Dois séculos depois, é tempo de tomar o pulso a um ícone da medicina

O estetoscópio encontra-se numa encruzilhada. Talvez mais do que nunca, nos seus 200 anos de história, esta ubíqua ferramenta da medicina está no centro de um debate acerca do que deve ser a prática médica.

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Fernando Veludo/nFACTOS

Nos últimos anos, os sons que o estetoscópio transmite ao médico, vindos do coração, dos pulmões, dos vasos sanguíneos e dos intestinos dos seus doentes, têm sido digitalizados, amplificados, filtrados e gravados. Há quatro meses, a Food and Drug Administration [FDA, a agência federal norte-americana de controlo dos medicamentos] aprovou o uso de um estetoscópio que, através de uma app de telemóvel, consegue reproduzir esses sons com fidelidade a milhares de quilómetros de distância e enviá-los directamente para um registo médico electrónico.

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Nos últimos anos, os sons que o estetoscópio transmite ao médico, vindos do coração, dos pulmões, dos vasos sanguíneos e dos intestinos dos seus doentes, têm sido digitalizados, amplificados, filtrados e gravados. Há quatro meses, a Food and Drug Administration [FDA, a agência federal norte-americana de controlo dos medicamentos] aprovou o uso de um estetoscópio que, através de uma app de telemóvel, consegue reproduzir esses sons com fidelidade a milhares de quilómetros de distância e enviá-los directamente para um registo médico electrónico.

Já existem algoritmos capazes de analisar os indícios recolhidos por um estetoscópio e de propor um possível diagnóstico. Mas a questão de saber se tudo isto representa um renascimento do potencial do estetoscópio enquanto ferramenta de diagnóstico ou o último estertor de um dispositivo obsoleto tem sido o tema de uma acesa discussão em cardiologia.

O uso generalizado de ecocardiogramas e o desenvolvimento de aparelhos de ecografia que cabem no bolso estão a pôr em causa o facto de os médicos continuarem a andar com auriculares e um tubo de borracha à volta do pescoço.

“O estetoscópio morreu”, diz Jagat Narula, cardiologista e vice-reitora da Escola de Medicina Icahn no Hospital Monte Sinai de Nova Iorque. “A era do estetoscópio acabou.”

William Reid Thompson, professor associado de Pediatria na Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins (EUA), discorda. “Ainda não chegámos ao ponto, e falta provavelmente muito tempo para lá chegarmos, [em que ouvir os sons do corpo possa ser substituído por imagens].” “Isso ainda é valioso”, acrescenta.

Uma coisa em que ambas as partes concordam, contudo, é em dizer que os médicos não sabem usar muito bem o estetoscópio – e que esta situação já dura há muito tempo.

Em 1997, uma equipa de cientistas analisou a capacidade de 453 médicos em formação e de 88 estudantes de Medicina interpretarem a informação obtida através do estetoscópio. Segundo esse estudo, “tanto os formandos de Medicina Interna como os de Medicina Geral apresentavam uma taxa preocupantemente baixa na identificação de 12 eventos cardíacos importantes e frequentes”.

Dezanove anos mais tarde, uma outra equipa tentou determinar quando é que os médicos param de progredir nas suas capacidades de “auscultação” – a arte de ouvir o corpo para detectar doenças. Resposta: após o terceiro ano do curso de Medicina.

Ainda pior: essa competência “pode vir a declinar ao longo dos anos de prática clínica, o que tem implicações importantes para a tomada de decisão médica, para a segurança dos doentes, para a gestão económica dos cuidados de saúde e para o futuro da educação médica”, escreviam os investigadores na revista Archives of Internal Medicine.

Isso não foi certamente o que o médico francês René Laennec terá vislumbrado em 1816, quando, incomodado por ter de encostar o ouvido ao peito de uma mulher para ouvir o seu coração, enrolou várias folhas de papel, formando um tubo para amplificar o som. A seguir, Laennec inventou o estetoscópio, sendo hoje considerado o pai da auscultação.

Em 2016, este dispositivo continua a ser um dos poucos instrumentos que os profissionais dos cuidados de saúde utilizam para determinar a natureza de um problema quando não o conseguem visualizar directamente.

Os médicos “são as pessoas mais conservadoras do mundo”, diz Sanjiv Kaul, director do Departamento de Medicina Cardiovascular da Universidade de Saúde e Ciência do Oregon (EUA). “Quando aprendem uma coisa, não querem aprender outra.”

Claro que o estetoscópio também é um ícone. Porém, o seu valor é mais do que simbólico. Encurta a distância física entre o médico e o doente. Obriga ao contacto humano.

A lista dos males médicos hoje mais frequentes é em parte responsável pelo declínio do estetoscópio. E a carga de trabalho do pessoal hospitalar faz com que os clínicos passem muito menos tempo com os doentes. Isso implica menos tempo para os examinar, em particular com a ajuda do estetoscópio. Muitos médicos também se queixam de que as exigências da manutenção de registos médicos electrónicos têm feito diminuir ainda mais o tempo que dedicam aos doentes.

“As rondas médicas são só gráficos e folhas de computador impressas. É horrível. Faz-me estremecer”, diz John Criley, professor emérito de Medicina e de Ciências Radiológicas na Escola de Medicina David Geffen da Universidade da Califórnia.

Há décadas que se tornou mais fácil mandar um doente cardíaco fazer um ecocardiograma. E esse exame de imagiologia, cada vez mais sofisticado, tem demonstrado ser mais fiel do que a interpretação através de um estetoscópio de tum-tuns, cliques, galopes e sopros produzidos pelo coração humano.

Alguns médicos fazem notar com tristeza que, por outro lado, os fornecedores e os hospitais podem exigir um pagamento adicional por um ecocardiograma, ao passo que um exame do peito com um estetoscópio não lhes dá lucro nenhum.

Estamos perante um círculo vicioso, uma vez que os jovens médicos têm agora menos mentores capazes de lhes transmitir a boa prática da auscultação. Por isso, num esforço destinando a contrariar esta situação, Thompson, Criley e mais um punhado de peritos dão aulas especiais aos jovens internos.

Durante uma dessas sessões, em finais de Dezembro, no Centro Pediátrico da Universidade Johns Hopkins em Baltimore, dois jovens médicos e um estudante de Medicina em visita da Síria ouviram com atenção os sons de um coração gravados através de estetoscópios especiais que recebiam sinais infravermelhos de um computador [simulando portanto um coração] . O “doente” assim auscultado era um atleta adolescente que tinha de repente desenvolvido dificuldades em aguentar o ritmo do campo de futebol. Teria ele um problema cardíaco?

Os três formandos sugeriram que esse era efectivamente o caso – talvez um buraco na parede que separa as duas câmaras superiores do coração? A doença, conhecida como "deficiência do septo atrial", era de facto a resposta certa.

“Pensem na importância do que acabaram de fazer”, disse Thompson ao trio. “Sem outra ajuda nem tecnologia para além do  vosso estetoscópio… vocês disseram: ‘Acho que ele tem uma deficiência do septo atrial.’”

Thompson coligiu milhares de sons cardíacos e criou o MurmurLab.org, onde qualquer pessoa pode aprender a ouvir os sons do coração. E, já este mês, vai inaugurar o MurmurQuiz.org, um site que permitirá a profissionais, estudantes e a qualquer um testar as suas capacidades na interpretação do significado desses sons.

No entanto, algumas faculdades de Medicina escolheram uma abordagem diferente. Desde 2012 que o Hospital Monte Sinai começou a fornecer aos seus estudantes dispositivos de ecografia, pouco maiores do que um telemóvel, mas que conseguem gerar imagens em tempo real do coração mesmo à cabeceira do doente. Várias outras faculdades deverão juntar-se à experiência no próximo Outono.

Os especialistas concordam em dizer que o estetoscópio continua a ser valioso para ouvir os pulmões e os intestinos. Mas no que respeita ao sistema cardiovascular “a auscultação é supérflua”. “Estamos a desperdiçar o tempo dos estudantes”, diz Narula. “O que me impede de ter um ecocardiógrafo na mão, se ele for tão pequeno como um estetoscópio?”

Por enquanto, estes ecocardiógrafos de bolso são sobretudo utilizados nos serviços de urgência dos hospitais, onde a velocidade é crucial. A sua qualidade, diz Thompson, ainda não é suficientemente boa para serem usados de forma rotineira noutras circunstâncias clínicas.

Todavia, um estudo publicado em 2014 na revista Journal of American Cardiovascular Imaging sugere que a fiabilidade destes instrumentos electrónicos portáteis é no mínimo superior à do exame físico. Os cardiologistas que os usavam conseguiram identificar correctamente 82% dos doentes com anomalias cardíacas, enquanto os cardiologistas que recorriam à auscultação apenas detectaram 47% das anomalias.

“Chegou a hora de descartarmos o estetoscópio, impreciso, embora icónico, e de nos juntarmos ao resto da humanidade nesta revolução tecnológica”, escreveu na altura Kaul, um dos autores do estudo, num editorial [na revista Echo Research and Practice].

Há também quem pergunte o que se poderá perder quando os médicos pararem de encostar esse disco, tantas vezes frio, à pele dos doentes. Num ensaio publicado no mês passado na revista New England Journal of Medicine, Elazer Edelman – um médico que dá aulas na Escola de Medicina da Universidade de Harvard e no Instituto de Tecnologia do Massachusetts (MIT) – fazia notar que o exame estetoscópico constitui uma oportunidade para criar um laço entre o médico e o doente.

“A relação entre o doente e o médico (…) é diferente de qualquer outra relação entre duas pessoas não relacionadas entre si”, salientou Edelman numa entrevista. “Ao distanciarmo-nos cada vez mais, estamos a deteriorar ou rasgar esse elo. Não é possível confiar em alguém que não nos quer tocar.”

Exclusivo The Washington Post/PÚBLICO