Dádiva de sangue por gays: perguntas e respostas

Organização Mundial da Saúde e Conselho da Europa recomendam exclusão de homo e bissexuais da dádiva de sangue. Os critérios em Portugal não são claros mas parecem seguir práticas internacionais.

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Sérgio Azenha/Arquivo

A polémica tem pelo menos 17 anos em Portugal. O tema da exclusão de homo e bissexuais da dádiva de sangue foi trazido para o espaço público em 1998 pela associação ILGA Portugal, estabelecida três anos antes. Têm saído beliscados os vários ministros da Saúde e presidentes do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST), muitas vezes sob acusações de discriminação e homofobia. O mais recente episódio envolve o médico imunologista Hélder Trindade, presidente do IPST desde 2011. Defendeu que só os homo e bissexuais sexualmente abstinentes podem dar sangue – a 29 de Abril, numa audição na Assembleia da República. Actos sexuais entre homens são um “factor de exclusão do dador”, disse Hélder Trindade, o que levou o Bloco de Esquerda a pedir ao ministro da Saúde, Paulo Macedo, para que demita aquele responsável, o que o ministro indirectamente já recusou.

O Conselho da Europa recomenda a exclusão de homo e bissexuais da dádiva de sangue, tal como afirma Hélder Trindade?
Sim. A resolução adoptada a 27 de Março de 2013 pelo Conselho de Ministros do Conselho da Europa diz, sem ambiguidade, que o sexo entre homens é um comportamento “particularmente arriscado” e dá a entender que o uso de preservativo, o número de parceiros ou ao tipo de práticas sexuais são irrelevantes para o caso. “Estudos de modelos avaliaram o impacto na segurança transfusional da dádiva de sangue por homens que têm sexo com homens. Desses estudos, conclui-se que é provável que o risco de transmissão do VIH aumente se aquelas pessoas forem dadoras de sangue e conclui-se ainda que a rápida disseminação de novas e recentes infecções sexualmente transmissíveis pode ser fomentado por certas características daquele comportamento sexual, que é particularmente arriscado”, diz a resolução.

Porque é que se utiliza a expressão “homens que têm sexo com homens” (HSH)?
O termo apareceu nos anos 90 e, de acordo com a Foundation for AIDS Research, de Nova Iorque,  é utilizado pelos epidemiologistas para descrever comportamentos e não identidades, porque há homens que têm sexo com outros homens que podem não se identificar como homossexuais.

É verdade que a Comissão Europeia também recomenda a exclusão?
Depende do ponto de vista. A 29 de Abril, no mesmo dia em que o presidente do IPST foi ouvido na Assembleia da República a pedido do Bloco de Esquerda, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que a suspensão definitiva de HSH sexualmente activos, prevista numa directiva da Comissão Europeia de 2004, pode ser adoptada por um estado-membro, mas apenas “quando se demonstre, com base nos conhecimentos e em dados médicos, científicos e epidemiológicos actuais, que tal comportamento sexual expõe essas pessoas a um risco elevado de contrair doenças infecciosas graves que podem ser transmitidas pelo sangue”. Ou seja, fica ao critério das autoridades nacionais. A directiva em causa (2004/33/EC) contém um anexo onde se lê que estão “suspensas permanentemente”, como dadoras, “pessoas cujo comportamento sexual as coloque em risco elevado”, mas não indica o sexo ou a orientação sexual dessas pessoas. Num comentário à decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, a associação ILGA Europa (a cuja direcção pertence Paulo Côrte-Real, vice-presidente da ILGA Portugal), sublinhou que o tema da doação de sangue está a “mascarar a questão fundamental”: transformar em “prioridade europeia” a prevenção da infecção por VIH.

E a Organização Mundial de Saúde (OMS)?
Também recomenda a suspensão dos HSH. “Continuam a ser a principal fonte de novas ou antigas infecções, em países desenvolvidos”, afirma ao PÚBLICO o médico Junping Yu, da OMS. A utilização de preservativo “reduz a transmissão de infecções”, mas não é considerada totalmente segura, porque “os preservativos podem deslizar ou romper-se”, diz Junping Yu. “Uma possível alternativa à actual proibição é a aplicação de critérios baseados no cálculo individual de risco, o que, ainda assim, apresenta desafios técnicos e práticos na aplicação de questionários, pois envolveria perguntas detalhadass sobre assuntos sensíveis relacionados com a intimidade do comportamento sexual”, acrescenta. Paulo Côrte-Real, da ILGA, sugere que os serviços de sangue perguntem de forma clara se o candidato a dador fez sexo anal. “Aparentemente é chocante para a moral vigente fazer uma pergunta sobre sexo anal, mas não é chocante fazer uma pergunta a eliminar todos os gays”, escreveu recentemente no blogue Jugular.

Quais são as regras em vigor neste momento em Portugal?
Teoricamente, os HSH não estão proibidos de dar sangue. Na prática, estão. Uma resolução de há cinco anos da Assembleia da República (39/2010, de 8 de Abril), levou o IPST, em Janeiro de 2013, a eliminar dos inquéritos de triagem de dadores a pergunta escrita “sendo homem, teve contactos sexuais com homens?”. Era considerada discriminatória por alegadamente não apurar de forma objectiva eventuais comportamentos de risco e remeter, sim, para a orientação sexual dos candidatos a dadores. Acontece que os serviços de colheita mantêm a pergunta, fazendo-a verbalmente na triagem, confirmou Hélder Trindade no parlamento.  Quem responde afirmativamente, fica proibido em definitivo. “Tenho um critério para o heterossexual e outro diferente para o homossexual que tem coito anal porque na população homossexual existe uma prevalência elevadíssima de VIH”, disse Hélder Trindade.

A prevalência de VIH é mais elevada entre gays e bissexuais?
Sim. Há uma “tendência crescente no número de casos decorrentes de relações sexuais entre homens”, o que corresponde a um “aumento  considerável  da  proporção de casos na categoria homo/bissexual”, de acordo com o relatório “Infecção VIH/sida: A Situação em Portugal a 31 de Dezembro de 2013”, publicado em Novembro de 2014 pelo Instituto de Saúde Ricardo Jorge. São três as principais categorias de transmissão definidas pelos médicos: “heterossexual”, “toxicodependente” e “homo/bissexual”. “Prevalência” é o número de casos acumulados, o que em Portugal corresponde a registos desde 1985 e totalizava 47.390 pessoas até 2013. “Incidência” é o número de novos casos notificados a cada ano. Ainda de acordo com aquela fonte, os três distritos do país com maior prevalência são os de Lisboa, Porto e Setúbal. Durante a audição parlamentar de 29 de Abril, o deputado José Soeiro levantou uma pergunta que ficou sem resposta: se a prevalência do VIH é critério de exclusão, por que não adopta o IPST diferentes políticas de triagem consoante a incidência por distrito?

Se o sangue é analisado, porque é que há inquéritos de triagem de dadores?
O sangue é analisado depois da colheita, sobretudo tendo em atenção a hepatite B e C e o VIH 1 e 2, mas os inquéritos pré-dádiva são recomendados pela OMS desde os anos 70. Fazem parte da triagem clínica de dadores, que inclui uma entrevista feita por enfermeiros ou médicos – descrita pelo IPST como uma “avaliação clínica personalizada face-a-face”. “Devemos utilizar vários instrumentos para minimizar ao máximo alguns riscos”, explica o médico Kamal Mansinho, director do serviço de doenças infecciosas do Hospital Egas Moniz, em Lisboa. “É importante fazer a co-relação entre os dados da análise laboratorial ao sangue com a informação que o dador prestou no inquérito”, acrescenta, dando um exemplo: “Posso ter tido um comportamento de risco dois ou três dias antes de dar sangue e, nesse caso, as análises serão seguramente negativas para o VIH, mas se no inquérito tiver sido apurado que tive um comportamento de risco, essa informação deve ser tomada em conta na análise final sobre o estado e a utilização do sangue.” Ou seja, os inquéritos são uma forma de tentar contornar o período-janela, durante o qual algumas infecções são indetectáveis. “Quando o nosso corpo contacta com um agente de doença, os linfócitos actuam para evitar que o corpo fique doente, mas, até que o corpo produza os anticorpos que o protejam do ataque desse agente, decorre o chamado período-janela, que é período de resposta biológica”, de acordo com a médica Gracinda de Sousa, do IPST.

Neste momento, a exclusão dos HSH em Portugal é temporária ou definitiva?
Não se sabe. Das declarações de Hélder Trindade, conclui-se que é definitiva: homo e bissexuais nunca poderão dar sangue se praticarem algum acto sexual. No entanto, o Manual de Triagem do IPST, com data de Outubro de 2014, fala em exclusão temporária: quem reportar contacto sexual com portador do VIH fica impedido de dar sangue por seis meses após o contacto e será sujeito a “avaliação analítica posterior”.

E noutros países?
Não há consenso. A Organização Mundial de Saúde descreve o sexo entre homens como “comportamento de alto risco” e num livro de normas sobre doação de sangue, de 2012, estabelece que a “suspensão definitiva” de HSH, sem excepções, “continua a ser acolhida como a decisão certa”. No Reino Unido, desde 2011, homo e bissexuais só podem dar sangue se estiverem pelo menos12 meses sem praticar sexo anal “com ou sem preservativo”. É a mesma regra que existe na Finlândia e na Suécia. Em França, os HSH não podem dar sangue de todo e o mesmo se passa, por exemplo, na Alemanha, na Áustria e na Dinamarca, o que tem sido fortemente criticado por sectores gay. Espanha questiona comportamentos de risco e não a orientação sexual. Nos EUA, todos os HSH estão proibidos de dar sangue, mas a autoridade de saúde, Food and Drug Administration (FDA), tem um documento em consulta pública até Julho, o que pdoerá alterar as regras já este ano. A Associação Médica Americana classifica como “discriminatória” a actual política da FDA e entende que a avaliação de dadores deve ter por base “comportamentos individuais” e não a orientação sexual.

Portugal vai mudar as regras? Quando?
Não se sabe. Ao PÚBLICO, o secretário de Estado adjunto do ministro da Saúde, Fernando Leal da Costa, médico hematologista, refere que "a posição dos serviços do Ministério da Saúde deverá ter sempre em consideração, acima de tudo, a segurança da transfusão", daí que "o ponto mais importante seja o cálculo de risco em função de comportamentos declarados” pelos dadores. O mesmo responsável mostra-se contra a resolução de 2010 da Assembleia da República: “A resolução determina sobre aspectos da medicina transfusional, o que ultrapassa as capacidades técnicas do parlamento." "Esta questão não é política, mas sim técnica”, justifica Leal da Costa.

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