O Sr. Bodyboard trouxe o Mundial à Nazaré

Nove vezes campeão mundial na prancha curta e sem quilhas, Mike Stewart passou de jovem revoltado e obcecado por ondas a figura reverenciada por todos os adeptos destes desportos. Aos 52 anos, esteve em Portugal para disputar duas etapas do Circuito Mundial.

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Mike Stewart é um homem contido. Mas quando a espanhola das Canárias Alexandra Rinder se sagrou campeã mundial de bodyboard pela segunda vez, aos 17 anos, e foi carregada em ombros pelo areal da Praia do Norte no dia 30 de Setembro, percebeu-se a dificuldade de Mike em conter as lágrimas.

É-lhe permitida a emoção, já que é pioneiro do bodyboard, o competidor mais velho do circuito mundial e ainda o patrocinador, mentor e ídolo de Alexandra. Uma semana antes, na Praia Grande, este havaiano esguio e calvo também tinha ficado ligeiramente atrapalhado quando o brasileiro Helliton Loureiro pousou a prancha e as barbatanas na areia e correu para o abraçar antes de se atirar às ondas precisamente para competir numa eliminatória com o veterano. “Todos nós que andamos no circuito sentimos um enorme carinho e admiração pelo Mike”, explica com largo sorriso Hermano Castro, outro brasileiro do circuito da Associação Profissional de Bodyboarders (APB) e grande amigo de Helliton. “Sentimos o maior respeito pelo ‘Tio Mike’ e temos uma dívida de gratidão por tudo o que ele fez pelo nosso desporto. Vê-lo competir ao mais alto nível com 52 anos é qualquer coisa!”, acrescentou.

Para Tanner McDaniel, um havaiano como Stewart e a mais jovem aposta de uma longa linha de talentos patrocinados pelo “Sr. Bodyboard”, Mike Stewart é “um mentor e o melhor professor do mundo”.

Em 2012, Tanner tornou-se o mais jovem atleta a concorrer no Pipeline Pro, a etapa rainha do Circuito Mundial, e recorda como o episódio “mais marcante” da sua vida a primeira vez que surfou Pipeline com “ondas de 14 pés”, cerca de quatro metros: “Ele [Stewart] ensinou-me tudo, onde passar a rebentação, onde apanhar as ondas, como surfar ali. E, a dada altura, apanhou uma e deixou-me ali sozinho. Nunca remei tão depressa na minha vida”, confessa, numa gargalhada.

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Stewart com Tanner McDaniel, jovem que patrocina e de quem é mentor e professor cortesia hélio antónio

Mike Stewart nasceu em 1964 na ilha de Oahu, terra natal do Presidente dos EUA, Barack Obama, e palco do ataque japonês à base de Pearl Harbor que empurrou os americanos para a Segunda Guerra Mundial. “Sou havaiano tal como o meu pai”, afirma com orgulho à Revista 2. Um orgulho que carrega algumas cicatrizes dos episódios de racismo que viveu por ser um havaiano louro, marcado com a carga genética daqueles que os nativos de origem polinésia chamavam pejorativamente Haole. “É um termo que tem muitas interpretações, mas que pode ser traduzido como ‘aquele que não respira’, o que, dizem os locais, tem que ver com o facto de os primeiros homens brancos a chegar às ilhas do Havai susterem a respiração quando eram abraçados. Era um insulto sério”, explica Stewart.

Moldado pela hostilidade e pelo divórcio dos seus pais quando tinha apenas cinco anos, o filho do meio de uma prole de três cedo se refugiou no escape mais óbvio para quem cresceu no arquipélago famoso por ter dado ao mundo o surf. “Como todos os havaianos, passávamos os tempos livres a surfar, fosse em pé, deitados ou sem prancha a fazer bodysurf. O meu pai era surfista e shaper, construía as suas próprias pranchas, por isso, naturalmente, experimentei o surf. Detestei. As ondas de que gostava eram rápidas e rasas e não conseguia colocar-me em pé a tempo, caía e levava com a prancha dura na cabeça”, conta. E rapidamente começou a fazer bodyboard, versão moderna do paipo — a prancha havaiana de madeira em que o surfista seguia deitado estava prestes a ser reinventada por Tom Morey, um ex-engenheiro aeronáutico apaixonado pelo surf e que estava a criar novas pranchas com materiais sintéticos.

“O meu pai deu-me uma. Na altura era um kit que se tinha de montar e era uma coisa macia, flexível e ideal para as ondas tubulares que eu gostava.” O destino haveria de colocar Mike Stewart e Tom Morey na mesma ilha.

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“Aos 14 anos, mudei-me para a Big Island [principal ilha do arquipélago do Havai]. Foi uma altura difícil da minha vida. Eu e os meus irmãos não estávamos a dar-nos bem na escola. Em Oahu frequentávamos um colégio algo elitista, o Punahou, onde também estudava Obama, com quem não me relacionava porque já ia uns anos à minha frente. A minha mãe estava sozinha e trabalhava muitas horas para nos sustentar”, relata-nos agora Mike Stewart.

O único escape era o mar. Mas até isso era um problema: “Vivíamos num vale longe do oceano e era complicado lá chegar, mas passava todos os momentos que podia nas ondas.” Lembra-se até de pedir à mãe, como presente de aniversário, que o levasse à praia e o deixasse surfar umas horas antes de seguir para a escola.

Foi por causa da mudança para Big Island que conheceu Tom Morey, a quem chama “genial” e que adoptou quase como um segundo pai. “Soube que ele também lá morava e fui oferecer-me para trabalhar no que ele quisesse. Felizmente aceitou.” Começou por limpar a oficina e fez de tudo na pequena empresa de Morey. “Tom é um tipo incrível e pensou em coisas anos à frente do seu tempo. Eu varria o chão da oficina e arrumava a cave onde ele guardava projectos abortados. Muitas vezes, agarrava neles e levava-os para casa para estudar e tentar completá-los. Pequenas coisas como fundos de prancha. Sempre fui um engenhocas que desmontava televisões e todo o tipo de aparelhos para saber como funcionavam, acho que é uma coisa de família, o meu pai era mecânico nos tempos livres e o meu avô foi engenheiro para a Lockheed [fabricante de aviões].”

Stewart estreou-se na competição, em 1979, na Praia de Magic Sands, na Big Island. Mas não começou pelo bodyboard, onde se viria a consagrar, antes pelo bodysurf, uma modalidade em que se surfa apenas com o corpo e o auxílio, facultativo, de barbatanas ou outros pequenos acessórios. Mike conta: “Entrei num campeonato e fui segundo classificado. Acho que foi aí que lhe ganhei o gosto...” O gosto valeu-lhe 15 triunfos no Pipeline Bodysurf Classic, o evento mais prestigiado do bodysurf.

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Stewart estreou-se na competição, em 1979, na Praia de Magic Sands, na Big Island

“Nas competições encontrei tipos de outras ilhas, com mais experiência. Eu tinha desenvolvido o meu estilo a emular [imitar]o que se fazia numa prancha de surf, eles já faziam manobras como os ‘360’, uma rotação básica que qualquer miúdo com meses de bodyboard já faz, mas que, na altura, era bastante avançado. Adaptei-me, evoluí. E comecei a ganhar. Estabeleci um recorde ao chegar a todas as finais de campeonato durante três anos.”

Mike evoluía no bodyboard e a própria modalidade também: quando surgiu o circuito mundial, em 1995, o bodyboard já era um sucesso comercial e Tom Morey via o seu sonho de democratizar o surf no bom caminho. Mais do que isso, tinha-se tornado um fenómeno de massas. Ninguém percebeu que este sucesso era, também, o princípio do desastre.

Nazaré no mapa mundial das ondas grandes

Em finais dos anos 1970, Tom Morey vendeu a sua invenção à Kransco, um grupo especulador que via naquela prancha uma forma de ganhar dinheiro fácil. Em 1994, a Kransco foi comprada pela Mattel, o gigante fabricante de brinquedos que quintuplicava em receitas toda a indústria do surf mas não tinha a sensibilidade para perceber a cultura dos desportos de ondas. “Trataram o bodyboard como se fosse o novo frisbee ou um qualquer brinquedo de praia”, lamenta Stewart, que passou a ser patrocinado pela Mattel nesse ano.

“Ganhava cerca de 350 mil dólares ao ano e tinha acabado de assinar um contrato de cinco anos quando eles quiseram cessar o vínculo unilateralmente porque queriam deixar o negócio [do bodyboard]. Só me restava arranjar um advogado e ir para a guerra.” Ele próprio acabou como a única vítima. Recorda: “Tinha um advogado de topo. Quer dizer, o tipo desmarcava reuniões com o Arnold Schwarzenegger! Era um tubarão dos grandes, mas acabou por me tramar. Levou-me milhares de dólares em honorários e, quando percebeu que eu não tinha mais dinheiro para lhe pagar, fez um acordo. Eu aceitei porque era jovem, ignorante e queria sair daquilo tudo. Foi um erro. Feitas as contas, após despesas, fiquei praticamente falido.”

Mas desse momento consegue retirar uma lição de vida pela positiva: “Fui obrigado a fazer um downgrade material e um upgrade espiritual. Percebi que as coisas realmente importantes da vida não se compram” (e Stewart ainda conseguiu montar a empresa Science Bodyboards e mais duas, de acessórios, Gyroll e Viper, que são prestigiadas marcas no mundo do bodyboard).

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Pela segunda vez campeã mundial de bodyboard, Alexandra Rinder é patrocinada por Mike Stewart cortesia hélio antónio

“A Mattel distribuiu  milhões de pranchas em grandes armazéns dos EUA com margens que as lojas de surf, com volume de vendas muitíssimo inferior, não podiam suportar e contribuiu para acicatar a hostilidade da indústria de surf e dos surfistas, que, aliás, nunca viram o bodyboard com bons olhos”, explica Stewart.

O nove vezes campeão do Mundo é, talvez, o único bodyboarder a sobreviver ao escárnio dos primos surfistas. Ao ponto de a conceituada revista Surfer ter publicado um artigo em que questionava, provocatoriamente, se Stewart seria “o melhor surfista do Mundo”.

O próprio encolhe os ombros e responde com um episódio: “Um dia, organizaram um campeonato em Tavarua onde eram distinguidos os melhores tubos, em surf ou em bodyboard. Eu mostrei grande controlo nos tubos graças ao uso das barbatanas, que me permitem travar e atrasar na onda para ir mais fundo no tubo, e ganhei. Ao ver aquilo, o dono de uma das maiores multinacionais do surf perguntou ao organizador do campeonato o que é que ele queria com aquela prova, se pretendia que os surfistas ficassem mal vistos...”

A passagem por Portugal é habitual no roteiro do Mundial que começou em 1995. Viana do Castelo foi o palco da primeira etapa fora do Havai, logo nesse ano, e o Sintra Portugal Pro comemorou em 2015 o 20.º aniversário. Mas a passagem pela Nazaré é especial para Mike, que em 2009 esteve pela primeira vez na vila piscatória transformada em capital mundial das ondas grandes.

Stewart assume que agora se interessa essencialmente por ondas “grandes” e veio competir ao conceituado Sumol Nazaré Special Edition, uma prova especial só para convidados. Competiu e ganhou. Tinha na altura 46 anos. Para Mike, foi mais um troféu; para a Nazaré, uma gigante projecção mediática e uma lição com consequências para a vila e para Portugal.

Pedro Pisco, da empresa municipal Nazaré Qualifica, a entidade responsável pela gestão da Praia do Norte como destino para desportos de ondas, explica: “A ideia de trazer Mike Stewart surgiu como consequência do impacto incrível que essa prova tinha tido dois anos antes.” Em 2007, o fotógrafo Miguel Barreira tinha vencido o World Press Photo com a imagem do nazareno Jaime Jesus a ser projectado numa onda gigante.

“Era difícil bater a exposição mediática dessa foto e pensámos que trazer esta lenda dos desportos de ondas poderia ser o caminho”, justifica Pisco. E, de facto, Mike Stewart passou um mês na Nazaré e desdobrou-se em entrevistas. “O Mike transcende o bodyboard e foi entrevistado por todos os media de surf nacionais e alguns europeus, mas também por meios de comunicação generalistas. Superou mesmo o impacto do prémio do WPP.”

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Stewart esteve pela primeira vez na Nazaré em 2009 cortesia hélio antónio

À parte o retorno mediático que Stewart trouxe ao campeonato e à Nazaré, houve um momento que se haveria de revelar uma espécie de epifania para os homens que organizavam o Special Edition.

Pedro Pisco recorda: “Havia uma ondulação enorme e perfeita na véspera do Special Edition. Estávamos todos no farol a ver as ondas gigantes a entrar. Mike Stewart, eu, o Paulo Caldeira, produtor do evento, e os meus colegas Dino Casimiro e Paulo Salvador. E, de repente, com a maior naturalidade, o Mike disse: ‘Arranjem-me uma moto de água que eu vou lá fora ver se desço uma daquelas.’ Lembro-me perfeitamente de que o Caldeira, ele próprio bodyboarder e antigo competidor, estava sentado numa pedra a ver o mar e ia caindo... De repente, estava ali um especialista do surf mundial a dizer ‘é possível surfar aquilo’. Daí a trazermos o Garrett McNamara e montarmos toda a estrutura que possibilitou quebrar recordes do mundo de ondas grandes na Praia do Norte foi um passo.”

O projecto North Canyon, de que McNamara é o rosto, teve um impacto tão grande que agora a Câmara Municipal da Nazaré procura mostrar que a Praia do Norte não são só ondas de 30 metros e que tem ondas para todos, conforme sublinha Walter Chicharro, presidente da autarquia: “A nossa aposta no Mundial de Bodyboard é uma aposta sustentada, de futuro, que pretende mostrar o quão versátil é a Praia do Norte e diversificada a sua oferta. E queremos ter aqui o Mundial por muitos e bons anos.” Para já, essa vontade traduz-se num acordo de quatro anos entre a autarquia e a APB, assinado na última quarta-feira.

Daqui a quatro anos ou mesmo uma década, onde estará Mike Stewart? Há quem aposte que ainda a competir no Circuito Mundial. Afinal, competir com os melhores bodyboarders do mundo aos 52 anos não está ao alcance de qualquer um, pelo que tudo é plausível.

Mas qual é o segredo do seu sucesso? Para quem privou com ele, como o seu ex-patrocinado Zsolt Lorincz, proprietário da escola de bodyboard Puremotion, de Carcavelos, parte da resposta resume-se à palavra “disciplina”: “Uma vez, durante o Sintra Portugal Pro, ele passou algumas semanas em minha casa. Todos os dias tinha a mesma rotina: acordava às seis da manhã, ia treinar, regressava a casa, alongava, ia surfar outra vez à tarde... E a sua alimentação era supercuidada.”

Mas o próprio Mike explica que nem sempre foi assim: “Quando fiz 40 anos, estava na pior forma que alguma vez tive na vida, e foi a minha mulher, Lisa, que é nutricionista, que me encostou à parede e me perguntou se queria mesmo engordar, envelhecer, acabar... Ela apresentou-me a Paul Chek, um guru do exercício de alta performance que revolucionou a minha forma de estar, física e espiritual. Hoje sigo os seus ensinamentos numa combinação com uma dieta metabólica, desenhada especificamente para a minha biologia.”

O resultado, obviamente, é bom. Mas até quando irá competir no circuito mundial ele próprio não sabe responder: “Sinto-me muito bem e sem vontade de abrandar.”

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