As estranhas metamorfoses de Miguel Branco

A caminho de Áustria, Miguel Branco deixa-nos uma exposição na Sala de Veado e Sombra, na Fundação Carmona e Costa. Dois momentos que assinalam a afirmação plástica e conceptual de um artista que não desiste de se confrontar com a actual condição das imagens.

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O majestoso veado - a sua superfície, que sugere a um primeiro olhar a resistência do barro ou da pedra, é, afinal, feita de madeira ELSA LOFF
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Miguel Branco está consciente de que na sua escultura ecoa a simbologia do animal na cultura e na pintura ocidentais DR
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O artista está prestes a partir para o palácio Schloss Ambras Innsbruck, Áustria. onde vai preparar a montagem de The Silence of Animals DR

Quem entrar na Sala do Veado, em Lisboa, até 28 de Junho, encontrará no centro do espaço obscurecido, os contornos de um animal.

Os olhos habituar-se-ão, então, ao negrume para que a silhueta se imponha, com a sua superfície, a sua escala, até à revelação: a escultura de um veado sobre um plinto rectangular. Uma imagem e uma escultura, portanto. Podia descrever-se assim a exposição que Miguel Branco (1963, Castelo Branco) apresenta no Museu Nacional de História Natural. Resulta de um trabalho iniciado em 2005 e, em simultâneo, alude a conceitos e práticas de um percurso de 20 anos que se exprime, agora, numa constelação de momentos. Encerrada agora a sua exposição individual Luz na Galeria Pedro Cera, os espectadores podem ver Sombra, na Fundação Carmona e Costa (até ao fim do ano), contemplar a escultura que este texto introduz e, se viajarem até à Áustria, poderão visitar The Silence of Animals no palácio Schloss Ambras, na cidade de Innsbruck.

Desenham-se assim vários caminhos para a obra de Miguel Branco que, por vezes, se tocam e se cruzam, sem que a autonomia dos seus sentidos seja posta em causa. Neste universo plástico e conceptual coexistem a história de uma sala e a escultura de um animal, a mão do artista e a reprodução técnica das imagens, a intangibilidade da sombra e a presença da matéria. 

Regresse-se ao majestoso veado. A sua superfície, que sugere a um primeiro olhar a resistência do barro ou da pedra, é, afinal, feita de madeira. “A peça resulta da ampliação mecânica de um modelo que fiz em menor dimensão”, revela Miguel Branco. “Ao ser terminada, a superfície foi lixada com uma lixa fina e pintada com pigmento negro. Por fim, foi queimada, o que lhe dá uma aparência absorvente e macia. Parece feita de carvão ou de veludo”. Experimentada essa sensação, produzida pelo efeito secreto do fogo, o espectador encontra-se livre de projectar sentidos, de criar associações. Miguel Branco está consciente desse acto e de que na sua escultura ecoa a simbologia do animal na cultura e na pintura ocidentais. “Esse aspecto é muito importante, está presente na capacidade de potenciar sentidos, mas vejo também a peça com uma abstracção, um contentor vazio". 

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Quem se deter, amparado nos focos de luz, diante da escultura, evitará, talvez, a evasão da imagem, a sua dissolução num espectro DR

Uma sombra que escapa

Há, entretanto, uma história que se conta à volta da escultura. Depois do incêndio que em 1978 destruiu uma parte importante do Museu Nacional de História Natural, a reconstrução do edifício deixou despidas várias salas, incluindo aquela que, em 1990 nasceria como sala de exposições de arte contemporânea. E nela, entre as paredes e o tecto de cimento cru, a escultura aparece também como uma evocação. “A peça dialoga com essa história. Foi o esqueleto gigante de uma espécie pré-histórica de veado [o Irish Elk], que deu o nome à sala. Mas a escultura, apesar da sua imobilidade, vibra sozinha no espaço, confunde-se com o espaço. Parte dessa história, para criar um eco, produzir uma transformação”.

Depois de Miguel Branco, outro artista “habitará” a Sala do Veado (que encerrará para sempre no fim do ano como sala de exposições), mas não é possível negar o encontro, entre uma obra e um lugar, que a exposição significa. Para lá destas circunstâncias, o espectador está sozinho com a sua percepção. “Há um mecanismo de visibilidade e invisibilidade. Estamos sempre a ver a peça parcialmente e no seu conjunto. Estamos a ver e deixamos de ver. Ao ver a superfície, deixamos de ver a forma”, diz Miguel Branco. “Queria que fosse feita de sombra. A maneira como está exposta a luz que banha a peça produz esse efeito, sobretudo quando olhamos para a superfície. Estamos a ver uma coisa, que se impõe como uma presença muito forte, pela escala, pela força do negro. Mas quando nos aproximamos, escapa-nos”.

Quem se deter, amparado nos focos de luz, diante da escultura, evitará, talvez, a evasão da imagem, a sua dissolução num espectro. Ao percepcionar a forma poderá vê-la como plano bidimensional. “Essa relação entre diferentes tipos de imagens e percepções sempre me interessou. No caso das minhas pinturas mais pequenas, quando vistas de longe, são como pontos de cor, mas à medida que avançamos vemos figuras, contornos, transformam-se em representações. E quando já estamos muito próximos, desfazem-se e tornam-se de novo abstracções. No caso das esculturas de grés que apresentei na Galeria Pedro Cera, algo de semelhante ocorria com a sua superfície, mas talvez esta seja a peça onde todas essas questões vão mais longe”.

As histórias que envolveram a exposição na Sala do Veado não permitem equívocos. Miguel Branco reivindica a autonomia do seu trabalho em relação à acção, à narrativa, a uma dramaturgia. “Estou muito mais interessado no movimento que as imagens fixas produzem ao nível da percepção, na reverberação que uma figura estática pode produzir. O movimento não está na peça, mas nas imagens mentais que ela desencadeia, nas alterações que traz à percepção”.

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Estilhaços e suspensões

Em certos casos, a criação de peças genéricas, esvaziadas de sentido ou de significações prévias, concorre para essa possibilidade. Vão-se despindo de tudo o que é particular até se tornarem contentores, sem história ou eloquência, que o espectador pode activar ou não. Foi assim numa das salas de Deserto, no Museu da Cidade, em 2011, e volta a ser assim em Sombra, na Fundação Carmona e Costa. Uma das obras desta exposição reproduz a forma de uma taça branca “Trata-se de uma forma à qual retirei toda a informação, todas as coordenadas. A taça é feita de resina acrílica branca, um dos materiais mais inexpressivos que conheço. Não transmite nada, não tem dados específicos, não tem história, não revela nada. O que fica é um objecto vazio, um contentor puro, uma forma vazia.”

Só a memória da história da cerâmica parece resistir como um eco que habita a superfície da resina. Destas várias camadas de sentido em o tempo é algo central, emerge uma das questões mais prementes no trabalho de Miguel Branco: a indistinção entre o original e a cópia e a circulação de imagens que a alimenta. “O meu trabalho lida com a natureza das imagens. Basta pensar nos desenhos [de Sombra]. Há um lado na construção das formas que evoca as pinturas holandesas do século XVII. A mão do artista está lá, mas se o espectador olhar com atenção verá que existe uma estranheza no desenho, que as aquelas formas resultam de um gesto construtivista. A mão do desenhador é substituída pela mão fria do cirurgião”. Miguel Branco refere-se aos processos que constroem os seus desenhos a carvão. Usou técnicas digitais (photoshop e impressão) e máscaras de fita-cola para “compor” a imagem daqueles símios intrusivos e algo ameaçadores, deixando à vista as marcas desse processo.

“O meu trabalho centra-se sobre a ideia de um passado histórico, mas a partir da natureza própria das imagens. Face à sua reprodução sucessiva, face à impossibilidade da existência de originais, as formas do mundo são dadas como duplicações, como variações. De que forma trabalhamos sobre a condição do presente, ao habitar esse fluxo? Somos levados pela torrente, ou vamos libertando ecos, abrindo fissuras?” Miguel Branco considera que os seus desenhos são uma espécie de estilhaços, de fragmentos, pequenas fissuras de realidade, já a escultura na Sala do Veado surge como uma suspensão ou interrupção desse fluxo criando um vazio, uma presença. Ambos reflectem o presente, como as perturbantes esculturas de “Luz”, com os seus subtítulos (Anão, Monge, Banqueiro, Testemunha, Senador). “Os macacos dos desenhos são invasores, uma espécie de seres infectados, metáforas da barbárie que nos atinge e que se vai propagando em nosso redor como uma maré negra. No caso das esculturas, as figuras são menos óbvias. Por exemplo, o banqueiro surge sereno, meditativo. Há algo de disfuncional, que nos fala do presente, da condição humana”

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Miguel Branco está prestes a partir para Innsbruck, Áustria. Esperam-no num museu reconhecido pelas suas importantes colecções de gabinetes de curiosidades: o palácio Schloss Ambras onde vai preparar a montagem de The Silence of Animals. "Ao mostrar catálogos do meu trabalho, surgiu o convite para realizar uma exposição individual centrada no tema dos animais, desde o início do meu trabalho, até aos dias de hoje. Esta mostra acompanha a exposição anual do museu. Vou expor no lugar que foi uma das mais importantes fontes de inspiração para o meu trabalho durante quase três décadas” 

Pergunta final. Porquê? “Creio que existem dois vectores no meu trabalho que estão também na raiz conceptual dos gabinetes de curiosidades. Um é a metamorfose, a proliferação e contaminação de formas, o outro é a estranheza, o contacto com aquilo que é misterioso, ilegível e, por isso mesmo, incompreensível."

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