Onde o fado sabe a salsa

Diz-se que é a canção de Lisboa, mas hoje e amanhã está em casa no Porto. Para Gisela João, que se fez fadista não muito longe do palco onde actua no festival Caixa Ribeira, é mesmo como vir visitar a família – cabrito assado e tudo.

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Quando a vemos, já do lado de cá da barreira invisível que divide o Norte e o Sul do país, transformou-se na miúda com metade do corpo fora da janela e dedos em V que grita “Poooooooooorto!” como se o carro em que a conduzimos de regresso a casa – a adega com vista para o rio onde passou tardes e tardes a alimentar-se de fado vadio e o restaurante de fados que lhe deu o seu primeiro contrato, além de uma receita de bacalhau com gambas que ficou para a vida – fosse a bancada dos Super Dragões em dia de Porto-Benfica. Também é uma maneira de ver esta primeira edição do festival Caixa Ribeira, que entre hoje e amanhã distribui 40 fadistas por dez palcos da cidade: o festival em que, mesmo não parecendo, o fado joga em casa.

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Quando a vemos, já do lado de cá da barreira invisível que divide o Norte e o Sul do país, transformou-se na miúda com metade do corpo fora da janela e dedos em V que grita “Poooooooooorto!” como se o carro em que a conduzimos de regresso a casa – a adega com vista para o rio onde passou tardes e tardes a alimentar-se de fado vadio e o restaurante de fados que lhe deu o seu primeiro contrato, além de uma receita de bacalhau com gambas que ficou para a vida – fosse a bancada dos Super Dragões em dia de Porto-Benfica. Também é uma maneira de ver esta primeira edição do festival Caixa Ribeira, que entre hoje e amanhã distribui 40 fadistas por dez palcos da cidade: o festival em que, mesmo não parecendo, o fado joga em casa.

É verdade para Gisela João (amanhã, 22h45, Palco Caixa), como é verdade para Maria da Fé (amanhã, 21h30, Palco Caixa) e para Florência (hoje, 20h45, Escadaria da Igreja de São Francisco), apenas para citar os dois outros casos deste Caixa Ribeira que fazem do fado, sem discussão, uma canção do Porto. “Maria da Fé, Tony de Matos, Beatriz da Conceição… E ainda dizem que aqui não há fado”, atira Gisela João, respondona, logo à entrada do Restaurante Típico O Fado, no Largo São João Novo, onde “o senhor Artur [Almeida]” a contratou depois de uma noite em que se sentou para jantar sem sequer saber se teria dinheiro para pagar a conta. Juntamente com a Adega do Rio Ouro, aonde nos levou primeiro para o almoço de bolinhos (e não pastéis) de bacalhau com feijão-frade (uns quantos para comer agora, outros 12 para levar no Alfa Pendular e impressionar Lisboa), O Fado é uma das duas casas que Gisela ainda tem no Porto – e a esta volta sempre para aqueles jantares como só em família, cabrito assado e tudo. Mas estamos a ir depressa de mais – porque o primeiro sítio em que estacionamos é mesmo o Largo do Ouro, em frente à Afurada, onde Gisela João teve a sua morada-fetiche (a casa que a D. Piedade promete comprar para lhe oferecer se lhe sair “o Milhões”: “um palacete”, corrige, já que ali morou uma “princesa”, a sua).

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“Se for ali choro, não posso”, diz Gisela enquanto sai do carro a correr para se atirar para os braços e para o avental da dona da Adega do Rio Ouro, onde se encontrou (e onde encontrou a sua melhor amiga) quando ainda era só uma rapariga de Barcelos meia perdida no Porto. “Agora às terças isto está cheio de gente nova, mas dantes, em 2005 ou 2006, não era assim. Era tasca de pescadores e de velhotes que estavam ali a jogar às cartas a tarde inteira – mas às terças vinham as senhoras, as verdadeiras amantes do fado, arranjadas para ouvir cantar, com sombras e cabelo de cabeleireiro. Num feriado, terça-feira de Carnaval, entrei aqui sozinha. Tinha feito uma saia nova e queria sair para mostrar – uma cena de gaja. Às tantas entro e vejo duas raparigas da minha idade, que para mim só podiam ser bifas, tanto que fui ter com elas e lhes falei em inglês. Ficámos amigas e eu fiquei regular – vinha cá todas as terças para ver cantar e para cantar também”, conta, parando as vezes que tem de parar para mandar as bocas que tem de mandar a quem já não a via há anos (a propósito: “E money, muito?”, pergunta a D. Piedade, e como a resposta é “não” sai o primeiro palavrão do almoço).

Fado underground

Para ela também é isso, o fado como canção do Porto: “Há uma dualidade muito cómica: uma parte muito leve que é de copos, convívio, palavrões, aquela conversa muito desbocada mesmo à Porto, e depois, quando o fado começa, o silêncio total. É uma coisa que tem muito a ver comigo e que só encontro aqui – confirmando a minha certeza de que o fado não é só de Lisboa.” Mais coisas que só no Porto: uma cena de fado “muito mais underground, mas completamente”. Seria para lá que iríamos se Gisela João não tivesse de apanhar o comboio das 16h52 de volta a Lisboa (“Mudar faz parte do que eu quero para a minha vida, gosto de experimentar. Mas a verdade é que tive mesmo de ir para Lisboa por causa do trabalho: as oportunidades estão lá, os meus músicos e a minha equipa também … Anda toda a gente a com a conversa da descentralização mas é tudo treta”). Assim sendo, passamos a conhecer o circuito de ouvi-la falar, e entretanto fica prometida uma experiência fado underground  a sério para quando Gisela fizer “uma tour a cantar por esses sítios” (seria, parece-nos, maravilhoso): “Em Lisboa o fado está muito à mostra, vais pela rua e tens os funcionários dos restaurantes com o menu na mão a dizerem-te para entrar. Aqui tens de escavar um bocado. Há lugares incríveis que são as verdadeiras discotecas da terceira idade – uma banda a tocar música romântica a um canto, uma pista para os velhinhos dançarem aos pares – e onde se fazem noites de fado também. Quando entrei pela primeira vez não queria acreditar, foi tipo: ‘Onde é que eu estou? Isto existe mesmo?’”.

Diz que sim, que ainda existe. E Gisela garante que o fado que se ouve nesses lugares – aliás, em todos os lugares do Porto, mesmo os mais mainstream – tem uma mão diferente: “É como a salsa e os coentros: como até há pouco tempo não havia aqui coentros, no Norte toda a gente come salsa. Em Lisboa cantam-se certos fados, com certas letras; aqui cantam-se outros. Há músicas que deixei de cantar aqui porque toda a gente cantava e que voltei a cantar em Lisboa porque ninguém conhecia. Como acontecem mais coisas e as pessoas estão mais a par do novo, há fados antigos que já se perderam lá para baixo e que aqui ainda são muito populares.” Fenómenos, como isto de Gisela já não se lembrar do nome de certas ruas (“Ai que estupidez…”) e de sair da adega da D. Piedade, depois de umas selfies, a cantar um fado inveteradamente de Lisboa, A Tendinha: “Velha taberna/ Nesta Lisboa moderna/ És a tasca humilde, eterna/ Que mantém a tradição”.

Não é velho nem humilde o sítio onde paramos a seguir: “Agora vamos para o chique”, avisa Gisela à porta do Restaurante Típico O Fado. Aberto há 22 anos, prossegue a tradição iniciada pelo pai do actual proprietário, o empresário Lopes de Almeida, que chegou a ser “uma espécie de agente da Amália para o Norte do país”, no tempo em que “o estrangeiro dos artistas era o Porto”. Aqui há fado de segunda a sábado, e há uns anos era lá que se ia para ouvir Gisela João cantar. “Um dia esta menina apareceu-me aqui – já estamos fartos de contar isto, não é? – e perguntou-me se podia cantar. Disse-lhe que tínhamos o nosso elenco, mas lá a deixei actuar no fim. ‘Vai cantar uma menina que nós não conhecemos. Se correr bem, batam muitas palmas; se correr mal, pedimos imensas desculpas’. E claro, a Gisela conquista qualquer pessoa. Foi logo ali na hora que ficou contratada”, conta Artur Almeida. Até para ele, que “via como as pessoas ficavam a ouvi-la embevecidas”, foi “uma ascensão meteórica”. Num dia estava ali enfiada na cozinha “a falar de receitas, a falar da vida” com a D. Manuela (uma segunda mãe, como a D. Piedade, e com mãos preciosas: enquanto dura a visita, acontecem tartes de amêndoa e compotas verdadeiras de maracujá, framboesa e cereja, e ainda há cabrito a dourar no forno); noutro dia estava a fazer furor em Lisboa. Artur, que parece o último exemplar de uma espécie em vias de extinção, o empresário com coração, perde-se quando fala disso: “Ela prende as pessoas – e isso nasceu com ela, não se trabalha… Ó Gisela, desculpa que eu até estou a chorar, qualquer dia proíbo-te de vires aqui.”

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As terças-feiras de fado vadio da Adega Rio Douro foram uma das paragens obrigatórias de Gisela João quando ainda vivia no Porto; D. Piedade, a proprietária, encerra sempre as tardes FERNANDO VELUDO/ NFACTOS

A verdade é que ela também chora e nem é preciso falar do passado – basta passar a Ponte da Arrábida. “As pessoas dizem que somos saudosistas e dizem-no com conotação depreciativa. Mas eu acho que o saudosismo tem o seu lado bom porque é o que te lembra quem és e de onde vens… É claro que ficares preso ao passado é mau porque para trás mija a burra”, diz a menina do senhor Artur (e ele protesta: “Isto é mesmo a Gisela, malcriada todos os dias”). Está crescida, e também foi no Porto que isso aconteceu: “Foi aqui que me tornei mulher, que vivi sozinha pela primeira vez, que cortei o cordão umbilical. Eu vim de Barcelos menina. Por isso é que é tão especial para mim cantar no Porto, ainda é onde vejo mais caras conhecidas.”

Últimas palavras, antes de mais umas selfies e de um contra-relógio até Campanhã. Agora que pensamos, tanta coisa e nem lhe perguntámos o clube.