"Oito livros de Donald Trump depois e continuo sem chegar a grandes conclusões"

O crítico do Washington Post para a não-ficção passou uma semana a ler as obras do candidato republicano à presidência dos EUA. Chegou a poucas conclusões além desta: um homem monotamente narcísico.

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Passei a última semana a ler a colectânea de livros escritos por Donald J. Trump e garanto que está longe daquilo que imaginava ser uma experiência literária. Tinha a esperança de chegar a uma teoria sobre a essência do homem – ou de, pelo menos, descortinar um método no mundo “trumpiano”. Li oito livros – três de memórias, três de auto-ajuda para se ser bem sucedido nos negócios e dois com pendor político, todos publicados entre 1987 e 2001. Cheguei à conclusão... bem, como resumir tudo numa só palavra? Haverá porventura uma expressão que reúna sentirmo-nos revoltados, divertidos, enganados, mas ainda assim vermos alguém que merece o nosso respeito? Tudo isto nos passa pela cabeça quando o lemos, e experimentamos cada sentimento à vez, ou, na maior parte do tempo, todos em simultâneo. Digamos que se fica com uma bela bebedeira!

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Passei a última semana a ler a colectânea de livros escritos por Donald J. Trump e garanto que está longe daquilo que imaginava ser uma experiência literária. Tinha a esperança de chegar a uma teoria sobre a essência do homem – ou de, pelo menos, descortinar um método no mundo “trumpiano”. Li oito livros – três de memórias, três de auto-ajuda para se ser bem sucedido nos negócios e dois com pendor político, todos publicados entre 1987 e 2001. Cheguei à conclusão... bem, como resumir tudo numa só palavra? Haverá porventura uma expressão que reúna sentirmo-nos revoltados, divertidos, enganados, mas ainda assim vermos alguém que merece o nosso respeito? Tudo isto nos passa pela cabeça quando o lemos, e experimentamos cada sentimento à vez, ou, na maior parte do tempo, todos em simultâneo. Digamos que se fica com uma bela bebedeira!

Ao longo de mais de 2000 páginas encontrei um mundo onde o insulto é banalizado como uma conversa, onde a fanfarronice equivale a respirar, onde a contradição e a repetição são lei, onde a vingança e a insegurança irrompem por todos os poros.

Em qualquer outra situação, idiossincrasias como estas acabariam por interferir com a história propriamente dita. Com Trump, SÃO a história. Sobra muito pouco além disto. Escreva Trump sobre os seus negócios imobiliários, o seu show televisivo ou o país, tudo cheira a desculpa. A única coisa que o fez correr na vida, diria mesmo aquilo em que verdadeiramente apostou – e que o leva agora a ambicionar um lugar naquele tão cobiçado pedacinho de propriedade que é o nr. 1600 da Avenida Pennsylvania – é Ele próprio.

Em Junho, quando se apresentou como candidato às presidenciais americanas, disse: “O que precisamos é de um líder que tenha escrito The Art of the Deal.” É uma frase que passou a adoptar em muitas das suas aparições públicas. Trump tinha 41 anos quando escreveu The Art of the Deal, um livro no qual nos explica o poder da psicologia e do embuste – coisas que ele prefere apelidar de “desfaçatez” e “verdade sobredimensionada”, referindo-se ao início da sua carreira no imobiliário.

É que, antes de ser reconhecido como uma marca, Trump teve de convencer as pessoas de que era um valor seguro. Coisas de somenos que foram acontecendo aqui e ali. Por exemplo: pediu ao arquitecto com quem estava a trabalhar no projecto de um novo hotel que embelezasse as maquetes, de modo a parecer que estavam a gastar mundos e fundos e assim tornar a proposta mais apelativa para investidores. Quando os casinos de Atlantic City estavam a ser construídos, no dia em que se soube que a administração iria visitar a obra, Trump pôs os bulldozzers a andar dum lado ao outro do estaleiro para mostrar que tudo estava mais adiantado do que na realidade estava. Nessa altura, Trump alertou mesmo o capataz: “Se for necessário, põe as gruas a apanhar entulho de um lado e a depositá-lo no outro.” “Jogo com a capacidade de fantasia que as pessoas naturalmente têm”, explica Trump. “É uma maneira inocente de exagerar a realidade, e sobretudo uma muita eficaz forma de autopromoção.” Essencial é que Trump consiga uma certa “aura” em tudo o que toca, dos negócios, às ideias ou ao próprio – “aura” é, aliás, uma expressão que usa e de que abusa nos livros.

São muitas as piadas que correm por Trump deixar sempre o seu nome em edifícios, barcos, aviões, empresas. “Diria que é sobretudo uma muito inteligente estratégia de marketing”, escreve. “Basta um edifício ser reconhecido como Edifício Trump e tem logo rendas mais elevadas.” Mas aquilo de que estamos aqui a falar é muito maior do que apenas uma imagem de marca. Ao dar o seu nome, Trump trata o edifício (ou o que quer que seja) como um ser vivo, um amigo, uma amante até. “Era ainda um homem novo quando comecei a minha relação com o número 40 de Wall Street”, escreveu no The Art of the Comeback, que publicou em 1997. “Desde o momento em que lhe pus os olhos em cima, fiquei fascinado pela sua beleza e esplendor.” Sobre o seu clube privado de 10 mil m2 em Palm Beach, na Florida, escreveu: “O meu amor por Mar-a-Lago começou em 1985.” Ou ainda: “A Trump Tower, como um bom amigo, estava lá quando mais precisei dela.”

Estas relações parecem ser tão ou mais importantes – mais duradouras são-no certamente – do que as que mantém com as suas duas ex-mulheres. Na área dos negócios imobiliários, nada parece escapar-lhe. Já na das relações pessoais, sobretudo nos casamentos, nem parece o Trump que conhecemos. Talvez por não ser o único protagonista. “Parece que os meus casamentos passados foram a única parte da minha vida em que estive disposto a aceitar menos do que a perfeição”, escreveu em Surviving at the Top, que lançou em 1990.

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Em vários dos livros que publicou, Trump reflecte abundantemente sobre a necessidade de acordos pré-nupciais, que, diz, lhe foram úteis no casamento com Ivana Trump, a primeira mulher, e com Marla Maples, a segunda. Aliás, o livro The Art of the Comeback inclui mesmo todo um capítulo intitulado "The art of the prenup". Disse a um amigo, casado com uma mulher “chata”, que o melhor que tinha a fazer era safar-se daquilo e com o menor rombo possível nas finanças. “Se não cortasse o mal pela raiz, a carreira dele não ia a lado nenhum.”

Podemos dizer que Trump tem experiência de minimizar os danos colaterais. Aos leitores diz que ninguém o ouvirá dizer “uma palavra negativa” sobre Ivana. Mas depois descreve-a como mulher gélida e manhosa, e até goza com o seu sotaque quando relata um telefonema que ela lhe fez a meio do processo de divórcio: “‘Querrro’ o meu dinheiro e é agora. Decidi honrar o nosso contrato, e ‘querrro’ imediatamente o cheque dos dez milhões de dólares e tudo o mais a que tenho direito.” É impossível sabermos se o que conta é verdade: com Trump, até o que parece um momento de redenção poder servir para depreciar o outro. “Adoro as mulheres, mas elas são na verdade muito diferentes do que as pintamos”, confessa. “São muito piores do que os homens, muito mais agressivas, , caramba, são mesmo espertas!” Para ser muito honesto – caramba! –, ele não se refere apenas às mulheres como quem se casou, ou às mulheres de uma forma geral; ele refere-se ao mundo inteiro.

Os livros estão recheados de insultos, como se esse fosse o recurso estilístico para manter o leitor agarrado à prosa. Destrói uma Miss Universo por ter engordado. Quando se encontra com um general graduado, pergunta-lhe: “Porque é que só exibe uma estrela?” Os Rolling Stones não passam de “um bando de idiotas chapados”. Paul McCartney é “um pobre coitado” (entenda-se que é um “pobre coitado” porque não soube fazer um acordo pré-nupcial. Obviamente). Mas Trump não se mete apenas com celebridades. Também dispara sobre anónimos, como executivos bancários, pessoas do imobiliário, advogados ou activistas sociais, seja quem for que se lhe atravesse no caminho. “Se alguém te lixa, paga-lhe na mesma moeda.”

O mundo de Trump é binário e divide-se entre falhados e socialmente aceitáveis. É capaz de ir ao detalhe ao descrever fisicamente alguns jornalistas, pessoas que considera muito pouco atractivas. Fá-lo sem nenhuma razão em particular, apenas porque tal lhe passa pela cabeça. Escrever um livro implica disciplina, e isso não o verga: sobriedade e moderação é para os falhados.

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Onde assina Trump um autógrafo? Numa nota (Richmond, 2015) AFP

Se há coisa que perpassa ao longo dos livros são lampejos de insegurança. Trump passa a vida a lembrar e relembrar os leitores de como estudou na Wharton School da Universidade da Pensilvânia. (“Fui para a grande Wharton School of Finance e dei-me muito bem.” Ou: “Foi na Wharton School que aprendi que a economia funciona por ciclos.” Ou: “Tive amigos, muitos amigos, que andaram comigo na Wharton School e que eram muito inteligentes.”) Tudo o que possui é o melhor, o maior, o mais sexy. O seu apartamento: “Não deve haver outro igual no mundo.” O seu iate: “É provavelmente o mais bonito que alguma vez foi construído.” A sua terceira mulher, Melania: “É considerada por muitos, eu incluído, uma das mulheres mais bonitas do mundo.”

Trump diz que não gosta de festas nem de vida social, mas não perde oportunidade para se vangloriar das galas que organiza, com passadeira vermelha para receber os famosos; dos seus jantares privados; do rol de amigos que são celebridades. Os livros são, também eles, uma galeria de heróis: Donald com Liberace, Donald com Tiger Woods, Donald com Hillary Clinton – “A primeira-dama é uma mulher maravilhosa que soube aguentar muito bem a pressão”, lê-se na legenda. Trump também já mostrou que não é propriamente uma pessoa que saiba, ou queira, guardar segredos. É o próprio a relatar um jantar com Frank Sinatra em que o Chairman of the board terá disparado coisas como “estas gajas da merda” que são “a pior escumalha que existe à face da Terra”. E, quando recorda a estadia de Michael Jackson e da namorada de então, Lisa Marie Presley, no seu clube de Palm Beach, o que diz cala as más-línguas: “Há muita gente que me vem perguntar se aquela relação não seria só de fachada... Mas olhem que pelo menos durante aquele período de tempo aqueles dois não se largavam.”

Todos os livros de Trump se parecem muitíssimo uns com os outros, com as mesmas histórias e feitos contados vezes sem conta, e sempre acrescentando um ponto. Sabia o leitor que foi Trump quem renovou o ringue para patinagem de gelo Wollman, no Central Park, em meados dos anos 80? (Caso não soubesse, é só procurar em qualquer um dos livros que está lá!) Com a chegada do milénio, Trump já tinha passado das autobiografias aos livros de auto-ajuda para alcançar sucesso nos negócios, mas enfiando em cada um nacos da sua história pessoal e da sua visionária perspectiva financeira. “Não permitam que estas breves passagens vos impeçam de saborear em profundidade os conselhos que se seguem”, escreve no início de How to Get Rich (2004).

Não que eu seja um multimionário, mas a maioria dos conselhos tende a cair entre o óbvio e o inútil. Mantenha o foco. Contrate o melhor dos assistentes. Pense em grande. “A melhor forma de pedir um aumento de ordenado é saber esperar o momento certo”, é o mais específico que consegue. Ou esta pérola que transcrevo do Think Like a Billionaire (2004): “Toda a gente deveria ser sempre encorajada a cumprir os seus sonhos (os meus filhos foram-no). Mas há que perceber que muito dinheiro e tempo são investidos a correr atrás de sonhos que nunca passaram de castelos no ar.” Se os nossos sonhos nunca passaram de fantasia, já os de Trump são a mais pura das realidades: são o próprio sonho americano. Um dos fios condutores nos seus livros é como ele se vê em osmose com a cidade de Nova Iorque (“Quando me sinto atacado, estranhamente é como se a cidade também o fosse”). E porque os arranha-céus de Manhattan encarnam as mais profundas aspirações do país – para usar a terminologia trumpiana –, ele é a América. “Quando se metem com o sonho americano, despertam o lutador que há em mim”, deixa à laia de aviso. Acusa os legisladores de “buroestúpidos” (juntando as palavras “burocrata” e “estúpido”) e de “sonho-facínoras”.

Mas, se formos a ver, na génese do sonho de Trump está uma perspectiva muito tacanha da América. Dizem que para se ser presidente há que sair da redoma, dar-se a conhecer em prol de um desígnio maior. Eu digo que Trump vive numa “bolha” muito bem montada. Deliberadamente montada. “A razão pela qual o meu cabelo está sempre bem é porque nem sequer me sujeito aos elementos”, explica. “Vivo no mesmo edificio onde trabalho. É um elevador que me leva do quarto ao escritório. O resto do tempo estou na minha limusine, no meu avião privado, no meu helicóptero, no meu clube privado em Palm Beach... Caso me apanhem lá fora, é porque estou nos meus campos de golfe, e aí tenho o cabelo protegido por um boné.” Mesmo quando tenta, Trump não é homem que consiga relativizar. Queixa-se do trânsito que apanha a caminho do aeroporto. Não mais do que as habituais filas de carros: “Felizmente era o meu avião, por isso nem se pode dizer que tenha corrido o risco de perder o voo.”

Não haja dúvidas de que é Trump quem comanda esta “bolha”. Muito dificilmente admite erros, por exemplo. E, quando o faz, responsabiliza os outros. No máximo de uma assunção de remorso diz coisas como: “Só há uma única coisa que lamento, no que toca às mulheres – nunca ter tido a oportunidade de fazer a corte a Lady Diana Spencer... uma mulher de sonho.” Sobre os media diz que são “um negócio de mentiras e deturpações”. Se fosse Presidente, ele próprio assumiria a condução dos acordos de parceria transatlântica. “Era comigo que os japoneses, os franceses, os alemães e os sauditas tinham de se haver”, como escreve na The America We Deserve (2000). “Se estes parceiros tivessem um Donald Trump do outro lado da mesa de negociações, então os Estados Unidos deixariam de estar a saque.” Sim, não restem dúvidas de que Trump tem um seríssimo complexo de salvador da pátria. “Reparem que o que eu faço todos os dias é negociar – e grandes negócios”, escreveu no Time to get Tough (2011). “Precisamos de um negociador na Casa Branca.” Ou: “Faço o que for preciso, dentro dos limites legais, para vencer.” Ou ainda: “Às vezes, o sucesso de um negócio passa por denegrir o parceiro.”

A julgar pelos livros que li, não estou certo que Trump queira assim tanto a presidência. Vencer, sem dúvida, até porque logo a seguir pode escrever outro livro sobre a experiência. Mas estar lá como Presidente, dia após dia?! A Trump interessa sobretudo o que vem a seguir, seja mais um negócio, uma mulher ou um confronto. “Aquilo que me dá pica e me faz correr, uma vez debaixo de asa aborrece-me”, escreveu. “A ver se me entendem: o que me interessa mesmo é o conseguir, não é o ter.”

Livros citados neste artigo:

 Trump: The Art of the Deal, Donald J. Trump com Tony Schwartz (Ballantine Books, 1987)

Trump: Surviving at the Top, Donald J. Trump com Charles Leerhsen (Random House, 1990)

Trump: The Art of the Comeback, Donald J. Trump com Kate Bohner (Times Books, 1997)

The America We Deserve, Donald J. Trump com David Shiflett (Renaissance Books, 2000)

Trump: How to Get Rich, Donald J. Trump com Meredith McIver, (Random House, 2004. Tem edição portuguesa Como Enriquecer, Casa das Letras

Trump: Think Like a Billionaire, Donald J. Trump com Meredith McIver (Random House, 2004)

Think Big: Make It Happen in Business and Life, Donald J. Trump com Bill Zanker (Collins Business, 2007. Tem edição portuguesa Pense como um Campeão , Uma Educação Informal para os Negócios e para a Vida, Gestão Plus

Time to Get Tough: Making America #1 Again, Donald J. Trump (Regnery Publishing, 2011)

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post