Quando são os doentes e cuidadores a dar as respostas “médicas”

No dia-a-dia da vivência de uma doença, há soluções das quais só pacientes e cuidadores se lembrariam. A Patient Innovation nasceu há dois anos para partilhar essas inovações que passam ao lado da medicina. Há 500 aprovadas e a plataforma portuguesa quer entrar no mercado da comercialização.

Fotogaleria

Naqueles 600 quilómetros de lágrimas cabiam dois anos de dor. Foi o tempo da viagem entre Madrid e o Porto, feita com o nome procurado durante dois anos a retinir-lhe na cabeça. Síndrome de Angelman. O filho Gonçalo tinha síndrome de Angelman, diagnosticou um neurologista em Espanha. Joaquina Teixeira entrou em casa e pôs-se em frente ao computador. Ler as respostas do Google foi cair duas vezes num “buraco sem fundo”. “Atraso mental severo, ausência de linguagem, descoordenação motora, epilepsia... Naquele momento o nosso mundo muda, apesar de ele estar mudado desde o dia em que o Gonçalo nasceu.”

Joaquina revive o momento uma década depois. Ter um nome para a doença do filho ajudou a secar as lágrimas, “balizar expectativas” e adequar terapias. Mas nunca a aceitar determinismos. “Alguns médicos disseram-me que o Gonçalo estava predestinado a ser um vegetal, nunca iria andar nem falar nem comer.” Joaquina bateu o pé. Continua a fazê-lo. O Gonçalo não fala, mas aprendeu a andar e já come quase sem ajuda. A mãe não desconfia da medicina, longe disso. Percebeu apenas que algumas batalhas só ela e o marido podiam travar. Foi por causa delas que o caminho destes pais se cruzou com o de Pedro Oliveira, docente da Católica Lisbon School of Business and Economics.

Há precisamente dois anos, no dia 7 de Fevereiro de 2014, era inaugurada a Patient Innovation, uma plataforma digital onde doentes e cuidadores pudessem “partilhar as suas inovações”. Num paper assinado em conjunto com a médica da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa Helena Canhão, Eric Von Hippel, do Massachusetts Institute of Technology, e Leid Zejnilovic, da Universidade Carnegie Mellon, relataram algo “impressionante”. Mais de metade (53%) dos participantes do estudo tinha desenvolvido uma solução inovadora para melhorar a própria saúde. Em termos de mercado, pensou Pedro Oliveira, havia ali uma oportunidade gigante: “As pessoas inovam mas não partilham. E se nós criássemos uma solução para que essa partilha fosse possível?”

Dois anos depois, há 500 inovações aprovadas na plataforma: desde coisas simples, como a criada por Joaquina Teixeira (já lá vamos), a mais complexas, como uma peça de suporte à aorta feita por um engenheiro inglês para resolver a sua doença. As inovações listadas na Patient Innovation — onde todos podem partilhar ideias, pesquisar soluções por doenças ou sintomas e conversar em fóruns — passam sempre por uma validação médica, “não com testes clínicos mas com exclusão de tudo o que possa ser perigoso”, explica Helena Canhão, responsável por esta tarefa com mais um grupo de colegas. “Antes de melhorar, é preciso que não faça mal. Excluímos, por isso, todos os medicamentos, produtos químicos e dispositivos invasivos.”

Esta espécie de rede social multilingue é um desafio para a comunidade médica. No início, quando Pedro apresentou a ideia, ainda sem a supervisão médica prevista, alguns especialistas “atiraram-se ao ar”, graceja o engenheiro. A resistência começou por ser enorme, mas, aos poucos, a ideia foi-se entranhando. Agora, há médicos a falarem aos pacientes desta plataforma e Pedro Oliveira até já é convidado para conferências... médicas.

A verdade, admite a especialista na área de Reumatologia Helena Canhão, é que, numa consulta convencional, o interesse do médico centra-se na fisiopatologia, ou seja: o que provoca a doença e como corrigir isso através de fármacos? Mas essa avaliação deixa de fora muitos outros componentes. “Às vezes porque nem sequer é a nossa função [avaliá-los], outras por falta de tempo, outras ainda porque não há um grande interesse da medicina convencional em fazer isso.”

Mudar rotinas e inovar

Se um doente com demência vai a uma consulta, podem ser receitados comprimidos para melhorar a memória, “mas a medicina não se preocupa com o dia-a-dia dessa pessoa em casa”, concede Helena Canhão. Há aspectos, por isso, aos quais só doentes e cuidadores sabem dar valor e podem tentar mudar — e às vezes, sem se aperceberem, “mudam rotinas e inovam”. Pedro Oliveira resume: “Não há ninguém no mundo mais motivado do que eles próprios para resolver o problema.”

Foi o que fez Joaquina Teixeira. O historial de “inovações” desta mãe — que se despediu de um "bom emprego” numa empresa de telecomunicações para mergulhar na Associação Nacional de Deficiências Mentais e Raras (Raríssimas) — é já significativo. Um deles, listado na Patient Innovation e premiado pela plataforma, impressionou o Prémio Nobel da Medicina Richard Roberts. Ainda hoje, quando o britânico entretanto integrado na equipa fala do projecto, refere sempre o caso de Joaquina. “Achou absolutamente espectacular”, conta Pedro Oliveira.

As crianças com síndrome de Angelman apresentam um atraso cognitivo e psicomotor significativo e muitas delas não chegam a conseguir caminhar. No entanto, aos seis anos, depois de muita terapia, a massa muscular e a capacidade de equilíbrio de Gonçalo conferia-lhe já capacidade para o fazer. Problema? Ele recusava-se. Habituado a gatinhar, punha os joelhos no chão e chegava dessa forma onde queria. Joaquina andou algum tempo a magicar como mudar o rumo da história. Sabia, por experiência com o filho e na Raríssimas, que “replicar um milhão de vezes e nunca desistir” era a base da solução. E, um dia, lembrou-se de usar balões, pelos quais o filho sempre se tinha mostrado fascinado. E se, para lhes chegar, tivesse de se pôr e manter de pé?

Joaquina correu para um loja de desporto. Comprou umas joelheiras e revestiu-as com caricas — a ideia era fazer com que, ao tentar pôr-se de joelhos, o Gonçalo sentisse desconforto e evitasse esse gesto. Depois, encheu balões e colou-os no tecto da sala, a diferentes alturas. Repetiu-o por dois ou três meses. Chegava a casa, punha as joelheiras ao filho e chamava a atenção dos balões. Um dia, num sopro, “deu-lhe o clique”, recorda. “Percebeu finalmente que conseguia andar.”

Esta solução “muito simples mas eficaz nunca seria discutida numa consulta médica”, comenta Helena Canhão. E o objectivo da plataforma é essencialmente esse: “Pôr as pessoas a partilhar como vão resolvendo problemas do dia-a-dia e, com isso, ajudar outros.” “Não é substituir nada do que existe” — a Medicina tem um papel, estas inovações outro.

Na lista da mãe do Gonçalo houve outras criações. A certa altura, incomodada por o filho tremer da mão e a entortar para trás, cortou uma colher de pau e, com velcro, criou uma tala. Assunto resolvido. Noutra situação, para remediar as ausências do pai numa altura em que mudou de emprego, fez um boneco para o substituir. A história tem tanto de cómico como de sugestão para “pais de miúdos especiais”, diz Joaquina: “Costumo contá-la para lhes explicar que, durante toda a nossa vida e a vida deles, temos de inventar muito. Criar estímulos extra e pensar em planos B.”

Gonçalo sempre teve “uma paixão doida pelo pai”. De tal forma que, nas ausências dele, a vida de Joaquina, entretanto mãe de mais um menino, se transformava num inferno. Precisava de um substituto para o pai. Sem timidez, e entre alguma galhofa, entrou numa sex-shop e explicou a situação. Saiu de lá com um boneco insuflado. Em casa, vestiu-o com o pijama do pai, ainda com o cheiro dele, pôs-lhe um gorro e, já depois de conseguir adormecer o filho, pôs-lhe o boneco ao lado, aconchegou-o e já está. O Gonçalo passou a dormir melhor — e a mãe também.

Bolsos térmicos

As soluções simples como as criadas por Joaquina não têm grande potencial de comercialização. Quem considerar interessante a ideia dos balões pode simplesmente testá-la, à semelhança dos improvisos feitos com o boneco insuflado ou a tala improvisada. Mas outros casos há em que não é bem assim. E a próxima etapa no desenvolvimento da Patient Innovation surge daí. Pressionados por vários pacientes que solicitam ajuda para desenvolver soluções listadas na plataforma, os criadores planeiam, em breve, arrancar com um “projecto lateral” de ajuda de comercialização dessas inovações.

Aquela que foi desenvolvida para melhorar a vida de Diogo Lopes, agora com 15 anos, talvez possa ser integrada nessa esfera. Estudante de piano desde os cinco anos, Diogo viu ser-lhe diagnosticada a doença rara Charcot-Marie-Tooth aos dez. “Sem comprovação científica”, o jovem estudante na Escola de Música do Conservatório Nacional, em Lisboa, foi percebendo como o “exercício de desgaste moderado” de tocar piano podia ser “um factor de não progressão da doença a nível das mãos”.

Ao comunicar esta “solução” à Patient Innovation, Diogo Lopes falou-lhes também de alguns problemas. Por causa da sua doença neuromuscular e degenerativa, apresenta alterações da vascularização, sendo as mudanças da temperatura muito rápidas. Na prática, além do desconforto que Diogo costuma comparar a “[ter] uma pedra num sapato”, não conseguia fazer algumas posições no piano. E isso era uma pedra dupla na vida dele.

A equipa da plataforma de inovações perguntou à Junitec, uma empresa júnior composta por alunos do Instituto Superior Técnico, se podia agarrar o desafio. E assim nasceram os “bolsos térmicos” de Diogo Lopes, um dispositivo amovível capaz de acompanhar o pianista nos momentos pré concertos e aulas ou mesmo no dia-a-dia, mantendo-lhe as mãos quentes e diminuindo a dor. Os bolsos são colocados dentro de um casaco e têm um dispositivo que reage à electricidade através de uma bateria portátil.

Pela cabeça de Diogo nunca passou a ideia de “desistir”. Porém, as “deformações nas mãos” mudaram-lhe ligeiramente o rumo. Prossegue os estudos de piano, mas deixou-o para segundo instrumento e transferiu-se para a área de Composição. Quando chegar a hora de escolher o curso superior é por aí que pretende seguir.

A par disso, Diogo tem outros projectos. Há pouco mais de um ano, com ajuda dos pais e amigos, fundou a Associação Portuguesa de Charcot-Marie-Tooth para ajudar pessoas com a mesma doença. Já escreveu um livro cujos fundos reverteram para a instituição e, em Março, lança uma segunda obra, onde conta a história dele e o modo como vê o mundo. “Costumo olhar para mim, enquanto portador [desta doença], e vejo que tenho muita sorte. Sou tratado num hospital com condições muito boas (...). Olho à minha volta e sei que a realidade comum não é essa”, lamenta.

É um discurso no qual Joaquina, gestora do centro da Raríssimas na Maia, certamente se revê. Apoios específicos para portadores de doenças raras? “Não existem”, afirma, “há apenas leis e apoios para a deficiência”. Mas para crianças semelhantes a Gonçalo os apoios providenciados, em centros de paralisia, por exemplo, são manifestamente insuficientes. “Para se conseguirem ganhos com estes miúdos são precisos programas intensivos e muito adequados — e isso não existe.”

Improvisar. É uma palavra indispensável no dicionário de doentes e cuidadores. Na Patient Innovation, transformar esse improviso em inovações partilhadas e úteis ultrapassou em muito o desígnio inicial do projecto.  A partir de amanhã, dia 8, vão estar numa exposição de inovação no Dubai e, em Julho, no Museu da Ciência de Londres, serão responsáveis pela componente da saúde numa mega-exposição, posteriormente itinerante em 28 cidades europeias, Lisboa incluída. Foram 500 inovações em dois anos — e este pode ser apenas o início da viagem.

Ver mais em p3.publico.pt