A lição de Elie Wiesel

A grandeza de Elie Wiesel foi ter permanecido, até ao fim, e em todas as circunstâncias, um daqueles judeus que ele considerava a coroa da Humanidade.

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Tudo começou num mundo hoje já desaparecido, nos confins da Ruténia, da Bucovina e da Galícia, nomes de países perdidos que foram simultaneamente a glória do império dos Habsburgos e do judaísmo na Europa — e dos quais, 70 anos depois, não restam mais do que palácios em ruínas, igrejas barrocas vazias e sinagogas jamais reerguidas. Desse mundo perdido, despovoado dos seus judeus e das suas obras, acaba de morrer uma das últimas testemunhas.

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Tudo começou num mundo hoje já desaparecido, nos confins da Ruténia, da Bucovina e da Galícia, nomes de países perdidos que foram simultaneamente a glória do império dos Habsburgos e do judaísmo na Europa — e dos quais, 70 anos depois, não restam mais do que palácios em ruínas, igrejas barrocas vazias e sinagogas jamais reerguidas. Desse mundo perdido, despovoado dos seus judeus e das suas obras, acaba de morrer uma das últimas testemunhas.

O seu nome era Elie Wiesel.

Atravessou muito mais anos do que o povo apagado sem rastro dos seus irmãos. Mas, deste apagamento ele fez o seu segundo nascimento — a partir dos seus humildes destinos de trevas e chamas ele consagrou a sua vida a fazer, tremendo, a obra de uma ressurreição.

Porque é isso que retenho da vida do autor de Noite e Celebração Hassídica.

Ele deu-se com os maiores entre os grandes deste mundo. Teve, desde muito cedo, essa glória imensa, mundial, tão icónica como a de Yehudi Menuhin [virtuoso violinista e maestro judeu norte-americano]. 

O que retenho, sim, é que ele nunca deixou de ser esse yehudi, esse judeu, esse sobrevivente cujo coração batia, subitamente, mais depressa quando passava pelos postos de alfândega nos aeroportos de Nova Iorque ou de Paris.

E o que recordo é que ele impôs a si próprio uma tarefa, uma única apenas, tão impossível como categórica: enquanto durou a sua vida, tendo como único recurso a sua língua, e nem sequer era a sua língua materna, mas a outra, a do orfanato, a linguagem ensinada, aos 15 anos, nas Oeuvres de Secours às crianças deportadas, [associação de socorro a crianças judias], essa língua francesa tão estrangeira e que ele dominou tão bem, essa tarefa, então, foi tornar-se o túmulo vivo, o cenotáfio, dos mendigos de Sighet [sua cidade natal], dos judeus hassídicos do gueto com a graça dos desajeitados, ou do vizinho do Läger [campo de concentração] que recitava, perante o silêncio de Deus, o kaddish [oração em honra dos mortos] da sua própria morte — tantas vidas minúsculas, desfeitas em cinzas e em fumo, reduzidas a pó ou a lembranças sem consistência, e das quais não restaria, sem ele, qualquer vestígio, qualquer memória.

Não sei se Elie Wiesel era um “grande” escritor. Aliás, estou convencido de que ele pensava, como outro meu amigo, Benny Lévy, que um judeu como ele não vinha ao mundo para “fazer” literatura. 

E a sua obra não tem, efectivamente, nem o sublime inacessível de Kafka, nem o superpotência paradoxal de Proust, nem, talvez, a graça lacónica de Celan, que notava, do país natal que partilhavam [Roménia], que ali apenas se encontravam livros e homens. 

Mas, isso é certo, ele era um dos raros a ter dito o indizível dos campos. Partilhava com Primo Levi e Imre Kertesz — e houve muitos mais? — o terrível privilégio de ter visto seis milhões de sombras encostarem-se à sua frágil silhueta para encontrarem um lugar quase imperceptível no grande livro dos mortos nesse mundo.

E se ele tem outro mérito, é o de ter assegurado que, tanto na sua obra como, mais tarde, na mente dos que nela se inspiraram, a lembrança obscura dessa excepção que foi a Shoah não exclui, mas obriga, a ardente solidariedade com todas as vítimas de todos os outros genocídios.

Estou a vê-lo, em 1979, na fronteira do Camboja, onde me encontro com ele pela primeira vez, sempre com a sua mecha de cabelo, como uma asa, então bem negra, flutuando ao lado da sua bela cara tão magra: foi o primeiro que ouvi teorizar sobre a sombria imbecilidade dos que propunham que a competição vitimária exigia já que cada um escolhesse os seus mortos — judeus ou khmers. Os mártires deste ou daquele genocídio.

Estou a vê-lo, sete anos mais tarde, em Oslo, onde o acompanhei para receber o Prémio Nobel [da Paz] que tanto desejara. De repente acho-o carrancudo, inexplicavelmente ansioso, e, no seu olhar, onde há pouco falava a alegria, a exultação, a húmida faísca verlaineana de eterna criança a crepitar de inteligência e de malícia ou, tantas vezes, pelo contrário, e de um segundo para o outro, a infinita tristeza daquele que viu demasiado e que jamais recuperará de ter sido a testemunha do pior que o Homem pode fazer ao Homem, é, claramente, a tristeza que o transporta. “O Nobel”, sopra-me ele. “Serei, doravante, ‘um’ Nobel. Mas há apenas um título que importa, não é verdade? É rebbe, que quer dizer mestre. E eu sei que não o sou. E sei que não sou, nem nunca serei, mais do que um filho do rebbe.”  

E depois François Mitterrand... O dia do seu último encontro com a esfinge, o Maquiavel do Eliseu. Os ícones falam com os ícones. O aldeão de Sighet, com o burguês de Charentes. Mudaram muito, ambos. Talvez se tenham sentido pouco amados. Ele sentiu que estava a reencontrar, de forma ainda mais poderosa, algo da untuosidade e da sotaina da linguagem de outro François, François Mauriac, com quem conviveu quando regressou do campo e com quem sentia que teve uma boa relação de trabalho, para diminuir os mal-entendidos milenares entre judeus e cristãos. Mas pronto. Ele compreende, com golpe após golpe, que o príncipe marista saiu tranquilamente para jogar golfe no dia em que o seu mal-humorado Bérégovoy [primeiro-ministro francês entre 1992 e 1993] se suicidou e que continuou, mesmo até ao último dia, a ver e a proteger o denunciante de judeus Bousquet. Terá ele sido traído, devaneia agora? Ingénuo? Possesso? De que farsa foi ele a vítima? Ele conhecia todos os judeus de cor. E eis que o consagram judeu oficial. Ter-se-á ele recordado da máxima implacável do Tratado dos Pais [no Talmude, livro sagrado dos judeus] “Não te dês a conhecer ao poder”? Eles sabiam que ser um judeu oficial é, sempre, um logro e uma armadilha.

A grandeza de Elie Wiesel, na verdade, provém de ter permanecido, até ao fim, e em todas as circunstâncias, um daqueles judeus que ele pensava que eram a coroa da Humanidade. 

A sua tão elevada grandeza, a sua nobreza, consistiu em nunca ter esquecido a lição que o rebbe de Wishnitz lhe transmitiu, de, mesmo tendo vestido a bela sobrecasaca de literato,  jamais perder de vista que tinha a seu cargo os seus irmãos de cafetãs e barretes de pele que queriam ficar bonitos como os nobres polacos que os enviavam para longe em pogroms.

E creio que não terá passado um único dia da sua longa vida de grande intelectual célebre e celebrado, repleta de honras e de faustos, consultado todos os anos pelos Clinton, os Bush e outros Obamas, sem se deter, pelo menos uma hora, perante uma página do Talmude ou do Zohar, sabendo logo à partida que não ia compreender nada daquilo, e usar as forças do seu espírito e do seu corpo — mas era aí que estava o preço e o prémio da única autêntica celebração.

Era assim que se fazia em Sighet quando se acreditava que um dia viria o Messias.

É assim que se faz, hoje, quando se percebe que nem o Camboja, nem o Darfur, nem os massacres na Síria, nem em qualquer parte, a urgência de desalojar a besta que dorme dentro do Homem desviam da sagrada tarefa de salvar o que se consegue da memória, do bom senso e, logo, da esperança.

Essa é lição de Elie Wiesel.

Foi isso que fez com que, partindo do país dos homens e dos livros para se dirigir aos seus irmãos que esperavam em Manhattan e em Paris, ele se tenha tornado uma das consciências de um tempo assombrado, mais do que nunca, pelo crime e pelo esquecimento.

Escritor e director da revista La Règle du jeu