A jornalização em curso (2ª parte)

Em 1853, o escritor alemão Gustav Freytag, que nunca ocupou nenhum lugar de destaque na história literária, publicou uma comédia chamada Os Jornalistas que tem uma personagem exemplar, pela qual a peça continua a ser citada. Chama-se Schmock, essa personagem, e a sua réplica mais famosa, a que melhor serve para a caracterizar como um jornalista que se molda a todo os ambientes porque não se sente condicionado por convicções nem princípios, é aquela em que proclama: “Aprendi [...] a escrever para todas as tendências. Escrevi à esquerda e depois à direita. Sei escrever de acordo com qualquer tendência”. A actualidade de Schmock está bem visível na dança frenética de directores, sub-directores, editores, colunistas e outros membros da oligarquia que domina hoje os órgãos de comunicação social: de jornal para jornal, da televisão para o jornal, do jornal para a rádio e vice-versa e em todos as direcções. O verdadeiro Schmock, o que mais zela pela glória do seu antepassado, é aquele que completa o círculo em menos tempo. Se a mesma pessoa pode pôr-se ao serviço de tanta gente e de tantas instituições da nossa paisagem mediática é porque deixou de haver o princípio da incompatibilidade. Se não se fizesse tábua rasa de uma função eminentemente cultural do jornalismo que perdurou deste o Iluminismo até aos nossos dias (segundo a qual os media, através do exercício organizado e sistemático da crítica, dão forma, em conjunto com outras instâncias do conhecimento e da socialização da cultura, a uma opinião pública racional), se essa função estivesse tão profundamente inscrita na sua forma de existência que, destituído dela e da respectiva efectualidade, um jornal ou uma revista só poderiam morrer, como morre uma planta sujeita a um clima que lhe é estranho, os nossos Schmock não teriam a oportunidade de prosperar. Eles só existem e prosperam no seio de uma cultura decorativa, onde se pode escrever ou programar à esquerda ou à direita, de acordo com a tendência de ocasião. E todo o seu trabalho é dirigido a uma massa informe, em que também os leitores e os espectadores são vistos como receptores acríticos. Eles cumprem uma função que só se pode desenvolver sobre as cinzas do jornalismo e de todo o projecto cultural. Como Lacan dizia do amor, também eles poderiam dizer dos jornais, rádios e canais de televisão que dirigem, por turnos: a nossa missão consiste em dar o que não temos a alguém que não o quer. Sem projecto, sem tendência que não seja a dos ventos da estação, os media ficam ao serviço desta sociedade implosivo-mafiosa: este é o panorama com que estamos confrontados. E, em Portugal, de maneira mais grave ainda que noutros países, já que chegámos ao ponto em que a lei da concorrência não funciona e não há alternativas. Povavelmente, não há nenhum outro sector em que se tenha chegado a um tal estado de completa homogeneização, como acontece na lisa e monótona paisagem mediática. Mas os Schmock do nosso tempo – e são muitos – dão a ver também outra coisa: que os órgãos de comunicação social não estão nas mãos dos jornalistas e de quem neles escreve ou produz “conteúdos” (como se diz hoje), mas nas mãos de decisores gestionários. Abaixo desta estrutura gestionária está a massa dos jornalistas proletarizados, sem qualquer autonomia, mesmo que continuem a assinar com o nome próprio: o jornalismo deixou de se conformar às exigências do trabalho intelectual. Foi esta verificação que dois jornalistas franceses fizeram há poucos anos, num livro que tinha um título deprimente: Notre métier a mal tourné. Isto é: a nossa profissão correu mal. 

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