Os rastos dos aviões fazem parte de uma conspiração mundial? Não, dizem os cientistas

Há 20 anos nasceu a teoria de que os rastos brancos dos aviões no céu contêm propositadamente substâncias nocivas com um objectivo secreto. Esta teoria da conspiração voltou a chumbar na última avaliação dos cientistas.

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Fernando Veludo

No mundo das conspirações, a teoria dos rastos químicos (em inglês, chemtrails) é recente. Os rastos de condensação deixados no ar pelos aviões – linhas brancas que se vêem no céu azul – só começaram a ser vistos com desconfiança a partir de 1996, depois de vir a público um relatório de altos responsáveis da Força Aérea dos Estados Unidos. No documento defendia-se que aquela instituição devia apostar no desenvolvimento de métodos de controlo da meteorologia. O objectivo era aplicá-los em situações de guerra, já em 2025.

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No mundo das conspirações, a teoria dos rastos químicos (em inglês, chemtrails) é recente. Os rastos de condensação deixados no ar pelos aviões – linhas brancas que se vêem no céu azul – só começaram a ser vistos com desconfiança a partir de 1996, depois de vir a público um relatório de altos responsáveis da Força Aérea dos Estados Unidos. No documento defendia-se que aquela instituição devia apostar no desenvolvimento de métodos de controlo da meteorologia. O objectivo era aplicá-los em situações de guerra, já em 2025.

Embora a Força Aérea tenha desmentido depois que a proposta do relatório tivesse sido adoptada, rapidamente os rastos de condensação dos aviões se tornaram um objecto de receio nos Estados Unidos e, gradualmente, um pouco por todo o mundo. Hoje, há várias versões sobre o que são os chemtrails, os seus efeitos e objectivos. Há quem diga que os aviões lançam substâncias químicas para reflectir a luz solar e diminuir o aquecimento global; outros defendem que têm agentes biológicos que propagam doenças; uma terceira hipótese é que lançam elementos químicos nefastos para as pessoas e para o ambiente.

O que parece unir as várias teses é que se está perante um plano secreto e de grande escala, com fins suspeitos, levado a cabo pelos “dono do mundo”, quem quer que eles sejam: as empresas farmacêuticas, os governos, o Clube de Bilderberg... Pode-se perguntar por que é que ninguém se lembrou de uma teoria semelhante para os gases que saem dos tubos de escape dos carros, que são poluentes, perigosos para a saúde, e hoje alvo de leis mais restritivas. Mas os desígnios das teorias da conspiração são insondáveis.

De qualquer forma, uma equipa de investigadores dos EUA resolveu fazer um questionário a especialistas em química atmosférica e geoquímica, de diferentes países, para saber se tinham encontrado alguma prova científica no trabalho que fizeram, nos resultados de análises químicas ao ar e aos solos que lhes passaram pelos olhos ou nos estudos de outras equipas que apoiasse a ideia de que existe um programa atmosférico secreto e de grande escala. A resposta foi esmagadora: dos 77 cientistas que responderam aos questionários, 76 disseram que “não” – não tinham encontrado quaisquer provas que fundamentassem a ideia da existência de rastros químicos –, conclui um estudo publicado recentemente na revista Environmental Research Letters com os resultados do questionário.

A crença nos rastos químicos está enraizada com alguma força na opinião pública. “Cerca de 17% das pessoas que responderam a um questionário internacional [da equipa de Ashley Mercer, então na Universidade de Calgary, no Canadá, publicado num artigo também Environmental Research Letters em 2011] disseram acreditar que a existência de um programa atmosférico secreto e de grande escala é verdadeiro ou parcialmente verdadeiro”, recorda o artigo na Environmental Research Letters, de Steven Davis, da Universidade da Califórnia em Irvine (EUA), e de mais três colegas.

O objectivo do novo trabalho “não é fazer vacilar aqueles que já estão convencidos deste programa – que muitas vezes rejeitam as provas existentes contra a teoria da conspiração ao transformarem-nas em provas a favor da teoria –, mas criar uma fonte de informação científica objectiva que ajude a informar o público”.

A física explica

No documento da Agência de Protecção Ambiental dos EUA, em 2000, no qual se desmente que a Força Aérea do país esteja apostada em controlar o tempo, é explicada a física das linhas brancas dos aviões. “O motor das aeronaves emite vapor de água, dióxido de carbono, pequenas quantidades de óxidos de azoto, hidrocarbonetos, monóxido de carbono, gases sulfúricos, fuligem e partículas de metal formadas pela combustão a altas temperaturas do combustível durante o voo. Destas substâncias, apenas o vapor de água é necessário para a formação dos rastos de condensação”, lê-se no documento.

“À medida que os gases emitidos arrefecem e se misturam com ar envolvente, forma-se um rasto de condensação quando a humidade do ar é suficientemente alta ou a temperatura desce o suficiente para a água se condensar à volta das partículas [na atmosfera], criando gotículas líquidas. Se o ar à volta for suficientemente frio, estas gotículas recém-formadas congelam e formam partículas de gelo, que são os rastos de condensação”, explica o documento.

A permanência destes rastos depende da humidade da atmosfera. Se houver muita humidade, então as moléculas de vapor de água que já existiam na atmosfera são sequestradas pelas partículas formadas após a passagem do avião. Por isso, o rasto aumenta de tamanho e fica mais tempo no céu. Se o ar estiver seco, então o rasto evapora-se rapidamente.

“Os rastos de condensação estão a tornar-se mais abundantes à medida que as viagens aéreas se massificam. Além disso, é possível que as alterações climáticas estejam a contribuir para que estes rastos persistam mais tempo”, diz Ken Caldeira, um dos autores do novo estudo, da Instituição Carnegie para a Ciência (EUA), numa nota da Universidade da Califórnia.

“O facto de as pessoas desconhecerem os rastos de condensação e a sua formação levou a várias interpretações erradas”, lê-se, por sua vez, num artigo no site da Comunidade Céptica Portuguesa (Comcept), que promove o pensamento racional e tem uma visão crítica de práticas como a acupunctura, a homeopatia ou teorias da conspiração como os rastos químicos. “A probabilidade de um governo, ou uma entidade secreta, querer adoecer deliberadamente a população é reduzida. Até ao momento, não há confirmação científica que apoie a existência de chemtrails”, conclui o artigo de João Monteiro, do Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia, em Lisboa.

A alegada maior persistência destes rastos (não existem sistemáticas medições do tempo de permanência dos rastos, como se faz com a temperatura e o dióxido de carbono, para se ter uma prova empírica desta tendência) é um dos argumentos usados pelos defensores dos rastos químicos. Outro argumento provém de análises a águas de poças que, segundo estes grupos, têm altas concentrações de metais como o alumínio, o bário e o estrôncio, demonstrando a deposição de elementos lançados nos chemtrails. Os diferentes tipos de rastos deixados pelos aviões ajudam também a alimentar a narrativa.

No artigo publicado agora na Environmental Research Letters, os autores questionaram o grupo de peritos se os rastos químicos eram a melhor forma de explicar estes e outros factos. “Até agora não havia nenhum estudo académico revisto pelos pares que mostrasse que o que algumas pessoas pensam ser os rastos químicos não passam de rastos de condensação vulgares”, diz Ken Caldeira.

Metodologia errada

A equipa enviou questionários a 475 cientistas, entre especialistas em química atmosférica e geoquímica. Ao todo responderam 77. O conhecimento alargado necessário para responder pode ter levado muitas pessoas a “terem-se desqualificado a si próprias como peritos”.

E os que responderam foram quase unânimes quanto aos rastos químicos. Numa fotografia de rastos de condensação usada no estudo há três aviões a deixar rastos, mas um dos rastos é longo e os outros dois curtos. Para os defensores dos chemtrails, os “rastos de condensação evaporam-se rapidamente e, por isso, os rastos que ficam muito tempo indicam diferenças na quantidade de químicos despejados”, lê-se.

Mas os cientistas questionados rejeitam esta hipótese e propõem outras. Os aviões da foto estão a diferentes altitudes e o que deixou o rasto mais longo estará numa zona mais húmida. Alguns cientistas disseram que os aviões poderiam ser diferentes e usar combustíveis diferentes.

Também os resultados da análise a poças de água que continham alumínio, bário e estrôncio foram rebatidos, mas desta vez por razões metodológicas. A água recolhida trazia sedimentos que se tinham acumulado no leito. Segundo muitos cientistas ouvidos no questionário, isto contamina a amostra, o que explica os resultados das análises à água. “Os três elementos são constituintes principais do material da crosta terrestre”, disse um dos especialistas questionados, citado no artigo.

Sobre o único cientista que, entre 77, respondeu “sim” à pergunta se tinha encontrado alguma prova da existência dos rastos químicos, o astrónomo Phil Plait – que tem desconstruído teorias da conspiração – já explicou a situação. “A prova que [esse cientista] encontrou eram ‘níveis altos de bário na atmosfera numa área remota em que o nível de referência de bário no solo é baixo’”, disse Phil Plait num artigo na revista Slate recheado de ironia.

“Por outras palavras, ele encontrou níveis altos de bário fora do comum, mas que dificilmente sustentam a ideia de técnicas secretas de controlo da mente espalhadas por todo o lado. Mais parece que o cientista em questão estava simplesmente a dizer que não pode excluir a existência de um programa atmosférico secreto e em grande escala, o que é muito diferente de dizer que o programa existe”, referiu o astrónomo. “De manhã, quando eu não encontro as minhas chaves, não posso excluir a hipótese de que um dinossauro-fantasma as escondeu. Mas parece-me uma explicação um pouco improvável.”