Um país dividido entre Donald, o grande líder, e Trump, o demagogo

Donald Trump propôs que todos os muçulmanos sejam proibidos de entrar nos EUA e foi atacado por todos os lados. Um dos candidatos do Partido Republicano lançou uma petição contra ele, mas as sondagens sugerem outros sentimentos.

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Trump lidera a maioria das sondagens na corrida do Partido Republicano Sean Rayford/AFP

Poucas horas depois de ter feito uma das propostas mais extremistas das últimas décadas numa campanha para as eleições presidenciais dos EUA, o magnata do imobiliário, estrela da televisão e candidato pelo Partido Republicano Donald Trump exercitava o seu poder na rede social Twitter para promover um dos seus outros preciosos objectivos para 2016: "Estou a autografar cópias do meu livro Crippled America. Encomende o seu agora – dá um óptimo presente de Natal!"

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Poucas horas depois de ter feito uma das propostas mais extremistas das últimas décadas numa campanha para as eleições presidenciais dos EUA, o magnata do imobiliário, estrela da televisão e candidato pelo Partido Republicano Donald Trump exercitava o seu poder na rede social Twitter para promover um dos seus outros preciosos objectivos para 2016: "Estou a autografar cópias do meu livro Crippled America. Encomende o seu agora – dá um óptimo presente de Natal!"

Entre a mensagem partilhada na segunda-feira em que defendeu a proibição da entrada de todos os muçulmanos nos EUA – imigrantes ou turistas – e aquela em que promoveu o seu livro Crippled America: How to Make America Great Again, Trump dedicou mais tempo a destacar uma sondagem da CNN que lhe dá vantagem entre os candidatos do Partido Republicano no estado do Iowa do que a responder à acusação de que se tornou oficialmente num fascista racista. Ou, segundo a versão mais branda do também candidato pelo Partido Republicano Jeb Bush, um "desequilibrado".

Mesmo para os padrões de Donald Trump, a ideia de fechar as portas dos EUA a um grupo da população mundial por causa da sua religião é "ridícula", disse o governador Chris Christie, outro candidato do Partido Republicano.

O senador Lindsey Graham, que também está na corrida dos Republicanos – e que é alvo de sátira em programas de entretenimento por fazer pouco mais nos debates do que sugerir declarações de guerra a todos os inimigos dos EUA – disse numa entrevista à CNN, esta terça-feira, que há uma forma de "devolver a grandeza à América": "Dizer ao Donald Trump que vá para o Inferno."

E a lista de puxões de orelha a Donald Trump no interior do próprio Partido Republicano continua. O governador John Kasich (correcto, mais um candidato à Casa Branca) lançou mesmo uma petição para "travar o Trump". "Já chega, Trump. A equipa de Kasich denunciou recentemente a retórica perigosa de Trump. Precisamos de um líder que nos una – e não que nos divida", lê-se no site da petição.

Até Ben Carson, o neurocirurgião reformado que até há bem pouco tempo surgia apenas atrás de Donald Trump nas sondagens, e que afastou completamente a ideia de os EUA virem algum dia a ter um Presidente muçulmano, torceu o nariz à proposta do magnata: "Todas as pessoas que visitam o nosso país devem ser registadas e monitorizadas durante a sua estadia, tal como acontece em muitos países. Nós não defendemos, nem defenderemos, uma selecção com base numa religião", disse o seu porta-voz, Doug Watts.

Se estas foram as reacções de outros candidatos do Partido Republicano, é fácil imaginar o que disseram os candidatos do Partido Democrata.

"Donald Trump afastou todas as dúvidas: ele está a concorrer para a Presidência como um demagogo fascista", escreveu no Twitter o antigo governador Martin O'Malley, o menos popular nas sondagens dos três candidatos oficiais do Partido Democrata.

Bernie Sanders, o candidato mais à esquerda dos três, dispensou o mesmo número de mensagens no Twitter à proposta de Donald Trump: "Os EUA são uma nação mais forte quando se une. Somos mais fracos quando permitimos que o racismo e a xenofobia nos divida"; "Ao longo da história, os demagogos tentaram dividir-nos com base na raça, no género, na orientação sexual ou nos países de origem"; "Agora, Donald Trump e outros querem que odiemos todos os muçulmanos."

Do alto da sua enorme vantagem nas sondagens, Hillary Clinton reagiu de uma forma mais institucional: "Declarar guerra ao islão e demonizar os muçulmanos americanos não vai apenas contra os nossos valores – vai ao encontro dos objectivos dos terroristas."

Mentiras e divisões
Esta não é a primeira vez (e por esta altura é relativamente seguro afirmar que não será a última) que Donald Trump provoca uma gigantesca polémica na campanha para as presidenciais nos EUA.

Quando anunciou a sua candidatura, em Junho, começou por hostilizar os imigrantes que entraram nos EUA sem documentos, em particular os mexicanos, descrevendo-os como violadores, traficantes e outros criminosos empurrados pelo Governo do México para fora do seu país de origem. Depois disso, já fez vários comentários jocosos – sobre a doença de um jornalista do The New York Times; sobre o aspecto físico de Carly Fiorina, outra candidata do Partido Republicano; sobre o comportamento da jornalista da Fox News Megyn Kelly durante a condução de um debate, sugerindo que ela estaria menstruada.

Mas principalmente desde os atentados terroristas de 13 de Novembro em Paris, que fizeram 130 mortos e foram reivindicados pelo autodesignado Estado Islâmico, Donald Trump transformou-se num camião desgovernado de declarações contra os muçulmanos, sem fazer qualquer distinção entre a religião e a ideologia fundamentalista defendida e praticada por organizações como os vários braços da Al-Qaeda ou o Estado Islâmico.

Primeiro deixou em aberto a hipótese de criar uma base de dados para registar os muçulmanos norte-americanos (dizendo depois que estava a referir-se apenas aos 10 mil refugiados sírios que a Administração Obama se mostrou disponível para receber em 2016 – um número que Trump resolveu fixar em entre 200 mil e 250 mil sempre que fala em público); depois, disse que "milhares e milhares" de muçulmanos festejaram nas ruas do estado de Nova Jérsia os atentados terroristas contra o World Trade Center, a 11 de Setembro de 2001 – uma alegação que não passa da repetição de um rumor nascido logo no dia dos atentados, e que vários responsáveis da polícia e políticos, tanto do Partido Democrata como do Partido Republicano, já desmentiram.

Não são as suas declarações que têm surpreendido o eleitorado norte-americano – afinal, Donald Trump batalhou durante muito tempo, embora sem sucesso, para provar que Barack Obama nasceu no Quénia, e sugere regularmente que o actual Presidente dos EUA é muçulmano e que tem ligações à Irmandade Muçulmana. O que tem surpreendido vários analistas é que não há meio de o magnata cair nas sondagens – aliás, é precisamente quando os seus números descem ligeiramente que Donald Trump lança uma declaração bombástica, para agarrar o seu eleitorado fiel, que vê nele o homem que decretou o fim do discurso politicamente correcto, e o único que pode "devolver a grandeza à América", de preferência ao pontapé.

"Campanha de um demagogo"
É por isso que o magnata aposta quase tudo nos comícios e nas redes sociais, palcos privilegiados para as suas expressões e sound bites tão simples e directos que chegam a roçar a infantilidade.

Quando lhe perguntam como é que conseguirá identificar, juntar e expulsar os cerca de 11 milhões de imigrantes sem documentos que se estima estarem a viver nos EUA (e convencer o Congresso a passar a factura), limita-se a responder: "Eu consigo fazê-lo, chama-se gestão." Quando lhe perguntam como é que conseguirá construir um muro ao longo da fronteira com o México (e convencer o Governo do México a pagar por isso), responde: "Eu consigo fazê-lo. Vai ser um muro grande e lindo."

Também agora, Trump terá dificuldades para explicar como é que os serviços de imigração vão perceber que uma determinada pessoa é muçulmana, mas há poucos curiosos a suster a respiração até que o candidato apresente um plano exequível – e que jornais como o The New York Times e Washington Post se deram ao trabalho de tentar perceber se teria alguma possibilidade de ser aprovado (a resposta é não: mesmo que o Congresso aprovasse, o Supremo reprovaria).

O grande trunfo de Donald Trump na actual campanha não é a capacidade para implementar medidas fantásticas, mas sim a capacidade para convencer uma parte do eleitorado que está farta da política tradicional e para quem ser-se politicamente correcto é, muitas vezes, o mesmo que ser apenas cortês ou sensível ao sofrimento alheio.

"O poder negro das palavras tornou-se a característica definidora da corrida de Trump à Casa Branca num grau raramente visto na política moderna, já que ele evita as habituais armadilhas das campanhas – as políticas, os apoios, os anúncios publicitários, as doações – e em vez disso usa uma linguagem poderosa para se ligar, e muitas vezes para alimentar, os medos e o sentimento de injustiça dos americanos", escreveu o The New York Times no fim-de-semana passado, num texto em que são analisados vários discursos de Donald Trump.

Jennifer Mercieca, especialista em discursos políticos e professora na Universidade Texas A&M, disse ao jornal norte-americano que o sucesso do candidato explica-se com a divisão clara que ele estabelece com as suas palavras.

"Toda a sua campanha é gerida como a campanha de um demagogo – a linguagem de divisão, o culto da personalidade, a forma de categorizar e de difamar pessoas em traços largos. Se és imigrante ilegal, és um perdedor. Se és capturado numa guerra, como John McCain, és um perdedor. Se tens uma incapacidade, és um perdedor. E depois há os vencedores, especialmente ele próprio, com repetidas referências à sua fortuna e ao seu sucesso e inteligência."