariamente com discursos feministas nas obras que apresenta”, diz Priscila Fernandes, que trouxe à bienal uma instalação que reflecte sobre a ambiguidade com que a sociedade actual entende o lazer. Parte da obra foi filmada no Parque Ibirapuera e intitula-se Gozolândia. “É muito encorajador que as mulheres artistas estejam a ser olhadas como qualquer artista pela sua obra e não representando uma minoria ou um movimento.”

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Além de vídeo, a obra de Caycedo inclui a recolha de objectos, como redes de pesca trazidas pela artista para a bienal, e uma grande fotografia de satélite que ocupa todo o topo do edifício no segundo andar Ilana Bar/Estúdio Garagem/Fundação Bienal de São Paulo.
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NAGEL DRAXLER. CAROLINA CAYCEDO/CORTESIA DA ARTISTA e Pedro Ivo Trasferetti/Fundação Bienal de São Paulo

Carla Filipe, com uma obra que toma a forma de uma horta com plantas alimentícias não convencionais, e ocupa uma extensa área no exterior do pavilhão, responde que uma maioria de mulheres não é a razão principal para a bienal “ser tão particular”, mas antes a temática dos curadores e a forma como os artistas seleccionados trabalham. “Esta bienal foi muito contaminada pela personalidade de Jochen Volz e da equipa curatorial escolhida por ele, sempre de uma leveza incrível, abertos à discussão e de uma profunda organização.”

A presença de mulheres é uma coisa “tão natural, ou deveria ser natural”, que foi só através da imprensa que Carla Filipe percebeu que havia mais artistas mulheres. “Insistir nessa ideia [da diferença por haver mais mulheres] é desviarmo-nos do tema proposto para se tornar uma exposição feminista. Porque não se trata de uma exposição de género, mas de uma pluralidade de abordagens sobre este período de incerteza que atravessamos.”

As questões de género não passam directamente pelo trabalho de Priscila Fernandes e Carla Filipe. “Não de forma directa, embora sempre me tenham interessado questões de identidade e às vezes são mais visíveis nuns trabalhos do que outros”, explica Priscila Fernandes. Já Carla Filipe explica que as questões de género já estiveram mais presentes no início do seu percurso artístico: “Mas não quero ficar presa a isso. Existem tantas questões que me interessam trabalhar que não vai ser o machismo, que considero que voltou a estar mais forte na sociedade, que vai limitar a minha liberdade de escolha dos temas a abordar. Quero sentir-me livre.”

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A equipa de curadores: a brasileira Júlia Rebouças, o alemão Jochen Volz, a sul-africana Gabi Ngcobo, o dinamarquês Lars Bang Larsen e a mexicana Sofía Olascoaga Sofia Colucci/Educativo Bienal

Mas se Carla Filipe voltar ao tema, é mais provável que o faça através do machismo. “Preocupa-me o facto de estarmos no século XXI e parece que tudo está a regredir: temos machistas disfarçados de cultura, temos machistas gays, temos machistas mulheres. E atenção que a mulher negra ainda tem um status pouco respeitado, quantas mulheres artistas negras existem?”

Pessoalmente, Priscila Fernandes ainda se sente discriminada por ser mulher. “Não é uma discriminação directa, ou muito palpável, mas uma espécie de névoa. Especialmente quando estou a produzir obras em oficinas, em serralharias, carpintarias, etc., é muito difícil conseguir alguma seriedade e confiança sem ser gozada no início.” Mas o que a afecta ainda mais é a discriminação por ser artista, comum a homens e mulheres: “A falta de remunerações quando faço exposições ou comissões, porque nem sempre as instituições oferecem remuneração pelos serviços que prestamos, e isso é também muito grave.”

Carla Filipe diz que “uma das grandes alegrias desta bienal” foi os curadores terem convidado a portuguesa Grada Kilomba, uma artista quase desconhecida em Portugal mas que circula nos meios artísticos internacionais com um trabalho sobre a descolonização do discurso. Um convite “fantástico” feito a alguém que reflecte “sobre colonialismo, género e racismo, algo antes só trabalhado por artistas brancos”.

Que mulheres, que homens

Para Grada Kilomba, “é absolutamente importante” esta ser uma bienal que teve mais mulheres do que homens presentes. “Mas a questão de género é mais complexa do que se pensa. Nós temos de pensar [que são precisas] mais mulheres, [mas também] que mulheres? E também que homens é que têm acesso a estes espaços? As questões do pós-colonialismo, assim como as questões da sexualidade, têm sido completamente esquecidas neste discurso feminista.”

Durante a visita guiada que fez à bienal com Jochen Volz, a directora do Museu de Serralves, a britânica Suzanne Cotter, tal como Carla Filipe, também não teve a percepção de que a exposição era diferente ou melhor porque tinha mais artistas mulheres. “Quando vejo uma exposição, estou a olhar para a qualidade do trabalho e não a julgá-lo através do sexo dos artistas. É verdade que noto quando uma exposição é predominantemente masculina, particularmente nas exposições internacionais de grande escala como a Bienal de São Paulo. Neste caso não notei, por isso penso que é uma coisa positiva, senti-o como perfeitamente normal. Mas é verdade que há muitos trabalhos bons, de muitos artistas bons, que por acaso são mulheres.”

Para a directora, desde que chegou a Serralves em 2013, tem sido uma preocupação mostrar o trabalho de mulheres artistas. “Faz parte do meu pensamento curatorial. Previamente, sempre olhei para o trabalho das mulheres artistas não a tentar ser politicamente correcta mas, ao contrário, porque sou naturalmente atraída por esse trabalho.” E, como Jochen Volz, sempre esteve consciente da necessidade de enfrentar um desequilíbrio histórico na programação das instituições culturais que tem favorecido os artistas homens.

Expandir o cânone

A presença de artistas mulheres tornou-se muito mais comum nas exposições. “Já foi ganho muito terreno”, afirma Cotter, embora ao nível do mercado ainda haja “uma proporção de artistas mulheres muito pequena a alcançar valores [de vendas] semelhantes aos dos homens”. “Se institucionalmente ainda temos muito a aprender, devemos olhar para os artistas e não para o sexo. Toda a artista que é mulher não quer ser exposta porque é mulher, mas porque é artista. Por isso, trata-se de respeitar o estatuto do artista.”

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A instalação Hell, Yeah, We, Fuck, Die, de Hito Steyerl Pedro Ivo Trasferetti/Fundação Bienal de São Paulo
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Pedro Ivo Trasferetti/Fundação Bienal de São Paulo

O sociólogo português Boaventura Sousa Santos, que no catálogo escreve um texto dedicado às várias incertezas que enfrentamos, explica que uma das razões que o atraíram para esta bienal foi o cuidado dos curadores em tornar o trabalho das mulheres mais visível no mundo da arte.

A ele, que ainda não viu a bienal, perguntámos porque é que entre as mulheres artistas — ou mesmo de outras profissões — parece haver um paradoxo entre um certo regozijo com uma maior visibilidade e o receio de que a pertença a uma minoria possa descaracterizar o seu trabalho. “Essa é uma das perguntas que fazemos na sociologia. Se uma discriminação positiva, uma acção afirmativa, pode de alguma maneira evoluir para aprofundar o gueto de alguém que assim não tem um contributo universal para a formação do cânone. Como entra como uma parte específica do cânone, ela não é universalizável. É uma discussão antiga e cada artista resolve da maneira que entende.”

Hoje na arte, como em todos os campos, Boaventura Sousa Santos, director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, identifica duas vertentes em relação à maneira como as próprias mulheres vêem a sua presença na sociedade. “Há a vertente das mulheres que não querem entrar pela ideia da diferença, mas pela da igualdade: são artistas, como qualquer outro, mas acontece que são mulheres, que trazem os seus temas e querem que sejam reconhecidos como temas de arte dentro do cânone. Há outra posição, das que pensam que a arte tem de sentir a presença das mulheres, pelos seus temas, pelas suas características próprias, mas em pé de igualdade — é uma diferença sem inferioridade. Penso que, no fundo, as duas posições acabam por se juntar. Porque o que é a diferença? É tornar a igualdade mais diversa.”

Tal como na filosofia, nas epistemologias feministas, de Sandra Harding, de Donna Haraway, de Judith Butler, o que elas vieram fazer, ou se propõem conseguir, é expandir o cânone. “Expandiram aquilo que é considerado legítimo e importante na arte e na filosofia.” O sociólogo português compreende, “perfeitamente”, o receio de muitas artistas em serem atiradas para o gueto das mulheres: “Isso seria trágico para elas e foi o que sucedeu durante muito tempo. Quando o movimento feminista começou a ser reconhecido, normalmente o que acontecia nas universidades era que tinham um departamento de estudos de mulheres, um cursozinho, e todo o currículo podia ser machista. Na arte, podíamos ter a mesma coisa: uma representação universal dominada pelos homens e depois uma secção das mulheres. É isto que elas não querem e obviamente fazem muito bem.”

Uma bienal com uma maioria de mulheres será “provavelmente diferente”, responde o sociólogo. “Com as mulheres a entrarem em força no mundo da arte, isso é apenas natural”, mas, “mais tarde ou mais cedo, as mulheres poderão deixar de trazer essa novidade que hoje atribuímos à presença delas”. Porque, continua Boaventura Sousa Santos, a arte “tem uma grande capacidade para absorver a diferença”. Além disso, acrescenta, “há muitos homens que estão hoje a produzir arte com referências a todos os ‘invisibilizados’, com manifestações surpreendentes para o próprio cânone”. E a intenção dos curadores, conclui, foi no sentido de renovar e de trazer outras vozes e outros temas. “Não tenho dúvidas disso.”

Gabriel Abrantes, no seu filme Os Humores Artificiais, aborda a dupla invisibilidade da mulher artista indígena. Numa mistura entre ficção e realidade, conta a história de Jô Yawalapiti, uma jovem que quer seguir a carreira de humorista em São Paulo e se apaixona por um robô, e foi rodado entre a Amazónia brasileira e a cidade de São Paulo. Tal como nas suas obras anteriores, também por aqui passam questões queer.

“Comoventes, poéticos e críticos”

Fazemos um intervalo para almoço nas questões de género, mas não nas questões ambientais, e vamos até ao restaurante-instalação de Jorge Menna Barreto, que ainda não está refeito do “tsunami” da inauguração, quando previram 300 almoços e apareceram milhares de pessoas. Em Restauro, o nome da peça, activo durante toda a bienal, “todo o cardápio é à base de plantas, para relacionar os nossos actos alimentares com os impactos ambientais”.

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Vídeo O Peixe, de Jonathas de Andrade e vídeo Gozolândia, de Priscila Fernandes Jonathas de Andrade/cortesia do artista. Priscila Fernandes/cortesia da artista

A indústria agro-pecuária, continua o artista, é responsável por 90% da devastação da Amazónia, por isso temos de entender “a nossa boca como uma escultura ambiental”. Restauro, “mais do que uma proposta de activismo político, é uma proposta de activismo alimentar”.

Se estava previsto, no início, a contribuição da horta de Carla Filipe, que incorpora plantas alimentícias não convencionais ou em vias de extinção, Jorge Menna Barreto explica que a grande escala de consumo no restaurante impossibilita o seu uso nos pratos aqui confeccionados: “A gente usaria toda a hortinha num dia. A relação é mais educativa e simbólica.” É dia de moqueca capixaba, uma receita do Espírito Santo, numa versão vegetariana de banana, e os clientes não paravam de aumentar.

Na conferência de imprensa de apresentação daquele que é considerado o evento de artes plásticas mais importante da América Latina, os curadores não fizeram as contas à presença das mulheres, mas apresentaram outros números: na sua 32.ª edição, a Bienal de São Paulo mostra 370 obras de 33 países, 70% delas encomendadas. E se é verdade que o tema da bienal, “Incerteza Viva”, é mais amplo do que a sua vertente ecológica, Jochen Volz, o curador principal do evento, faz remontar a origem do projecto à necessidade de enfrentar com urgência as alterações climáticas. Mas “Incerteza Viva” “é sentida em toda a parte”, disse Volz aos jornalistas nos primeiros dias de Setembro. “É uma condição que se infiltra nas nossas cabeças, nos nossos corpos, nas ruas, nos mercados, na floresta ou nos campos. É contagiante, gera imagens, sons, cheiros, instabilidade e também entusiasmo e curiosidade. Ela pode ser veiculada a realidades sociais e mentais, a métodos artísticos, à epistemologia e a uma imaginação rebelde.”

Jochen Volz, um alemão que reside há uma década no Brasil, é conhecido pelo seu trabalho de curadoria no Instituto Inhotim, apresentado como o maior museu ao ar livre da América Latina, onde recentemente se juntou à equipa a curadora portuguesa Marta Mestre. Essa experiência única num parque de 140 hectares é visível aqui, pois a bienal é pensada como um jardim, onde temas e ideias se interligam de uma forma orgânica, e expande-se para o Parque Ibirapuera, onde fica o pavilhão Ciccillo Matarazzo, na cidade de São Paulo.

“Se alguém se interrogasse porque é que temos artistas no mundo e qual é o seu papel, esta bienal é uma resposta”, diz a directora do Museu de Serralves, que esteve no pavilhão Matarazzo para ver o que vai mostrar em Portugal em 2017, uma vez que a bienal terá uma itinerância no Porto durante o Verão.

A relação com o parque será também explorada em Serralves, quando pela segunda vez na sua história a bienal for mostrada fora do Brasil, sendo a paragem no Porto a única que está marcada para a Europa. As datas exactas para 2017 ainda não foram anunciadas, mas este ano está prevista uma grande exposição em Serralves com inauguração em final de Junho ou início de Julho, como na última edição, e outras apresentações espalhadas pelo resto do ano.

A directora do museu portuense destaca a coerência e relevância do tema, “relacionado com ideias de ecologia, de comunidade, de visibilidade e representação, porque, claro, estamos no Brasil e há a questão indígena”. A exposição, afirma Suzanne Cotter, está muito bem feita intelectualmente: “Não é ostensiva e é muito generosa, porque deixa a arte falar.”

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Fotografia Hoje não Julgarei nada Que Ocorrer: Arquivo ektachrome, T-shirt Malcom X, Roma, de Lyle Aston Harris Lyle Ashton Harris Studio

Os trabalhos são, ao mesmo tempo, “comoventes, poéticos e críticos”. “O físico, o visual e o sensorial estão muito presentes. Em inglês usamos um termo, que é discursivo, quando o trabalho para que estamos a olhar é menos imediato, muito conceptual, e dependente muitas vezes de texto, obrigando a uma grande atenção. Diria que estes trabalhos falam por si próprios”, afirma Cotter.

O desastre de Mariana

No primeiro dia em que a bienal está aberta ao público, a visitante paulista Maria Voldeci de Souza está sentada em frente de um vídeo, que nos recomenda, enquanto vai adiantando o conteúdo. Conta ao PÚBLICO como chorou “o tempo todo” quando viu no ano passado uma reportagem na TV Bandeirantes sobre o desastre ambiental em Mariana, no estado de Minas Gerais, provocado pelo rompimento de uma represa de resíduos de exploração de minério de ferro, responsável pelo lançamento de 60 milhões de metros cúbicos de lama e metais pesados em 663 quilómetros de extensão do rio Doce, que desagua no oceano Atlântico.

“Revolta a gente ver estas coisas. Rompeu porque tudo é ganância. O ser humano não pensa no todo. Esse negócio de barragens... Revolta, revolta!”, continua esta mulher reformada em frente da obra da artista colombiana Carolina Caycedo, reflexão sobre os projectos de desenvolvimento que prometem progresso, como a construção de barragens, e o seu impacto nas comunidades ribeirinhas. O filme de Caycedo faz parte de uma série intitulada Be Dammed e na Bienal de São Paulo tem um capítulo chamado A Gente do Rio, sobre o desastre de Mariana, já rotulado o maior desastre socioambiental da história do Brasil.

Na capacidade comunicativa das obras da bienal, Suzanne Cotter reconhece, aliás, a forma como as coisas são feitas na América do Sul. “Na minha experiência relativamente limitada, uma vez que viajo para o Brasil desde que me mudei para Portugal, é muito claro que há um envolvimento muito grande, um esforço enorme para comunicar com audiências maiores quando comparado com a Europa e a América do Norte. Há uma noção muito grande de que a arte tem significado para comunidades diferentes e que pode ter um papel relevante social e politicamente.”

As obras de Caycedo, que incluem performances, desenhos, fotografias e vídeo, têm uma dimensão colectiva e falam sobre a resistência de grupos perante os sistemas de poder. Aqui, num vídeo de 30 minutos, Djanina da Silva Rocha, uma pescadora e mineira artesanal de Bento Rodrigues — onde a lama arrasou casas, escolas, plantações e fez desaparecer mais pessoas —, relata que agora já não consegue peneirar os gramas de ouro das areias do rio Doce que sustentam a família.

Ela, que pesca desde os dez anos, quando aprendeu com o pai, conta para a câmara a história de uma vida ribeirinha arrasada pelo desastre ambiental: “O meu pai vivia correndo o rio pescando e vinha com uma sacola só de peixinho. Aí, depois, eu vim para a cidade, casei e vim embora para aqui e continuei pescando. Trabalhava na roça e mesmo depois que parei eu vivia na beira do rio. Mesmo depois que se fez a Barragem de Candonga, a usina eléctrica, a gente ainda pegou muito peixe. E agora que veio esse desastre da Samarco [a empresa de mineração] acabou a pesca, acabou tudo. Nós queremos os nossos direitos do ouro e da pesca.”

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Pedro Ivo Trasferetti/Fundação Bienal de São Paulo
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Uma das refeições de Restauro, de Jorge Menna Barreto

Já o rio Paraná, conta outro homem com sotaque espanholado, “sobe e desce na hora que quer”. Está “completamente descontrolado” depois da construção da hidroeléctrica de Itaipu, erguida entre o Brasil e o Paraguai e considerada a segunda maior do mundo. A sua construção foi um dos catalisadores do aparecimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra no Brasil.

Além das comunidades indígenas, que há anos resistem à construção de mais barragens no Vale do Ribeira, no estado do Paraná, a artista filma comunidades caiçaras, resultado da miscigenação entre índios, negros e brancos, e comunidades quilombolas, herdeiras de escravos fugidos. Toda uma vida ribeirinha amaldiçoada pelas barragens construídas em nome do progresso, como lembra o título da série Be Dammed.

Esta obra de Caycedo inclui a recolha de objectos, como redes de pesca trazidas pela artista para a bienal, e uma grande fotografia de satélite que ocupa todo o topo do edifício no segundo andar. Ao longe, a fotografia gigante parece uma pintura abstracta em cores rosa, verde e branco e tornou-se um dos spots preferidos para fazer selfies na bienal. “Eu achei linda”, diz Patrícia Rocha, dentista. “É exclusiva e exemplar.” E o que representa? “Boa pergunta. A impressão que tenho é que é o mundo... Nossa, barragem de Mariana!!!???” Já Natália Bertóli, estudante de 16 anos, acha que “é um desenho muito fofo” e tenta enquadrar-se no meio da paisagem antes de uma amiga fazer clique no telemóvel.

Xamãs e a terra-mãe

Mesmo ao lado, estão as esculturas de terra da sul-africana Dineo Seshee Bopape, que constroem uma sequência perturbadora com o trabalho de Caycedo. São blocos de solo comprimido, decorados com cinzas, carvão vegetal, ervas restauradoras e de fertilidade, pele de carneiro e peças de cerâmica moldadas com a forma de um punho cerrado, gesto que evoca luta e insurreição e se tornou uma imagem de marca da artista.

Nesta obra intitulada De Facto Isso Pode Bem Ser — em Si, algumas marcas brancas sobre a terra escura e a presença de ervas medicinais lembram o xamanismo das culturas indígenas, mas a instalação site-specific com blocos de terra de vários tamanhos quer falar de contenção e deslocamento, de ocupação e hospedagem, dos excluídos da terra que não têm voz. 

Voltamos a Boaventura Sousa Santos e ao seu ensaio, que ao reflectir sobre a “incerteza da natureza” nos lembra que desde a expansão europeia do final do século XV “a natureza passou a ser considerada pelos europeus um recurso natural desprovido de valor intrínseco e por isso disponível sem condições nem limites para ser explorado pelos humanos”. Uma concepção nova na Europa, que não existia em nenhuma outra cultura do mundo, “tornou-se gradualmente dominante à medida que o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado se foram impondo em todo o mundo considerado moderno”.

Os povos indígenas, no entanto, nunca aceitaram essa ideia de natureza, uma vez que “viviam em tão íntima relação com a natureza que esta sequer lhes era exterior”. Poderão os humanos aprender a partilhar o que resta da casa que julgavam ser só sua e onde afinal habitavam por cedência generosa da terra-mãe?, pergunta o sociólogo.

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Vídeo Os Humores Artificiais, de Gabriel Abrantes Gabriel Abrantes/Fundação Serralves, Porto e ColecçÃo Intelcom de Arte ContemporáneA, Madrid

Esse tempo de comunhão, utópico, parece ser o centro da obra de Jonathas de Andrade, um artista brasileiro que vive no Recife e que filma em O Peixe (2016) uma comunidade de pescadores do Nordeste onde a espera paciente até à captura do animal fazem parte do quotidiano dos manguezais de Alagoas. Tal como Gabriel Abrantes e Priscila Fernandes, é no território ambíguo entre documentário e ficção que Jonathas de Andrade se move: os pescadores esperam a morte dos peixes com eles entre os braços, numa imagem fetichizada do corpo masculino que evoca uma pietá.

Um pacto entre a vida e a morte que regressa com a peça do francês Pierre Huyghe, um dos nomes mediáticos da bienal, ou do neozelandês Luke Willis Thompson, em que nove lápides funerárias são alinhadas no segundo piso da bienal, mesmo ao lado do trabalho de Priscila Fernandes. Sucu Mate/Born Dead foi buscar estas estelas a um cemitério nas ilhas Fiji destinado a imigrantes da Índia, da China e do Japão que trabalhavam em condições próximas da escravidão em plantações de cana-de-açúcar. Na bienal, estas lápides anónimas propõem-se como um monumento funerário efémero, antes de regressarem ao lugar de origem em Setembro de 2017, questionando o circuito dos empréstimos de obras de arte no sistema internacional de instituições culturais.

Além das 47 mulheres, os percursos possíveis de fazer nesta bienal com 370 peças e 33 países são quase infindáveis. Numa exposição com entrada gratuita, é possível ir à procura dos artistas nascidos antes de 1970: são 48 os que têm menos de 45 anos. Outra maioria. Esta é por isso também uma bienal jovem, além de feminina.

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