A que soam e como suam as noites de Londres

Inspirados pela club culture londrina, Cecilia Bengolea e François Chaignaud criaram uma eufórica coreografia que esta quinta-feira se apresenta no Teatro Maria Matos, em Lisboa, integrada no ciclo Gender Trouble.

Foto
Uma celebração em palco da club culture londrina Emile Zeizig

A coreografia em estado de euforia de Cecilia Bengolea e François Chaignaud que esta quinta-feira se apresenta no teatro lisboeta é sobretudo uma celebração em palco da club culture londrina, afinando a mira especificamente na direcção do género musical grime.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

A coreografia em estado de euforia de Cecilia Bengolea e François Chaignaud que esta quinta-feira se apresenta no teatro lisboeta é sobretudo uma celebração em palco da club culture londrina, afinando a mira especificamente na direcção do género musical grime.

“A Cecilia foi a primeira a interessar-se e sentir-se atraída por essa música porque viveu em Londres e contactou de perto com esse meio”, conta Chaignaud ao PÚBLICO. “Mas depois também achei que era uma música muito electrizante, muito natural e popular, mas que conseguiu não ser estragada pela indústria mainstream.” O ponto de encontro de diferentes culturas específico do grime – um triângulo amoroso composto por hip hop norte-americano, UK garage britânico e dancehall jamaicano – acabou por seduzir a dupla para a criação de uma peça que se alimenta da energia esfuziante e muito sexual da música e da forma como é dançada, mas assumindo que mesmo o que possa haver de transferência da observação nos clubes passado para o palco resulta de um trabalho verdadeiramente coreográfico e dá forma a um objecto distinto.

A questão é sensível para ambos. François defende que talvez só na Europa exista a ideia de que a vida nocturna se faz procurando largar as regras do dia-a-dia e caindo numa confortável zona de inconsciência. “Só que estes sítios, clubes e discotecas”, defende, “estão cheios de convenções e de regras das suas culturas. Todas estas linguagens, seja dancehall, krump ou reggae, são muito coreografadas, não se dançam de qualquer maneira.” O que os dois pretendem, portanto, é reconhecer que estas têm direito a entrar nos teatros como qualquer outro reportório da dança clássica ou moderna. Com a ressalva, acrescenta Cecilia Bengolea, de que nesse gesto não existe qualquer legitimação. “Esta cultura é muito útil nas ruas, precisa de estar lá e não melhora por subir a um palco. As danças de rua não precisam de mim para serem melhores ou serem arte.”

O perigo de não saber
Sem que siga uma abordagem teórica sobre papéis de género e identidade sexual, altered natives, joga-se bastante, admite Chaignaud, numa projecção da forma como “cada um quer ser desejado e como se quer apresentar aos outros”. “Isso não faz parte de um statement, é antes a consequência de as nossas peças responderem por aquilo que somos nas nossas vidas. E claro que a identidade é uma grande parte disso.” Em cada movimento existe depois toda a apreensão do seu contexto original. Em palco, Bengolea não consegue evitar corporizar acções do dancehall – “uma das danças mais sexuais que existem”, classifica – que, aprendeu nas suas frequentes viagens à Jamaica, foram criadas pelas mulheres acreditando ter “efeitos contraceptivos” e ajudar a curar dores menstruais.

Aquilo que seduz a bailarina e coreógrafa é a forma como o dancehall, na Jamaica, dessacraliza a energia sexual, tornando-a menos privada e íntima, algo usado de forma lúdica, destravada e entre amigos. De certa forma, é esse despudor que entra também em altered natives (aproveitando o parentesco com o grime), nesta instalação de uma festa num palco de teatro em que os bailarinos gostam de sentir “o perigo, de não saber o que vai acontecer”. É que, tal como numa discoteca, as coreografias existem, mas os DJ que actuam ao vivo têm sempre o poder de impor novos percursos.