A ficção que há nas velhinhas

Na abertura do programa Heart Beat, Tiago Pereira explica porque não é “o Giacometti do século XXI”. E fá-lo atirando-se para os braços da contradição.

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Manuel António Gonçalves, poeta popular, tem décimas “a todos os ‘afundamentos’: à mocidade, à morte, ao casamento, à vida e a tudo quanto vamos passando”. A sua declaração e a pose estática em que faz o anúncio, com a cerca e o arvoredo por detrás a explicitar a sua origem alentejana, são tudo menos aleatórios. Os primeiros segundos de Porque Não Sou o Giacometti do Século XXI, o filme com que Tiago Pereira faz a abertura do programa Heart Beat do DocLisboa, enquadra de imediato as duas grandes questões com que se debate: a interrogação do propósito do seu cinema, os seus ‘afundamentos’, a razão por que faz aquilo que faz; e a assumida falsidade dos quase 90 mil vídeos que engrossam o acervo do canal de vídeo A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria.

Falsidade será talvez uma expressão demasiado forte, mas que mais facilmente contraria a genuinidade que é assumida como constante dos vídeos de Tiago Pereira. Na verdade, em todos eles há uma ficção que o realizador aceita filmar e que acolhe em toda a sua impureza, sujidade, encenação.

Quando Tiago Pereira sai de um café numa terreola deste país mandado por uma senhora em busca de “uma velhinha” (“Sou um átomo dinamizador de velhinhas”, diz ele propondo uma definição) de 80 anos que há-de partilhar consigo uma canção de embalar, quando ao entrar na casa da velhinha esta o informa que para ser gravada a cantar esse tema terá de se vestir a preceito, terá de ir buscar um berço, terá de ir buscar um bebé de brincar que terá também de vestir, quando Tiago permite tudo isto sabe que está a dar corda a uma ficção. “[A velhinha] Deu-nos aquilo que para ela era a forma de se mostrar ao mundo”, comenta. “E ela só fez esta encenação porque sabe o que é uma gravação. Isto significa que já foi gravada antes. Há esta ideia de que as pessoas vivem por ali perdidas e que nunca ninguém chegou lá. Mas Portugal deve ser dos sítios onde as pessoas mais gravaram.”

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Tiago Pereira. O que lhe interessa é documentar pessoas, mais do que reportórios. Recusa comparações ao corso Michel Giacometti (que realizou fundamentais recolhas da música portuguesa no século XX), por não ter qualquer ambição etnográfica DANIEL ROCHA

“E como digo, no princípio do filme, muitas vezes estou a enganar porque aquela pessoa só está a tocar para mim naquele momento e isso era uma coisa que me inquietava.” Se à medida que acumulava horas de filmagem Tiago reconhecia o “ridículo” de documentar pessoas que já só cantavam com uma câmara à frente ou que precisavam de ter um papel para conseguir acertar com uma letra que se julgaria ser uma segunda pele, em vez de querer esconder aquilo que poderia ser uma fraude, quis matar o equívoco. “Por isso é que digo, no fim, que tem de se partir o espelho. Às vezes é mesmo preciso mostrar como as coisas são do outro lado.”

A pouco e pouco foi também percebendo que lhe interessava mais documentar pessoas do que reportórios. Daí que recuse qualquer comparação ao corso Michel Giacometti (que realizou fundamentais recolhas da música portuguesa no século XX), por não ter qualquer ambição etnográfica; daí que lhe seja tão importante gravar as décimas de Manuel Gonçalves quanto um violinista no deserto vermelho açoriano de Santa Maria que pega no instrumento e apresenta a autoria do tema que se segue: “agrupamento ABBA”. Ou seja, Tiago Pereira apenas regista aquilo que as pessoas lhe querem oferecer.

Princípio de ruptura
Isso não se faz sem uma série de contradições que pontuam todo o filme e das quais o realizador não se esquiva. Se Tiago confessa, nos primeiros minutos de Porque Não Sou…, não saber exactamente porque faz aquilo que faz, mais à frente dirá que a razão é tão simples quanto “porque isto nos preenche e gostamos disto”. Se Tiago recusa ser o Giacometti do século XXI, puxa a comparação para título e coloca no filme várias citações que estabelecem essa ligação. “Porque há um princípio de democratizar [o acesso à cultura popular] que nos é comum”, justifica. Mas tudo acaba aí, garante. Porque a declaração mais assertiva deste filme não é tanto a negação de ser “um novo Giacometti”, mas antes a afirmação de Tiago enquanto realizador.

Acontece que a sua afirmação enquanto realizador se faz tornando-o protagonista, objecto do seu próprio cinema. “Viva a contradição!”, responde. “O meu trabalho é contraditório e é giro perceber-se isso. É contradizendo-nos que chegamos às coisas mais depressa.” É da contradição e do conflito que este filme nasce. Porque Tiago Pereira está não apenas a escancarar as portas dos bastidores da sua prática, mas também a pôr-se em causa e ao trabalho que vem desenvolvendo nos últimos anos. Foi no final da rodagem dos 26 episódios da série O Povo que Ainda Canta, para a RTP, que este filme começou, na sequência de “uma grande discussão” entre Tiago Pereira e a operadora de som Telma Morna sobre a razão mais funda por detrás de milhares de horas filmadas. Decidiram então filmar a quente, na Fajã de Santo Cristo, as primeiras imagens que saltaram para Porque Não Sou…, com Tiago em roda livre a “deitar para fora” as suas inquietações.

Foi por isso que sentiu depois necessidade de complementar esse “desabafo” com uma entrevista dirigida pela cineasta Inês Oliveira, que investe o filme de um tempo de reflexão, esse tempo que teima em escapar-lhe quando filma em permanência – “quando se filma muito e se faz muito, não se pensa, só se age”, diz. E é esse tempo de reflexão que lhe permite agora afirmar que “este filme é uma espécie de princípio de ruptura”. Chegado aqui, Tiago Pereira começa a fechar um círculo sobre um território português desertificado, provavelmente a caminho de se transformar “numa coutada de caça para ricos”. Em cada momento, este é também um cinema de luta contra o tempo.