Brexit: milhares de pessoas dispostas a mudar de nacionalidade

Com medo que os eleitores britânicos votem "não" à permanência na União Europeia, os europeus residentes no Reino Unido estão a requerer a nacionalidade.

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A recepção que o primeiro-ministro David cameron teve no continente ao "excepcionalismo britânico" foi mais que gelada Kieran Doherty/REUTERS

Num inquérito realizado pelo jornal The Guardian a 1200 cidadãos europeus residentes no Reino Unido, a maioria confirmou que já tinha dado início ao processo para obter a dupla nacionalidade, ou estava a considerar pedir a cidadania num futuro próximo. Entrevistas mais prolongadas revelavam que essa decisão era motivada pela aproximação do referendo à saída da União Europeia (ou Brexit), mas sobretudo que os novos candidatos à cidadania britânica escolhiam essa via com um misto de renitência e enfado, por considerarem essa a “única alternativa” que lhes garante as mesmas condições – direitos e benefícios – de que gozam agora.

Uma das inquiridas, a francesa Victoria Pinoncely, de 27 anos, já preencheu os documentos para solicitar o estatuto de residência permanente, o primeiro passo para o pedido de nacionalidade (que só é possível iniciar depois de um ano). O processo, considera, é “bastante alienante”. Mas nem é isso que a incomoda mais. “A União Europeia não é perfeita, mas eu acredito no projecto europeu”, dizia.

Chegada a Londres para um mestrado em planeamento, no âmbito do programa Erasmus, Victoria acabou por encontrar um emprego e fixar-se na capital inglesa – “Sem papeladas, sem complicações, só um número”, recorda. Para ela, a União Europeia representa a paz e a compreensão entre os diversos estados-membro. “A longo prazo, não sei o que irei pensar sobre viver num país que escolheu virar as costas a isso. Talvez fique ressentida. É um pouco como se tivesse apostado no cavalo errado”, compara.

A realização do referendo – prometido durante a campanha para apaziguar a ala eurocéptica do Partido Conservador, e esvaziar a atracção eleitoral da formação nacionalista UKIP –, foi confirmada pelo primeiro-ministro David Cameron, que em Maio iludiu as previsões das sondagens e conquistou uma maioria parlamentar confortável. Nas semanas seguintes, Cameron visitou várias capitais europeias, para promover a sua proposta de renegociação dos termos dos tratados da UE, incluindo a repatriação de uma série de competências agora atribuídas a Bruxelas, de forma a acomodar o “excepcionalismo” britânico. A recepção no “continente” foi mais do que gelada.

Entretanto, o líder conservador anunciou que na campanha para o referendo vai defender a permanência do Reino Unido na UE. Com a cotação política em alta, Cameron acredita estar em condições de convencer o eleitorado. Mas vários analistas têm repetidamente alertado para o carácter imprevisível da votação.

"O pior é a incerteza"
Como observou ao The Guardian Stephanie Zihma, uma alemã que vive em Edimburgo, “o pior é a incerteza”. A académica tem estado atenta ao debate político e aos relatórios e estudos que aferem o impacto de uma eventual saída do Reino Unido do bloco europeu. “Mas enquanto toda a gente que fala no Brexit está preocupada com as consequências macroeconómicas e políticas, ninguém tem em consideração o choque e impacto individual para milhares de pessoas”, dizia. “Construí a minha vida aqui. Mas para ficar, vou ter de pedir um visto? Vou ter de cumprir critérios diferentes para poder trabalhar? Ninguém sabe dizer”, lamenta.

O diário também relatava o caso de Tine Juhlert, uma dinamarquesa casada com um britânico há mais de 20 anos, que a contragosto se vai naturalizar para poder viajar com um passaporte do Reino Unido. “Francamente, não me agrada nada a ideia. Não me parece bem ter de perder tempo e dinheiro para poder entrar num clube ao qual já pertenço, e continuar a usufruir dos benefícios e do estatuto que já me tinha sido reconhecido”, diz. “Para todos os efeitos, eu sou uma cidadã britânica como qualquer outra: pago os meus impostos e os meus empréstimos, cumpro com todas as minhas obrigações. Pensava que depois de mais de 20 anos, já tinha feito tudo o que era preciso para provar que pertenço aqui, mas agora constato que, afinal, este país não gosta assim tanto que eu esteja cá. Isso é muito irritante”, considera.

Quando um amigo canadiano foi expatriado, imediatamente após ter concluído um pós-doutoramento, é que Juhlert percebeu as possíveis implicações do Brexit. “Como seria a minha vida depois disso? Concordo que há muitos aspectos da União Europeia que merecem ser reformados, mas continuo a acreditar que faz mais sentido estarmos todos juntos do que separados. Nesse sentido, estou muitíssimo preocupada com uma possível vitória do 'não' no referendo”, confessou.

Igualmente assustados com as eventuais consequências do Brexit para a sua vida pessoal estão milhares de cidadãos britânicos residentes em vários países da UE, incluindo em Portugal. Uma parcela significativa de expatriados britânicos são reformados, que receiam perder o acesso aos cuidados médicos garantidos pelo sistema nacional de saúde, ou o regime de benefícios fiscais dos seus países de acolhimento.

Britânicos no estrangeiro
As estimativas oficiais apontam para a existência de 2,4 milhões de cidadãos “comunitários” no Reino Unido, e de quase dois milhões de britânicos em países da União Europeia. Os números referentes à naturalização de cidadãos da UE mostram uma clara tendência ascendente, com os processos concluídos a aumentarem de dez mil em 2009 para mais de 18 mil em 2013. O reverso da medalha também será verdadeiro.

Aiden Macfarlane, que há três anos trocou a cidade de Manchester pela ilha de Gotland, na Suécia, começou a tratar dos papéis para a naturalização assim que o referendo britânico à permanência na UE foi confirmado. A sua maior preocupação tem a ver com o futuro da empresa que abriu na Suécia, há pouco mais de um ano, e o seu estatuto de residência legal. “Esta é uma situação louca, em que ninguém pode dizer claramente o que vai acontecer. O risco é ficar numa terra de ninguém: e depois o que acontece à minha empresa, e à minha casa?”, questiona.

Assim, tal como para os estrangeiros que vivem no Reino Unido, a solução que lhe garante estabilidade passa pela mudança de nacionalidade. “Não tenho nenhuma razão para querer ser sueco, a não ser proteger a minha empresa. Vou ser um falso sueco”, reconhece.

Outros britânicos entrevistados pelo Guardian davam razões semelhantes para justificar os pedidos contrariados de naturalização em Espanha, Itália ou Alemanha, onde vivem há décadas. Mas para Helen Bollaert, uma professora de 50 anos que vive em Lille, França, há 28, o anúncio do referendo fê-la compreender que já não partilhava – nem entendia – os valores do seu país de origem. “Não vou pedir a nacionalidade francesa para poder viver tranquilamente aqui. Para mim é uma questão de princípio, é algo em que acredito com enorme convicção. A União Europeia tem uma grande importância para mim, e por isso sinto-me profundamente incomodada com a atitude do Governo britânico. Pergunto-me: será que alguma vez houve um ideal europeu no Reino Unido?”

Inúmeras instituições, dos mais variados sectores, têm alertado para as consequências nefastas do divórcio de Bruxelas: do sector financeiro às universidades, indústrias exportadoras e empresas turísticas têm enumerado os riscos e os prejuízos calculados com o afastamento de Londres do centro de decisões, e a exclusão do país do mercado comum europeu.

Politicamente, o principal risco parece ser o retorno da questão escocesa: o país, que em 2014 rejeitou em referendo a independência de Londres, é fortemente europeísta, e o resultado do referendo à União Europeia pode precipitar uma nova consulta popular na Escócia pela auto-determinação - numa conjuntura de hostilidade que poderá resultar no desmantelamento da união que dura há mais de dois séculos.

Segundo o Financial Times, o referendo tornou-se uma questão existencial: “A unidade do Reino Unido não sobreviverá ao Brexit. Se o Reino Unido deixar a Europa, a Escócia deixará o Reino Unido”, vaticina o jornal financeiro.
 

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Num inquérito realizado pelo jornal The Guardian a 1200 cidadãos europeus residentes no Reino Unido, a maioria confirmou que já tinha dado início ao processo para obter a dupla nacionalidade, ou estava a considerar pedir a cidadania num futuro próximo. Entrevistas mais prolongadas revelavam que essa decisão era motivada pela aproximação do referendo à saída da União Europeia (ou Brexit), mas sobretudo que os novos candidatos à cidadania britânica escolhiam essa via com um misto de renitência e enfado, por considerarem essa a “única alternativa” que lhes garante as mesmas condições – direitos e benefícios – de que gozam agora.

Uma das inquiridas, a francesa Victoria Pinoncely, de 27 anos, já preencheu os documentos para solicitar o estatuto de residência permanente, o primeiro passo para o pedido de nacionalidade (que só é possível iniciar depois de um ano). O processo, considera, é “bastante alienante”. Mas nem é isso que a incomoda mais. “A União Europeia não é perfeita, mas eu acredito no projecto europeu”, dizia.

Chegada a Londres para um mestrado em planeamento, no âmbito do programa Erasmus, Victoria acabou por encontrar um emprego e fixar-se na capital inglesa – “Sem papeladas, sem complicações, só um número”, recorda. Para ela, a União Europeia representa a paz e a compreensão entre os diversos estados-membro. “A longo prazo, não sei o que irei pensar sobre viver num país que escolheu virar as costas a isso. Talvez fique ressentida. É um pouco como se tivesse apostado no cavalo errado”, compara.

A realização do referendo – prometido durante a campanha para apaziguar a ala eurocéptica do Partido Conservador, e esvaziar a atracção eleitoral da formação nacionalista UKIP –, foi confirmada pelo primeiro-ministro David Cameron, que em Maio iludiu as previsões das sondagens e conquistou uma maioria parlamentar confortável. Nas semanas seguintes, Cameron visitou várias capitais europeias, para promover a sua proposta de renegociação dos termos dos tratados da UE, incluindo a repatriação de uma série de competências agora atribuídas a Bruxelas, de forma a acomodar o “excepcionalismo” britânico. A recepção no “continente” foi mais do que gelada.

Entretanto, o líder conservador anunciou que na campanha para o referendo vai defender a permanência do Reino Unido na UE. Com a cotação política em alta, Cameron acredita estar em condições de convencer o eleitorado. Mas vários analistas têm repetidamente alertado para o carácter imprevisível da votação.

"O pior é a incerteza"
Como observou ao The Guardian Stephanie Zihma, uma alemã que vive em Edimburgo, “o pior é a incerteza”. A académica tem estado atenta ao debate político e aos relatórios e estudos que aferem o impacto de uma eventual saída do Reino Unido do bloco europeu. “Mas enquanto toda a gente que fala no Brexit está preocupada com as consequências macroeconómicas e políticas, ninguém tem em consideração o choque e impacto individual para milhares de pessoas”, dizia. “Construí a minha vida aqui. Mas para ficar, vou ter de pedir um visto? Vou ter de cumprir critérios diferentes para poder trabalhar? Ninguém sabe dizer”, lamenta.

O diário também relatava o caso de Tine Juhlert, uma dinamarquesa casada com um britânico há mais de 20 anos, que a contragosto se vai naturalizar para poder viajar com um passaporte do Reino Unido. “Francamente, não me agrada nada a ideia. Não me parece bem ter de perder tempo e dinheiro para poder entrar num clube ao qual já pertenço, e continuar a usufruir dos benefícios e do estatuto que já me tinha sido reconhecido”, diz. “Para todos os efeitos, eu sou uma cidadã britânica como qualquer outra: pago os meus impostos e os meus empréstimos, cumpro com todas as minhas obrigações. Pensava que depois de mais de 20 anos, já tinha feito tudo o que era preciso para provar que pertenço aqui, mas agora constato que, afinal, este país não gosta assim tanto que eu esteja cá. Isso é muito irritante”, considera.

Quando um amigo canadiano foi expatriado, imediatamente após ter concluído um pós-doutoramento, é que Juhlert percebeu as possíveis implicações do Brexit. “Como seria a minha vida depois disso? Concordo que há muitos aspectos da União Europeia que merecem ser reformados, mas continuo a acreditar que faz mais sentido estarmos todos juntos do que separados. Nesse sentido, estou muitíssimo preocupada com uma possível vitória do 'não' no referendo”, confessou.

Igualmente assustados com as eventuais consequências do Brexit para a sua vida pessoal estão milhares de cidadãos britânicos residentes em vários países da UE, incluindo em Portugal. Uma parcela significativa de expatriados britânicos são reformados, que receiam perder o acesso aos cuidados médicos garantidos pelo sistema nacional de saúde, ou o regime de benefícios fiscais dos seus países de acolhimento.

Britânicos no estrangeiro
As estimativas oficiais apontam para a existência de 2,4 milhões de cidadãos “comunitários” no Reino Unido, e de quase dois milhões de britânicos em países da União Europeia. Os números referentes à naturalização de cidadãos da UE mostram uma clara tendência ascendente, com os processos concluídos a aumentarem de dez mil em 2009 para mais de 18 mil em 2013. O reverso da medalha também será verdadeiro.

Aiden Macfarlane, que há três anos trocou a cidade de Manchester pela ilha de Gotland, na Suécia, começou a tratar dos papéis para a naturalização assim que o referendo britânico à permanência na UE foi confirmado. A sua maior preocupação tem a ver com o futuro da empresa que abriu na Suécia, há pouco mais de um ano, e o seu estatuto de residência legal. “Esta é uma situação louca, em que ninguém pode dizer claramente o que vai acontecer. O risco é ficar numa terra de ninguém: e depois o que acontece à minha empresa, e à minha casa?”, questiona.

Assim, tal como para os estrangeiros que vivem no Reino Unido, a solução que lhe garante estabilidade passa pela mudança de nacionalidade. “Não tenho nenhuma razão para querer ser sueco, a não ser proteger a minha empresa. Vou ser um falso sueco”, reconhece.

Outros britânicos entrevistados pelo Guardian davam razões semelhantes para justificar os pedidos contrariados de naturalização em Espanha, Itália ou Alemanha, onde vivem há décadas. Mas para Helen Bollaert, uma professora de 50 anos que vive em Lille, França, há 28, o anúncio do referendo fê-la compreender que já não partilhava – nem entendia – os valores do seu país de origem. “Não vou pedir a nacionalidade francesa para poder viver tranquilamente aqui. Para mim é uma questão de princípio, é algo em que acredito com enorme convicção. A União Europeia tem uma grande importância para mim, e por isso sinto-me profundamente incomodada com a atitude do Governo britânico. Pergunto-me: será que alguma vez houve um ideal europeu no Reino Unido?”

Inúmeras instituições, dos mais variados sectores, têm alertado para as consequências nefastas do divórcio de Bruxelas: do sector financeiro às universidades, indústrias exportadoras e empresas turísticas têm enumerado os riscos e os prejuízos calculados com o afastamento de Londres do centro de decisões, e a exclusão do país do mercado comum europeu.

Politicamente, o principal risco parece ser o retorno da questão escocesa: o país, que em 2014 rejeitou em referendo a independência de Londres, é fortemente europeísta, e o resultado do referendo à União Europeia pode precipitar uma nova consulta popular na Escócia pela auto-determinação - numa conjuntura de hostilidade que poderá resultar no desmantelamento da união que dura há mais de dois séculos.

Segundo o Financial Times, o referendo tornou-se uma questão existencial: “A unidade do Reino Unido não sobreviverá ao Brexit. Se o Reino Unido deixar a Europa, a Escócia deixará o Reino Unido”, vaticina o jornal financeiro.