Crónica olímpica única

Os Jogos do Rio de Janeiro eram uma previsão de fim do mundo, mas passaram três semanas e o mundo não acabou.

Eu não passei três semanas no Rio de Janeiro. Passei três semanas nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Não conheci o Cristo Redentor (vi-o ao longe), não estive na praia de Copacabana (estive lá para ver o ciclismo, mas nem a areia pisei), vi a Barra ao longe enquanto navegava entre a piscina olímpica, os três Arenas Cariocas e o pavilhão da ginástica. Vi o Rio de Janeiro pelo vidro de um autocarro, sempre com o ar condicionado no máximo, com pouca margem de manobra (em termos de tempo) para saltar fora do circuito olímpico e entrar a sério na cidade maravilhosa. Isto foi o que vi.

Os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro eram uma previsão de fim do mundo. Anunciaram e garantiram. Passaram três semanas e o mundo não acabou. Os Jogos do Rio não foram melhores nem piores do que aqueles que eu já tinha visto antes ao vivo (Atenas 2004 e Londres 2012). Mais uma vez, a máquina do Comité Olímpico Internacional (COI) funcionou bem. Se a via olímpica tivesse falhado, teria sido um grande problema, mas não falhou e os transportes foram eficientes o quanto baste. Podia era ter havido mais café e mais água. E a comida também podia ser melhor.

Três semanas a navegar pelos Jogos Olímpicos são três semanas de oportunidades diárias de encontros imediatos com “estrelas” do passado, de ver história acontecer, de nos emocionarmos com todos os feitos desportivos, da 23.ª medalha de ouro do maior atleta olímpico de todos os tempo aos festejos do último classificado da maratona, de tropeçar numa história apenas porque apanhámos o autocarro certo e sentámo-nos no lugar certo. Para mim, um dos momentos dos Jogos foi a ver a final de râguebi sevens em que as Fiji conquistaram a medalha de ouro, a primeira da história deste arquipélago do Pacífico Sul.

Na viagem de regresso, vinha no meio da selecção de futebol das Fiji, que foram o absoluto contraste com o râguebi – foram goleados por todos e só conseguiram marcar um golo. Mas estavam lá, em Deodoro, para ver os sevens. Durante a viagem, estavam todos a pedir fotografias com um senhor de 70 anos que vinha ao meu lado. “Você não está a perceber nada do que se está a passar, pois não?”. Não estava mesmo. Mas o senhor explicou. “Era eu que estava a fazer o relato do jogo e eles reconheceram-me a voz.”

Não fazia ideia, mas quem estava ao meu lado no autocarro era o mais famoso relatador de râguebi da Nova Zelândia, Keith Quinn, um senhor muito simpático e muito conversador, que também gosta da oportunidade de falar com gente de outras latitudes. A conversa continuou por alguns minutos até chegar aos primeiros jogos olímpicos que o meu colega de viagem esteve, Munique 1972, em que era um repórter novato ao serviço de uma rádio. Quando o Setembro Negro atacou a comitiva israelita, o chefe da equipa achou que não ia dar em nada e foi-se deitar. Ficou o repórter novato para entrar em directo na antena, mas na redacção da rádio na Nova Zelândia não havia ninguém que soubesse quem ele era e levou algum tempo a descobrir alguém que reconhecesse o nome.

No Rio, vi as últimas piscinas nadadas por Michael Phelps e os últimos metros corridos por Usain Bolt em palco olímpico. É impossível não nos sentirmos tocados pela oportunidade de ver dois “monstros” do desporto ao vivo, a despedirem-se (até ver) nos seus próprios termos. É algo que vai para lá do interesse profissional e, pela amostra das zonas mistas após cada prova deles, este era um sentimento generalizado entre a imprensa mundial. Nem todos queriam fazer perguntas. Só queriam estar ali e, se possível, tirar uma foto.

Também vi o Brasil reconciliar-se com o seu futebol no Maracanã, vi ginástica artística ao vivo pela primeira vez e vi Simone Biles, a minúscula e maravilhosa ginasta norte-americana, mas também vi a quarentona Oksana Chusovitina a competir numa final olímpica contra atletas que tinham idade para ser suas filhas. E, numa das noites do atletismo, quando estava na fila para o controlo de segurança, estava atrás de mim o grande velocista norte-americano Michael Johnson, no Rio como comentador de uma televisão brasileira. Algumas horas depois, vi o jovem sul-africano Wayde van Niekerk bater o recorde do mundo dos 400m planos. Quem era o anterior recordista? Michael Johnson.

Ser jornalista português implica acompanhar mais de perto os atletas portugueses e estar lá perto permite avaliar de outra forma o que é o fracasso e o sucesso. A melhor história portuguesa de sucesso no Rio foi, naturalmente, a medalha de bronze de Telma Monteiro no judo, uma medalha mais que merecida para uma das melhores atletas portuguesas de sempre que andava há 12 anos à procura de uma. Em 92 atletas, uma medalha e 91 fracassos? E ser quarto, quinto, sexto, sétimo e oitavo não é estar entre os melhores do mundo? Claro que é.

Até o nono lugar é estar neste lote e foi o que Rui Bragança teve no Rio, um resultado frustrante para alguém que está no topo da sua modalidade. O que é realmente preocupante é ouvi-lo dizer que vai deixar o taekwondo se tiver de continuar a pedir dinheiro aos pais para continuar a competir. O desporto não é uma ciência exacta, mas tem uma equação simples. Mais investimento, mais medalhas, apenas pela pura lógica de ter mais atletas no topo dos respectivos desportos. Quando só se tem um, é natural que o fracasso olímpico tenha maior ressonância.

Foram três semanas intensas numa cidade que se dizia não estar preparada para receber o maior evento desportivo do planeta. Resta saber que legados vão deixar os Jogos. O que é que os cariocas vão fazer com um velódromo, é uma das muitas perguntas, mas não a mais importante para a cidade mais emblemática de um país que atravessa uma grande crise económica, política e social. Com samba e “jeitinho”, as coisas fizeram-se e, repito, não correram melhor nem pior do que em outros Jogos a que assisti ao vivo. 

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