Quando um filme protesta em Cannes, o Brasil não esquece

Um dos filmes brasileiros mais celebrados no exterior tornou-se um dos mais hostilizados no Brasil, mesmo antes de ser visto. Depois de ocupar o festival de Cannes com cartazes políticos, Aquarius estreia finalmente em casa.

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Sónia Braga

Kleber Mendonça Filho filma o Brasil contemporâneo como se fosse um thriller. Na sua primeira longa-metragem, O Som Ao Redor (2012), o medo da violência e a paranóia securitária da classe privilegiada erguem um cerco à volta das personagens que, no entanto, não impede a invasão. Se John Carpenter fosse pernambucano e tivesse 20 anos a menos, talvez fizesse um filme assim.

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Kleber Mendonça Filho filma o Brasil contemporâneo como se fosse um thriller. Na sua primeira longa-metragem, O Som Ao Redor (2012), o medo da violência e a paranóia securitária da classe privilegiada erguem um cerco à volta das personagens que, no entanto, não impede a invasão. Se John Carpenter fosse pernambucano e tivesse 20 anos a menos, talvez fizesse um filme assim.

Em Aquarius, o aclamado novo filme de Kleber Mendonça Filho, também há um invasor, e tem um sorriso enganador: um jovem agente imobiliário que quer comprar o último apartamento de um edifício antigo à beira da praia, para deitá-lo abaixo e construir um condomínio de luxo. Ele tenta seduzir, intimidar e, finalmente, forçar a última moradora do edifício a sair. Mas Clara - interpretada por uma Sónia Braga imponente desde o primeiro levantar de cabelos - recusa-se a abandonar o apartamento e tenta defender o seu território.

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Em Cannes, onde Aquarius foi o primeiro filme em oito anos a disputar a Palma de Ouro, o realizador e elenco fizeram um protesto no tapete vermelho FOTO: Valery HACHE/AFP

É um filme político, tanto quanto um filme sobre um acto de resistência contra forças usurpadoras pode ser político. Ou tanto quanto esse papel combativo e obstinado, evocador de heróis de certos westerns, é entregue a uma mulher. Aquarius não foi pensado como um comentário sobre a situação política do Brasil - o impeachment (destituição) da Presidente Dilma Rousseff perpetrado pela oposição e conduzido por deputados corruptos - nem a personagem de Sónia Braga foi inspirada em Dilma. O filme foi escrito muito antes do processo de impeachment e rodado há um ano. Mas, coincidentemente, Aquarius tornou-se num símbolo da contestação ao governo de Michel Temer, que substituiu Dilma Rousseff na Presidência.

Tudo começou em Maio, no festival de cinema de Cannes, onde Aquarius foi o primeiro filme brasileiro em oito anos a disputar a Palma de Ouro (o último tinha sido Linha de Passe, de Walter Salles e Daniela Thomas). No tapete vermelho da escadaria do Palácio dos Festivais, onde Aquarius ia ser exibido, o realizador e o elenco do filme fizeram um protesto contra o novo governo brasileiro, que acabara de entrar em funções, empunhando cartazes que diziam: “Há um golpe em curso no Brasil”, "54.501.118 votos foram queimados”, "Misóginos, racistas e impostores como ministros” ou "O mundo não pode aceitar este governo ilegítimo”. O protesto ecoou na imprensa internacional - a sua fotografia foi parar na primeira página do britânico The Guardian - e viralizou nas redes sociais brasileiras. “Nunca imaginei que teria essa repercussão. É muito bom quando a narrativa tradicional é quebrada. Para a imprensa brasileira, o golpe não só não aconteceu, como ele é fruto da imaginação de algumas pessoas”, diz Kleber Mendonça Filho ao Ípsilon.

O realizador diz que “era impossível não fazer alguma coisa” no tapete vermelho ou na conferência de imprensa em Cannes. “Eu achei que era uma óptima oportunidade de, num cenário internacional, com muitas câmaras, dizer o que está acontecendo no Brasil: um golpe que não é militar, mas é um golpe frio, burocrático. Através da burocracia e da completa falta de alinhamento com uma ideia de democracia, conseguiram tirar uma Presidente que não estava indo muito bem e a oposição chegou ao poder sem eleições directas - porque com eleições directas a oposição não chega ao poder, como está comprovado há mais de 13 anos. Não me arrependo de jeito nenhum. Se tivesse de fazer novamente, faria exactamente do mesmo jeito.”

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“Obrigação é boicotá-lo”

O protesto foi atacado ruidosamente pela direita brasileira. Reinaldo Azevedo, colunista reaccionário da revista Veja, decretou que, quando o filme chegasse ao Brasil, “a obrigação é boicotá-lo” e divulgou o salário de Kleber Mendonça Filho como coordenador de cinema da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, um cargo público, insinuando que o realizador deveria ser demitido. Enquanto Aquarius era celebrado por um coro de críticos estrangeiros como uma das melhores obras na competição de Cannes, recebendo uma visibilidade internacional rara para um filme brasileiro, a Folha de S. Paulo noticiava que o novo governo estava a analisar o que fazer em relação ao cargo público de Kleber Mendonça Filho. O realizador permaneceu na Fundação Joaquim Nabuco, mas o novo ministro da Cultura, Marcelo Calero, criticou o protesto feito pela equipa de Aquarius, dizendo que ele causara “prejuízos à reputação e à imagem do Brasil”.

Para o bem e para o mal, o protesto em Cannes pré-condicionou a recepção do filme no Brasil, onde só agora começa a ser testado junto dos espectadores - a estreia comercial estava marcada para esta quinta-feira, dia 1. Há quem se recuse a ver Aquarius por causa do protesto e quem faça questão de ver por causa do protesto. Conseguirá ser apreciado para além das circunstâncias políticas actuais? Sendo um filme mais acessível e directo do que O Som Ao Redor, terá maior apelo popular?

Duas polémicas recentes lançaram a suspeita de que o governo de Michel Temer, que já deu provas anteriores do seu incómodo em relação a críticas (Temer pronunciou uma frase curta e protocolar na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos do Rio para evitar vaias; algumas pessoas foram expulsas dos estádios e detidas por protestarem contra o governo), está a punir ou, no mínimo, a tentar diminuir a importância de Aquarius por não ter gostado do protesto em Cannes e da repercussão internacional que ele teve.

Aquarius é apontado como o candidato mais óbvio a representar o Brasil na disputa pelo Óscar de melhor filme estrangeiro em 2017. “Não me parece que haja nenhum outro filme com as suas credenciais. Além da participação na secção principal de Cannes e dos elogios da crítica do mundo todo que recebeu lá, foi seleccionado para outros festivais, inclusive os de Toronto e Nova Iorque, que costumam ser indícios fortes do potencial na América do Norte. É um tipo de aceitação e visibilidade internacional que nenhum outro filme teve nesse ano”, diz Eduardo Valente, curador do Festival de Brasília de Cinema Brasileiro e delegado brasileiro do Festival de Cinema de Berlim.

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Cavalo de batalha

A escolha do filme brasileiro candidato ao Óscar cabe a uma comissão especial cujos membros são convidados pela Secretaria do Audiovisual, um órgão dependente do Ministério da Cultura. Um desses membros é Marcos Petrucelli, comentarista de cinema para a rádio CBN, do grupo Globo, que tem usado as redes sociais para atacar Kleber Mendonça Filho e Aquarius, mesmo sem ter visto o filme. Petrucelli classificou o protesto em Cannes como uma “vergonha” e insinuou que o governo brasileiro financiou a ida de 30 membros da equipa do filme ao festival “para tirar férias na Riviera Francesa”, entre outros comentários ostensivamente hostis. Contestado, Petrucelli defendeu-se dizendo que o seu diferendo com Kleber era estritamente político e que isso não influenciaria a sua apreciação do filme, apesar de insistir que não considerava Aquarius um candidato natural do Brasil ao Óscar de melhor filme estrangeiro. A presença de Petrucelli na comissão lançou dúvidas sobre a legitimidade do processo de selecção e fez com que a comunidade cinematográfica se unisse no seu apoio a Aquarius. O também pernambucano Gabriel Mascaro (Boi Neon), Anna Muylaert (Mãe Há Só Uma) e Aly Muritiba (Para Minha Amada Morta) retiraram os seus filmes da disputa pela vaga brasileira no Óscar.

Um outro realizador, Roberto Berliner, que concorre com Nise - O Coração da Loucura, propôs que os cineastas fizessem lobby pela retirada de Petrucelli da comissão. Dois membros da comissão desistiram de fazer parte dela. O resultado será anunciado a 12 de Setembro. “A inabilidade do Ministério da Cultura e da Secretaria do Audiovisual criou uma situação que vai ser ruim, tanto se Aquarius for escolhido como se não for escolhido”, diz o crítico de cinema brasileiro José Geraldo Couto. “Se ele não for escolhido, vai ficar muito evidente que houve um viés político. Se o filme for seleccionado, vai ser visto como uma derrota desse governo. Porque virou um cavalo de batalha.”

Entretanto, às vésperas da sua estreia nos cinemas brasileiros, Aquarius recebeu do Ministério da Justiça a classificação etária mais restrita - proibido a menores de 18 anos - alegadamente por conter sexo, nudez e drogas. A medida parece exagerada tendo em conta o conteúdo de Aquarius e quando comparada com outros filmes recentes. “Boi Neon ganhou uma classificação de não recomendado para menores de 16 anos, mas do ponto de vista do sexo ele é mais explícito e mais forte do que Aquarius. E quanto ao consumo de drogas, a única droga que aparece sempre consumida em Aquarius é maconha [erva], que aparece praticamente em todos os filmes brasileiros, essencialmente nos filmes pernambucanos”, ri-se José Geraldo Couto. “É muito raro um filme brasileiro receber essa classificação de 18 anos. No Brasil, os dois últimos filmes que tiveram essa classificação foram Love 3D [de Gaspar Noé] e Ninfomaníaca [de Lars von Trier], que são filmes que tratam de sexo o tempo todo e de maneira muito explícita.” José Geraldo Couto não tem dúvidas de que a classificação etária de Aquarius configura uma censura “que não tem a ver com o que filme traz, mas com todo o contexto que ele representa”. Começa a tornar-se evidente para alguns que o tema de Aquarius, que é sobre resistência, foi premonitório em relação à trajectória do filme no Brasil.