A cidade dura e bela

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No Terreiro da Sé quase só se vêem turistas. Está um sol tremendo, o calor deixa-os de sorrisos rasgados, enquanto vão erguendo os braços, apontando qualquer equipamento que capte imagens na direcção do impressionante edifício da Sé do Porto. Já devem ter lido nos guias de viagem qual foi o século de construção e as mudanças que foi sofrendo com o passar do tempo. Estão perante um dos monumentos edificados mais antigos do país e provavelmente sabem-no (sinto-me sempre mais bem informada sobre os locais que visito nas férias do que sobre aqueles com que me cruzo diariamente).

O sol das 15h30 é inclemente e só penso em entrar para fugir ao calor e deixar-me ficar naquela espécie de penumbra da nave central da igreja que começou a ser construída ainda na primeira metade do século XII, ao estilo românico da época. Os bancos estão quase vazios e as poucas pessoas sentadas também são turistas. Assim como são turistas os que vagueiam lentamente entre os corredores, os que se voltam para apreciar a bela rosácea do pórtico de entrada ou os que fotografam a capela-mor, com o seu retábulo em talha dourada, do século XVIII e os frescos nas paredes, alguns quase invisíveis (saberão que são de Nicolau Nasoni?).

Eu deixo-me ficar quieta no meu banco, impressionada com a dimensão dos pilares, que parecem feitos para durar para sempre, e com a luz que entra pelas vidraças instaladas no cruzamento dos dois braços em cruz do edifício, enchendo aquela área de uma luminosidade que não existe em qualquer outra zona do interior.

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Está quase vazia a Sé e é agradável vê-la assim sossegada, em contraste com os dias de grandes celebrações, em que fica de tal forma cheia que quase não é possível andar lá dentro. Será que ainda fica assim cheia como um ovo nos tempos que correm? A última vez que a vi assim foi há mais de uma década, durante uma cerimónia de ordenação de novos padres. Era dia de festa, mas prefiro-a vazia, quando a sua magnificência sóbria sobressai de todos os poros, levando-me a identificá-la mais do que nunca com a cidade. Com o Porto duro e belo, que não se verga nem desiste, mas que nos comove e derrete quando a luz bate de determinada maneira nas suas fachadas e no rio.

Levanto-me para percorrer a nave central e vejo, ao aproximar-me do altar, talvez o único visitante além de mim que não é turista. É um homem que reza, concentrado e de joelhos, em frente ao enorme altar de prata da segunda metade do século XVII, que só terá escapado à pilhagem das tropas francesas, em 1809, por ter sido escondido, diz-se, por uma parede de gesso construída à pressa. Hoje está à vista, mas não está. Anos de pó funcionam como uma camada protectora que esconde qualquer brilho que pudesse sair daquela que é considerada uma das mais preciosas obras da joalharia portuguesa.

Já que aqui estou, o melhor é aproveitar e espreitar também o claustro gótico, a que se acede pelo lado direito da Sé, já lá dentro mas junto à entrada, e depois de comprar um bilhete de 3 euros. Do lado de lá da porta só restam mesmo turistas, que se passeiam entre os arcos de volta quebrada, apreciando os painéis de azulejo que enchem as paredes do claustro. Alguns espreitam o museu com o “tesouro” da diocese e outros sobem a escadaria monumental desenhada por Nasoni que levam ao patamar superior. Ali há bancos à sombra, mais painéis azuis de azulejo e uma vista diferente do claustro e das torres da Sé.

Está-se bem no silêncio da Sé, nas suas sombras que nos protegem do calor, no peso da sua idade que se sente em cada pedra. Contemplá-la é como olhar grande parte da história do Porto e transmite uma estranha sensação de conforto, como se uma voz ancestral nos dissesse que tudo passa e que tudo está ainda por acontecer.

Como estaria a Sé em 1387 quando D. João I ali casou com D. Filipa de Lencastre? Ou quando o casal real ali baptizou o seu filho, o Infante D. Henrique? Em 2000, a Sé voltou a ser usada para uma cerimónia que reuniu no Porto muitos defensores da monarquia, quando ali foi baptizado o terceiro filho dos Duques de Bragança. Nesse dia fui falar com os pais de uma menina que também ia ser baptizada, ali mesmo no centro histórico. Mas era uma menina do “povo”, com um baptizado simples, longe dos holofotes e da confusão que se tinham instalado a poucas centenas de metros da sua casa. Nesse dia não fui à Sé. E agora que penso nisso, ainda bem. É mesmo verdade: eu gosto verdadeiramente dela é quando está quase vazia. Assim, posta em sossego. Como se o Porto lançasse um grande suspiro antes de ir dormir a sesta.

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