Ž

No Inverno de 2014-15, uma mulher aterra na ex-Jugoslávia em busca da história de Ž, um fotógrafo de guerra desaparecido. Tinham-se conhecido vinte anos antes, durante o cerco a Sarajevo. Um conto inédito de Alexandra Lucas Coelho.

Foto

I. Belgrado

 

Ð ligou para Lisboa, no seu português fluente, pedindo-me que reconstituísse a história de Ž. Eu encontrara Ž duas vezes e estava interessada no assunto, como Ð sabia através de um amigo comum. De resto, Ð e eu não nos conhecíamos, mas ele saltou, alegre, por cima disso:

— Quando podes vir a Belgrado?

Foi assim que na noite de 2014 para 2015 me achei na colina do Kalemegdan, a fortaleza da capital sérvia que já foi celta, romana, bizantina, otomana. O cigarro de Ð apontou a confluência do Sava com o Danúbio, em breve o frio daria para andar sobre as águas. Quem nos ofereceu um gole de rakija disse que estavam doze negativos, mas já bebera meia garrafa. Acho que deviam estar pelo menos vinte negativos quando Ð e eu caímos na neve, ele de costas, eu de bruços. Um snipper não faria melhor, ao primeiro beijo.

 

Notas iniciais sobre Ž: tinha quinze anos a 4 de Maio de 1980, o dia em que a Jugoslávia começou o seu luto (e não era artificial, nem o luto, nem a Jugoslávia). Um antigo vizinho lembra-se de estar com Ž no Centro Cultural de Estudantes quando chegou a notícia: Tito morrera. Apanharam o autocarro de volta a casa e foram para a garagem da filha do futuro presidente ensaiar uma nova canção dos Jungle Anarchists, a banda que haviam fundado com outro vizinho. Porque eram punks de Dedinje, o bairro-bosque dos aparatchiks, hierarquia acima até à mansão de Tito. Os punks do centro chamavam-lhes mesmo punks de Dedinje como se lhes chamassem ricos. Só que os pais deles eram pequenos aparatchiks em pequenos apartamentos no fim da hierarquia, prédios feios até hoje. Aos quinze, Ž partilhava o quarto com dois irmãos, e tinha de negociar com eles o tráfego de namoradas. Portanto, punks de Dedinje mas não menos punks por isso, fuck off.

 

Em 1981, a filha do então já ex-presidente fundou a sua própria banda, e dois anos depois explodia na rádio com o álbum Perfektan Dan Za Banana Ribe. O título era uma homenagem à primeira das Nove Histórias de J. D. Salinger, Um dia perfeito para o peixe banana, que Ž terá oferecido à futura musa quando tinham dezoito anos: sabia-o de cor. Muito sofisticado para dezoito anos, mas aos dezoito Ž já se achava um fracasso desde os treze, que foi quando começou a partir guitarras e a cheirar cola. Aos treze, cola; aos dezoito, heroína. A filha do ex-presidente morreu nem dez anos depois, a irmã dela também, e eram só os ícones de uma longa lista. Belgrado parecia mais perto de Londres que da Cortina de Ferro. Os anos 1980 foram a década em que o New Musical Express vinha cobrir a cena cool jugoslava, e os adolescentes morriam a solo, deixando o tal belo cadáver. Vista dessa Jugoslávia, a ideia de guerra não passava de uma farsa entre Moscovo e Washington. A Jugoslávia era a praia e a montanha dos não-alinhados, um sudeste ao mesmo tempo mediterrânico, eslavo, otomano e centro-europeu. Os jugoslavos viajavam, os jugoslavos viviam bem, os jugoslavos recebiam os Rolling Stones (Zagreb 1976, Ž fechou-se no quarto porque não o deixaram ir). Até os meus tios-avós passaram férias na Jugoslávia: nem se dava pela repressão, Tito era um esteta. Então, claro, quem na geração de Ž acreditava mesmo que nos anos 1990 a Europa teria de novo campos de concentração, genocídios, valas comuns, deportações, violações em série, e que tudo isso aconteceria justamente ali, na costura do socialismo de rosto humano? As únicas bombas que os punks de Dedinje conheciam eram as dos Clash (The hillsides ring with ‘Free the people’ / Or can I hear the echo from the days of ‘39? / With trenches full of poets (...)  I’m hearing music from another time). Se a letra anuncia a guerra, é porque a ouço no futuro, e de fora.

 

Sou de fora, eis o que levou Ð a procurar-me: essa seria a minha vantagem e o meu limite. O trabalho dele é convencer-me de que a vantagem é maior do que o limite, o meu trabalho é saber que à partida já perdi. Pois que poderia eu dizer sobre Ž a quem cresceu nas mesmas trincheiras de Ž, e conhece cada nuance entre a neve e a lama, como a neve é uma ilusão que queima, tudo o que a neve cobre, tudo o que a neve adia, porque o frio retém a revelação, e é o sol que traz os mortos.

 

Assim aterro em Belgrado no começo do Inverno para uma espécie de garimpo, de fora para dentro. Se ninguém detém a narrativa de outro, esta história de Ž será só a minha, como o meu anfitrião sabe há muito. Quando Tito morreu, já Ð estava a milhas, bolseiro de estudos pós-coloniais, aluno de Edward Said. E nem a América fez dele um ex-fumador.

 

A 25 de Dezembro, uma quinta-feira banal para os ortodoxos, apanho um táxi até à antiga mansão de Tito em Dedinje. O primeiro nevão deve acontecer no fim de semana, por enquanto copas negras, céu dourado, nem uma folha. O táxi pára junto ao muro, mais alto do que eu mas muito mais baixo do que as árvores lá dentro. Extenso parque, sim senhor, se é para receber Elizabeth Taylor há que fazer as coisas bem, embora para esses casos também houvesse a Casa de Verão, na ilha. A Taylor, a Lollobrigida, a Loren, o Burton, assim do que me lembro. Tito era pop.

 

Já Miloševic foi o anti-pop mundial. Deu cabo da telegenia sérvia ao ser o mais poderoso protagonista de uma violência inédita na Europa desde a Segunda Guerra, dezenas de milhares de cadáveres para todos os lados, até aos bombardeamentos da NATO sobre a Sérvia. Ainda hoje, em Belgrado, Miloševic parece o-homem-do-saco na infância de milhares de sérvios, só que real até à morte. Um caso de ascensão máxima da paranóia. E quem era a multidão que o seguia?, perguntei ontem a um dos velhos amigos de Ž. Ele suspirou, creio que até o cão a seus pés suspirou (um rafeiro que aprendeu a encantar estranhos para sobreviver, de preferência raparigas, até hoje encanta e já é senhor da casa, questão de feitio). Ah, o lumpen-proletariado, respondeu enfim o velho amigo de Ž. Ao pé da letra, homens-trapo, sem consciência política, à mercê de quem os manipule. Não é com eles que se fará a revolução, e a revolução não se fará também por causa deles, mas isto já não é Marx que diz, nem o velho amigo de Ž. Tão sérvio de pai e mãe como Ž, o velho amigo rematou: horror, horror dessa Sérvia.

 

(De qualquer massa inflamada, além do lumpen-proletariado, não? A velha questão da banalidade do mal. O paranóico comanda e o mal banaliza-se pela massa. A massa é o sistema digestivo do paranóico. Processa tudo.)

 

Não, não me perdi, estou bem em frente à mansão de Tito, mas Miloševic instalou-se aqui nos anos 90, então é impossível não me lembrar dele também. Os imperialistas têm um fetichismo pelo metro quadrado de quem os antecedeu, tal como os europeus de 1500 tiveram pelos templos indígenas, um eterno retorno igual à guerra. Miloševic morar na mansão de Tito era a Grande Sérvia a ocupar a casa da Jugoslávia. A História ia recomeçar nele.

 

(Esta noite, saindo de uma kafana para outra num eterno retorno à rakija de marmelo, Ð há-de contar-me que existem internados em hospícios convencidos de que ainda estão na Jugoslávia. Imaginar um destes internados a ter alta dava um romance, se calhar já deu).

 

Caminho ao longo do muro da mansão. O táxi espera do outro lado da estrada. Ninguém nos passeios, nenhum cartaz, nenhuma tabuleta, a jugo-nostalgia contemporânea não parece chegar aqui, talvez porque não se possa entrar, talvez porque Miloševic morou lá dentro, e se Tito deu vida à Jugoslávia, Miloševic enterrou-a, ou talvez por a casa ter sido bombardeada pela NATO em 1999. Os destroços continuam à vista, através do rendilhado de um portão.

 

(Há uns curto-circuitos assim no meio de Belgrado, subitamente numa avenida dois edifícios bombardeados, lado-a-lado. Não sei se é uma decisão ou a ausência dela, e até hoje não perguntei.)

 

Esta rua — Užicka — entrou para a história do século XX à bomba (já na Segunda Guerra, os Aliados bombardearam os alemães que a tinham ocupado), mas o que me interessa hoje é como ela coincide com o mapa de Ž. Eles, os proto-punks de Dedinje, vinham dos prédios com bicicletas, com trenós, com guitarras, com namoradas, consoante a estação e a idade. Em Dezembro caíam os primeiros nevões, ficava tudo fofo, depois duro, e depois pedregulhos podiam cair se a temperatura subisse de repente, desprendendo o gelo dos telhados, morre-se disso em Belgrado, como nos trópicos de um coco. Árvores em ponto de fuga, silêncio de bosque mais que de bairro: não é Tito nem Miloševic que suponho a atravessar a estrada (também não atravessariam a estrada, imagino), mas sim Ž, as longas pernas de Ž com aquelas calças de pinças, aqueles ténis, aqueles blasers, aqueles pins no blaser, aquelas franjas dos anos 1980 tapando olhos de ressaca, de quem não dá trela a ninguém. Vai fazer vinte anos amanhã, e mais um amigo acaba de morrer.

 

Quem ainda cá está em 2014 confirma: nesse grupo, nesse tempo, a morte era mais real do que a guerra. Aos vinte, Ž via-se como um velho sobrevivente, entre overdoses e hiv. A lista das partidas aumentava dessas e de outras formas, Londres, Roma, Viena. Não suficientemente longe para ele, segundo um contemporâneo que não chegou a tomar drogas, e hoje mora num casarão. Os anos 1990 fizeram a fortuna de quem teve jeito, Ž teria morrido de tédio, se não tivesse chutado tudo antes. No Verão de 1985 desembarcou na praia catalã de Blanes porque uma amiga de Belgrado que emigrara para Barcelona acabava de conhecer um beatnik sul-americano lá. Eis como, depois de uma semana a beber com o beatnik — um tal de Roberto Bolaño, que vendia pulseiras mas tinha cem livros na cabeça —, Ž decidiu ir para o México.

 

Estudar fotografia, disse aos pais.

 

A vida mexicana de Ž terá de esperar pelo meu próprio regresso ao México. O que posso registar agora é que foram duas temporadas, a primeira, entre os vinte e os vinte e um (1985-86), de facto a morar no formidável campus da Universidade Nacional Autónoma, enquanto estudava fotografia, entre biscates vários. E a segunda, aos trinta e quatro (1999), a fotografar a violência das fábricas de Ciudad Juárez para a revista do New York Times. A sua nota biográfica desse ano resumia: “Cobriu conflitos no Irão, Iraque, Roménia, Líbano, Ruanda, Irlanda do Norte, Sudão, Afeganistão, Rússia, Serra Leoa, Argélia, Israel-Palestina e nas repúblicas da ex-Jugoslávia.” Ou seja, em apenas treze anos, Ž catapultou-se para a linha da frente do fotojornalismo, de trincheira em trincheira. A primeira vez que o vi foi em Sarajevo.

 

Portanto, vou voar para Sarajevo este sábado, 27 de Dezembro, ao começo da tarde. Hora perfeita, se não estamos interessados em mudar um ritmo nocturno que já vem de há dias. Ainda ontem, porque era quinta, e é algo que só acontece às quintas, Ð levou-me a uma catacumba onde cavalheiros de cerca de oitenta e quatro anos trazem rakija de casa em garrafas de plástico que oferecem a toda a gente, começando pelas senhoras. As senhoras têm grandes toucados. As paredes estão cobertas de fotografias. Pareceu-me ver Amália Rodrigues numa esquina e quando olhei melhor era Amália Rodrigues. Um cavalheiro de cerca de oitenta e quatro anos recitou-me Octavio Paz, outro disse-me que tocara bateria com Charlie Haden quando ele cá esteve em 1971. Isto, na véspera de Haden ter ido tocar no primeiro Cascais Jazz, onde dedicou as cordas do seu contrabaixo às lutas africanas de libertação, o que lhe valeu ser levado pela polícia política da ditadura. Este octogenário até se lembra de como Haden depois festejou Abril com a sua própria versão da Grândola Vila Morena. E para que eu não duvide, canta. Como não amar Belgrado.

 

Nem de propósito, um amigo de Lisboa manda-me, de boas festas, essa Grândola porque o pai tinha estado no Cascais Jazz e aparece numa fotografia a olhar para Charlie Haden (também me manda a fotografia). A sintonia cósmica é tal que quando entram os sopros julgo ouvir uma nota balcânica.

 

Sábado, com a alegria e o cigarro de sempre, Ð vem pôr-me no táxi para o aeroporto, não vá o motorista achar que sou uma turista sem amigos. Isto, claro, apesar de os taxistas sérvios serem meninos comparados com os de Lisboa. Asseguro a Ð que no fim de semana vai nevar, ele ri da minha autoridade no assunto, fecha a porta do táxi e fica a ver-me arrancar. Eu fico a vê-lo cada vez mais pequeno.

 

(Até cair nos braços de Ð não me passa pela cabeça cair nos braços de Ð, mas pela primeira vez ainda estou a pensar nele quando ele já saiu de vista).

 

II.Sarajevo

 

Belgrado-Sarajevo são 45 minutos de viagem a tão baixa altitude que podemos observar a passagem da planície sérvia para as montanhas bósnias como se de súbito o mundo se levantasse num movimento interminável. Uma imagem de contornos esfumados, com a cor e a consistência de um desenho a carvão. O carvão são as árvores, o papel é a neve. Depois, o avião desce, curva para a esquerda e começa a percorrer o vale de Sarajevo na última hora de sol. Tudo me espanta, a paz alpina de casinhas, o rio incandescente, os prédios de espelho, talvez porque a última vez que aqui vim foi num avião militar, a cidade estava cercada, entrei no Holliday Inn à luz de velas, e entre o aeroporto e o hotel só havia uma coisa a fazer: acelerar.

 

(Se por um momento esqueces

que tens de correr rápido

as balas avisam-te

e se não avisarem

quer dizer que estás morto)

 

Até o Oslobodenje tem uma fachada de espelho, vejo do lado direito. O jornal que nunca deixou de sair em três anos e meio de cerco, nem um só dia, agora é propriedade de um homem de negócios e vizinho de um outdoor da Coca-Cola.

 

Sarajevo estende-se como uma grande recta ao longo do rio Miljacka, montanhas de um lado e do outro e ao fundo. Lá mais para o fundo começa o pedaço austro-húngaro, palacetes e pracetas, igrejas e pontes, incluindo a graciosa Ponte Latina junto à qual foi assassinado o arquiduque Franz Ferdinand, que assim, tão involuntariamente, teve para sempre o seu nome associado ao início da Primeira Guerra, em 1914. Na esquina em frente há um mini-museu onde podemos ver, por exemplo, como as armas do assassino — Gavrilo Princip — eram mínimas. Um revólver menor do que a palma da minha mão. Ele próprio parece um homem pequeno, de olhar melancólico. Um sérvio da Bósnia, tão anti-austríaco como anti-otomano, que acreditou febrilmente numa futura Jugoslávia.

 

Paralela ao rio, mais para dentro, está a avenida a que toda a gente ainda chama Titova. No monumento da Chama Eterna, sigo pela rua pedonal. De um lado, a megastore da Benetton em saldos; do outro, uma feirinha com carrocel, baloiços, quiosques de doces; por cima, pontudos domos ortodoxos contra o lusco-fusco; e finalmente a montanha nevada, cheia de janelas acesas, que há dezanove anos era o antro dos snippers. Há dezanove anos, cá em baixo, também era Dezembro mas não havia meias vermelhas, bonecos de gengibre, luzinhas a piscar. A vida era urgente, furtiva, subterrânea, uma aposta contra o atirador. Agora olho os bonecos animados deste postal de 2014 que são os bósnios atafulhados de casacos, de golas, de barretes, de luvas, com grandes botas a patinhar na neve, porque na neve andamos todos como bonecos (ou pinguins, diz aquele velho amigo de Ž, o do cão encantador), e penso que cada um deles sabe tudo sobre a guerra, e que isso jaz em cada conversa, como a morte sob a neve. Eles estavam cá, e cá estão.

 

MARX, leio em letras garrafais. Depois por baixo: CLOTHES FOR THE PEOPLE. Como a Benetton, só que Marx. A catedral católica, pouco adiante, tem um João Paulo II de alumínio no pátio. Foi inaugurado em Abril, para celebrar a sua passagem a santo. E no prédio ao lado, em letras garrafais, leio SREBRENICA.

 

Não me lembro ao certo como conheci David Rohde em 1995, talvez tenhamos partilhado um transporte entre Sarajevo e Mostar, mas estou a ver a cara de escuteiro dele, correcto, discreto. Aos vinte e tal anos, nesse Outono-Inverno, já era o repórter que meses antes revelara o massacre de Srebrenica nas páginas do Christian Science Monitor. É sobretudo disso que me lembro, a densa sobriedade com que me contou como chegara a Srebrenica em Agosto, um mês depois das tropas do sérvio bósnio Ratko Mladic, e encontrara ossos de bósnios muçulmanos. As primeiras testemunhas apontavam para uma morte em massa, e quando a investigação acabou a Europa estava perante o seu maior massacre desde o Holocausto: mais de oito mil bósnios muçulmanos, separados das mulheres e dos filhos e executados, sob o comando de Ratko, e perante a total incapacidade dos capacetes azuis da ONU, um pelotão de holandeses que estavam lá para proteger os civis e hoje hão-de vaguear em qualquer inferno quando fecham os olhos. Penso em David Rohde por causa deste cartaz agora, na praça da catedral, anunciando um trio de imagens de guerra (Srebrenica, 1995; Sarajevo, 1992-1996; Síria, em curso). E porque, numa daquelas noites de cerco a Sarajevo, num bar onde alguém tocava trompete, foi Rohde quem me apresentou a Ž. Eu já o vira por aqui, era difícil não reparar nele, tão alto, tão mudo, tão zangado, franja sobre os olhos, nuca rapada. Duas horas depois já não me parecia tão alto, tão mudo nem tão zangado. Separámo-nos logo na manhã seguinte mas em Janeiro, de volta a casa, eu estava grávida.

 

A exposição sobre Srebrenica, Sarajevo, Síria começa no elevador da galeria, frases que se prolongam na parede do terceiro andar, quando a porta abre: milhares de nomes, branco sobre preto. Depois caras, centenas de caras. Depois, ossos, o puzzle do DNA para dar sepultura aos mortos, ciência aplicada à tragédia grega. Antropólogos forenses penaram a combinar crânios, tíbias, ilíacos e falangetas das valas comuns de Srebrenica. Um filme mostra uma das mulheres no momento em que lhe dizem que há noventa e nove e algo de hipóteses de aquele ser o marido dela (restam os ossos e o casaco). Filmagens de 1995 mostram os incapazes de capacete que a ONU não julgou necessário reforçar. Ratko aparece a rosnar para a câmara, vamos lá vingar a Sérvia. Isto aconteceu na Europa, e toda a gente deixou.

 

Todos mataram, todos morreram, todos tiveram os seus loucos, os seus déspotas, sérvios, croatas, bósnios, mas em nenhum lugar da ex-Jugoslávia se morreu como na Bósnia nos anos 1990, onde sobretudo sérvios mataram sobretudo bósnios de origem muçulmana. E até hoje, em Sarajevo, muita gente faz questão de distinguir entre sérvios da Sérvia e sérvios da Bósnia, porque estes últimos é que eram vistos como nacionalistas radicais, associados a paramilitares, milícias e snippers.

 

A propósito de snippers, e porque estou prestes a encontrar o autor, eis o poema completo:

 

Jogo de guerra

 

No topo da torre mais alta

da Cidade Velha

um franco-atirador

tem o seu ninho

a distância entre

ele e o lugar

onde atravessamos

é cerca de cinquenta

metros em linha

recta

se por um momento

esqueces

que tens de correr rápido

as balas avisam-te

e se não avisarem

quer dizer que estás morto

Podia ser a Pequena História do Cerco de Sarajevo, mas no caso de Faruk Šehic é a Pequena História do Cerco de Bihac (extremo noroeste da Bósnia e Herzegovina), em qualquer dos casos não menos de três anos de cerco. Quero pensar em Faruk antes da guerra, este rapaz ainda vagamente louro que agora entra num bar do bairro otomano de Sarajevo por gentileza para comigo, porque estou na cidade, porque temos um amigo comum, e tudo isto apesar de ele estar com uma gripe daquelas. Sim, este rapaz mais ou menos da minha idade mas há vinte e tal anos, quando, imagino, se poderia dizer, sem dúvida, que era um rapaz louro, um rapaz com uma profissão, um rapaz que estudara Veterinária em Zagreb, bósnio mas formado na Croácia porque, claro, as pessoas iam e vinham, uma moeda, uma língua, um país, e além disso, para quem é de Bihac, Zagreb era um pulinho. Ele ia tratar cães, gatos ou cavalos, quem sabe, os anos 1990 apenas começavam. E então começaram. Primeiro, em 1991, independência da Eslovénia; guerra e independência da Croácia. Depois, em Abril de 1992, a Bósnia. Até hoje, neste bar pesado de fumo, Faruk sabe o dia exacto em que voltou a casa, 15 de Abril de 1992. Fácil de saber, porque a 21 de Abril os sérvios atacaram Bihac e ele já estava no exército bósnio como voluntário. Em Maio, a cidade ficou cercada pelos sérvios. E durante 45 meses — quase quatro anos — este rapaz manteve-se em Bihac, ao comando de 130 homens. Quando foi ferido por um morteiro no pé passou meio ano de muletas, nada, um arranhão, comparando com a morte à volta, os amigos que perdeu. Então, depois da guerra, cut the bullshit, toda a tralha non sense, as metáforas de quando ia ser um poeta louro. E além dos poemas começou a escrever contos, uma prosa decomposta, fragmentária. Foi publicado, traduzido, premiado. Teve uma namorada meio-sérvia em Belgrado. Sim, mais fácil estar com um sérvio de Belgrado do que com um sérvio daqui. Mas só acredito na responsabilidade individual, diz ele, não há culpa colectiva.

 

Bairro otomano, turco, muçulmano, como chamar à Bašcaršija, este pedacinho de Sarajevo no fim da recta, quase colado às montanhas: casinhas de madeira com lâmpadas orientais, serviços de café, briquebraque para os turistas que se alojam em hostels chamados Franz Ferdinand, e fazem o tour dos túneis, do cerco, dos snippers, suvenires de guerra. Mas à noite há bares cheios de gente que estava a nascer quando a guerra acabou, raparigas muçulmanas com lenço/sem lenço, com rapazes/sem rapazes, a fumarem/sem fumarem, entre uma bandeira da Palestina e um ecrã de futebol. Podia ser Ramallah, Beirute ou o Cairo.

 

Neva toda a noite. Domingo de manhã, os carros são contornos brancos nos passeios, difícil distinguir o passeio da estrada. Um repórter veterano, antigo parceiro de Ž, leva-me pelas montanhas. Vejo então Sarajevo de onde a viam os atiradores, com os seus restos de castelos otomanos, o seu casario, as suas florestas, como se um cozinheiro celeste tivesse derramado açúcar-glacé por cima de todos nós, e dos séculos.

 

Foram os dias mais felizes da minha vida, diz-me a melhor amiga de Ž em Sarajevo, sobre os últimos meses do cerco. Ela passara os primeiros meses sem dormir, a inventar tudo o que era possível, teatro, concertos, leituras. Em Abril de 1993 veio Susan Sontag, ficaram amigas, Sontag voltou em Julho, fizeram aquele Godot no pátio do Teatro Nacional de Sarajevo, junto ao qual estou a dormir, vejo-o da janela do quarto. Veio 1994, o cerco continuava, era preciso continuar. Até que em 1995 ela se viu com trinta e oito anos e um amante. Queria ter um filho? Talvez, antes precisava de respirar. Foi ter com Sontag à América, visitou amigos, era para ser uma viagem de meses mas em Maio ela já sabia, sim ia ter um filho, ia voltar. Tal como Faruk, sabe o dia exacto em que voltou a casa, 22 de Maio. Na manhã seguinte o amante veio e ela acredita que engravidou nesse dia mesmo. A filha nasceu em Março de 1996, primeiro mês depois do cerco, o que quer dizer que a gravidez coincidiu com os últimos nove meses de cerco. Por isso foram os dias mais felizes da sua vida, o bebé ia protegê-la de tudo.

 

Segunda-feira, 29 de Dezembro, continua a nevar. Passeio ao longo do rio com o filho de um soldado que Ž fotografou em 1993, e a que depois voltou várias vezes. Atravessamos a Ponte Latina, e voltamos à direita para o parque do coreto (que aqui se chama pavilhão musical). Teria mais de cem anos, não fosse ter sido bombardeado e reconstruído, mas a neve fica-lhe bem. O meu parceiro de caminhada tem 27 anos. Todas as suas primeiras memórias são de guerra. Aos cinco já se escondia de snippers e sabia distinguir granadas. Volta e meia tinham de ir para uma cave a noite inteira, todo o bairro ia. Muitos prédios tinham abrigos, vinha do tempo da Jugoslávia. Ele ia com a mãe e a irmã bebé, porque o pai estava a combater, operava um lança-chamas, ficava fora durante meses, voltava por um mês, às vezes trazia latas de comida. Às vezes também conseguiam comida da ajuda humanitária, e a mãe tinha uma horta. As pessoas escavavam para encontrar água e toda a gente ia com recipientes, por trás das casas, encostada aos prédios. As crianças sabiam que não podiam brincar no meio dos pátios. A escola também era numa cave, mas ele ia às aulas quase todos os dias. Como quase sempre não havia luz, acendiam velas, candeeiros a gás e pedalavam uma bicicleta até fazer o rádio funcionar, só cinco minutos para ouvir as notícias, ora ele, ora a mãe. Em suma, o que ele sabia era que os sérvios atacavam e eles se defendiam: faz a tua coisa a cada dia e espera que a cidade não caia. À custa de tanto, Sarajevo não caiu. E aqui está ele hoje, três palmos mais alto do que eu, senhor dos céus. Não é metáfora, acaba de se diplomar controlador aéreo. Um ano a viver em Belgrado, começou nervoso, depois passou. Os responsáveis não eram aqueles, havia que pôr a guerra para trás das costas e ter a certeza de que não voltava a acontecer. Ter uma namorada sérvia ajudou, decerto a ambos. A guerra que ela vivera directamente era a das semanas em que a NATO bombardeou alvos sérvios em 1999. Quando ele lhe contou da infância em Sarajevo foi uma surpresa porque os livros na escola dela diziam coisas diferentes dos livros aqui. De resto, ele nunca teve um problema em Belgrado com o nome, claramente muçulmano. Tudo correu bem, voltou com um trabalho bem pago, raridade na Bósnia, onde o desemprego é o principal problema, num sistema tão corrupto que ele nem vota. E fará parte da primeira geração de bósnios a controlar o espaço aéreo da nação, até agora nas mãos de sérvios e croatas, fifty-fifty. Há um mês, Sarajevo tomou conta da metade inicial, 10.000 metros, em Fevereiro recebe a segunda metade. Ele chegou no momento certo e descobriu que tudo o preparara para isso, a pressão de um trabalho onde não pode haver erro, dos mais difíceis do mundo. Tudo desde o cerco, numa rua de Sarajevo onde metade dos amigos de infância se tornaram junkies, numa casa onde o pós-guerra devolveu um pai alcoólico. O filho resume isto de forma implacável, diz que teve de assumir o controle das coisas muito cedo, e desde então nunca deixou de o fazer. Um dia avisou o pai de que o mataria se voltasse outra vez a casa embriagado, o pai desapareceu uma semana mas nunca mais bebeu. Agora está tudo ok, tanto quanto depende dele. Arranjou o seu próprio apartamento. Não vai à mesquita, é ateu. Continua a namorar a rapariga de Belgrado, ela vem para a passagem de ano, ele ficará a morar aqui, é certo. Adora a adrenalina do que faz, todos os dias aviões diferentes, a diferentes altitudes, a diferentes velocidades, que não podem chocar, ou entrar numa daquelas nuvens com trovoada. O trabalho dele é pensar depressa.

 

III. Belgrado

 

Terça, 30 de Dezembro: também nevou aqui. Branco ao aterrar, branco até à entrada de casa. Tenho de me agarrar ao braço de Ð para não cair nos passeios. Ou não tenho, mas é muito melhor.

 

Gosto daquele velho amigo de Ž (o do cão encantador). Diz coisas tão inesperadas para um sérvio como ter sido a favor das bombas da NATO sobre os alvos de Miloševic (apesar dos erros, apesar dos erros, incluindo um hospital). A capacidade auto-crítica destes sérvios só se compara ao humor negro dos bósnios, que fazem da morte a mais escandalosa anedota. Mas nada é mais escandaloso, mesmo.

 

(E viciante? Toda uma bibliografia sobre como a guerra pode ser aditiva, toda uma medicina, endorfinas, dopamina. A urgência, a intensidade, a alucinação. A segunda oportunidade que é a compaixão? A certeza de, enfim, ter um coração? Ð sabia que o assunto me interessava, era esse o assunto que levava a Ž: a guerra como única forma de estar vivo.)

 

Toda a gente fuma três maços por dia em Belgrado, em virtualmente todos os lugares fechados, incluindo o elevador do meu prédio. O tabaco é barato, as rendas são baratas, a cidade tem dois rios e os homens são grandes. Do que entendi até agora parece que o único impedimento de Belgrado é que se eu beijar uma mulher na rua dá insulto, e homem com homem dá hooligans. Ó gente viril, é mesmo isso, não basta Putin? Se os hooligans não têm objectivo, qual é o objectivo dos não-hooligans? Cura, limpeza, salvação? Hitler era um homossexual reprimido. Matou seis milhões mas manteve-se virgem. Isso dá-lhe créditos no inferno?

 

Já agora, em que inferno penará Arkan, que chegou a comandar uma claque do Estrela Vermelha quando já tinha uma sólida carreira de bandido internacional, e depois fez dos seus hooligans a mais temida milícia dos Balcãs, raptos, torturas, execuções, extorsões? Fascinante imaginar as conversas dele com deus quando se refugiava num mosteiro ortodoxo com os seus tigres armados, todos bem acolhidos, quem sabe até o seu tigre bebé. 

 

Mais um rapaz de Dedinje, Arkan, mas uma geração antes de Ž. A única vez que se cruzaram foi quando Ž o fotografou no instante da morte, coincidência raríssima na história da fotografia. Porque, por acaso, às cinco da tarde de 15 de Janeiro de 2000, Ž estava no foyer do Hotel InterContinental de Belgrado à espera de alguém. Como não vinha para fotografar tinha só uma pequena câmara na mochila, com um filme já a meio, e pegou nela discretamente ao avistar o gangue de Arkan: os homens que o guardavam, a interacção com tudo em volta. Minutos depois os assassinos entraram no seu campo de visão. Em 38 tiros, três foram fatais, boca, têmpora, olho. A última imagem de Ž capta o momento em que a senhora Arkan — Ceca, inflada diva do turbo-folk — vem a correr da loja onde fazia compras. Depois, o filme acaba.

 

Ž publicou as fotografias, com uma curta declaração sobre o acaso que o levara ao hotel, mas recusou-se uma vez mais a dar entrevistas. Anos de especulação mundial. Uns viram nisso uma ligação de Ž ao assassinado, outros uma ligação de Ž aos assassinos. Os acasos têm péssima fama.

 

A segunda vez que vi Ž, em 2002, ele contou-me como o caso Arkan gerou nele uma repulsa que o afastou da ex-Jugoslávia para sempre. Estávamos bem longe daqui, numa Ramallah invadida por tanques israelitas, sob recolher obrigatório. Não lhe contei o que acontecera da primeira vez, não valia a pena. Eu decidira sozinha, e neste fim de 2014, em Belgrado, brindo a isso de nenhuma portuguesa ainda ter de abortar clandestinamente.

 

Rakija de alperce: amanhã, antes de o ano acabar e subirmos ao Kalemegdan, vou dizer a Ð que não consigo reconstituir a história de Ž. Cada vez tenho menos certezas sobre ele, o que provavelmente significa que ele será cada vez mais ele próprio. Portanto a história continua, Ž só decidiu desaparecer no mundo, como o seu herói J. D. Salinger. Mas eu também não gostaria de escrever a história de Salinger contra o seu próprio silêncio.

 

Uma banda de outro planeta ataca numa antiga igreja transformada em teatro, clube, bar. Eu achava que ia só ouvir jazz, mas em Belgrado nunca é tão simples. Eles têm um DJ, eles misturam Marvin Gaye com música iraniana, eles querem que a gente dance. E quando vou lá perguntar se já gravaram um disco dizem que não estão interessados, que é só pelo gozo de estarmos todos vivos, ao mesmo tempo, aqui.

 

Coitado do Kusturica.

 

Quem?

 

(Este conto foi escrito e publicado em Belgrado, em Janeiro de 2015, no âmbito da residência de escrita Krokodil em parceria com o Centro de Língua Portuguesa de Belgrado/Instituto Camões. Esta é a primeira publicação do original português)     

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