Guardian: a directora que vem do digital e quer “acarinhar” a edição em papel

A primeira directora do jornal britânico, a recém-eleita Katharine Viner, montou a edição digital na Austrália e teve a seu cargo a operação norte-americana do jornal.

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Katharine Viner DR

A nomeação da jornalista, editora e directora-adjunta — que promete manter o Guardian como a “sede do mais ambicioso jornalismo, ideias e eventos” — foi ratificada pelos administradores do Scott Trust, o fundo criado nos anos 1930 pelo milionário John Scott e mantido pela família para sustentar (em perpetuidade) a operação e a independência editorial do seu jornal.

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A nomeação da jornalista, editora e directora-adjunta — que promete manter o Guardian como a “sede do mais ambicioso jornalismo, ideias e eventos” — foi ratificada pelos administradores do Scott Trust, o fundo criado nos anos 1930 pelo milionário John Scott e mantido pela família para sustentar (em perpetuidade) a operação e a independência editorial do seu jornal.

Avaliado em cerca de 1,4 mil milhões de libras (1,9 mil milhões de euros), o fundo vai ter como novo presidente do conselho de administração precisamente Alan Rusbridger, o icónico director do The Guardian que se reforma em Junho depois de 20 anos em que transformou o diário de Manchester, um renegado da outrora pujante Fleet Street, numa marca internacional — que “inova” ao fim de 194 anos, indicando pela primeira vez uma mulher para o cargo mais importante da sua hierarquia editorial.

No “boletim” de voto disponibilizado aos jornalistas da casa (e também aos freelancers que recolhem mais de metade dos seus rendimentos em colaborações com os dois títulos do grupo), estavam outros três concorrentes, todos veteranos da publicação. Só uma, Emily Bell, está fora da estrutura: uma das principais responsáveis pela transição para a plataforma digital saiu do jornal para dirigir o centro de jornalismo digital da conceituada Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Os outros dois eram Wolfgang Blau, director da estratégia digital, e Janine Gibson, a actual directora da edição online.

Apesar da transparência do processo e da primazia da redacção na escolha do seu futuro líder, os administradores do Scott Trust avaliaram outros candidatos para além dos que constavam no boletim. Desses, sobressaiu Ian Katz, um outro veterano do jornal que saiu em 2013 para dirigir o premiadíssimo programa de informação da BBC Newsnight. Segundo o Financial Times, o sprint final na maratona de três meses para a selecção do sucessor de Rusbridger foi entre ele e Katharine Viner.

Nos rios de tinta que se escreveram durante o processo, Katharine Viner foi apresentada como uma das muitas “acólitas” de Rusbridger, com uma imaculada e impressionante carreira quase toda feita no The Guardian, onde entrou pela primeira vez em 1992: recém-formada em Inglês na exclusiva Universidade de Oxford, ganhou um concurso para trabalhar como “editora convidada” da secção feminina do The Guardian durante duas semanas.

O primeiro texto que assinou foi sobre os dilemas das mulheres mais bem abonadas de peito, intitulado “Tempestade numa copa D” (trocadilho com a terminologia da indústria de moda para os tamanhos dos soutiens). Não era jornalismo de investigação, mas como confessou à revista Capital de Nova Iorque, “foi uma revelação. Percebi que era exactamente aquilo que queria fazer”.

Essa curta experiência a tratar de matérias mais femininas conduziu-a à revista Cosmopolitan, onde esteve cerca de dois anos. Daí passou para o The Sunday Times, que a contratou como grande repórter, para escrever perfis dos protagonistas das notícias ou traduzir para os leitores britânicos a importância de fenómenos culturais ou sociais estrangeiros.

Dos features à direcção
Em 1997, com 26 anos, Katharine recebeu uma nova chamada do The Guardian e não hesitou em trocar o semanário detido por Rupert Murdoch pelo seu diário de eleição. De grande repórter passou a editora do G2, o suplemento de cultura; depois a editora da revista de fim-de-semana; entretanto foi promovida a responsável pelos features do jornal e daí subiu à equipa de direcção como adjunta.

Em 2013, Katharine foi incumbida de montar e dirigir uma nova edição digital do The Guardian na Austrália, uma segunda seta transcontinental do vetusto diário britânico, que dois anos antes tinha decidido apostar no apetecível mercado mediático norte-americano. Um ano depois, Viner trocou Sydney por Nova Iorque: a nova directora do The Guardian U.S. explicou que a sua nova missão seria consolidar o sucesso da operação norte-americana, “expandir a cobertura a novas áreas de interesse e aprofundar o relacionamento com os leitores dos EUA”.

Katharine Viner “herdou” o cargo de Janine Gibson, quase sempre apresentada como a sua principal rival, uma espécie de indefectível da “facção” das notícias, ao contrário de Katharine, cuja principal sensibilidade é para os chamados features. Gibson foi a grande promotora da investigação baseada na denúncia de um desconhecido consultor informático chamado Edward Snowden sobre a existência de um programa secreto de espionagem na Agência de Segurança Nacional — que valeu ao jornal o seu primeiro prémio Pulitzer.

Instintos quase “selvagens”
Num perfil de Alan Rusbridger, que era também um texto sobre a sua sucessão no The Guardian, o colunista norte-americano Michael Wolff descreve Gibson como uma jornalista e editora com instintos políticos quase “selvagens”, fumadora inveterada, pouco polida e sofisticada apesar da sua linhagem Oxbridge, “desagradável, rude, intriguista, até mesmo arruaceira”. A peça, publicada na edição de Março da revista GQ britânica, faz referência ao facto de tanto o autor como a sua filha terem sido, em diferentes momentos, colaboradores do jornal, mas não diz que foi precisamente Janine Gibson que decidiu pôr termo à coluna assinada por Wolff no The Guardian.

Vários jornalistas que foram sendo citados anonimamente durante a selecção do director referiram uma antiga rivalidade interna de Katherine Viner, não com Janine Gibson mas com Ian Katz — supostamente, o “desacerto” entre os dois tornou-se evidente quando ambos ocupavam cargos executivos, Viner como responsável da edição de sábado e Katz como chefe de redacção. A preponderância de Katz na colaboração do The Guardian com a Wikileaks para a exposição de milhares de segredos diplomáticos levou muitos na redacção (e consta que também o próprio) a acreditar que seria ele o herdeiro de Alan Rusbridger.

A fricção com outros colegas parece ser a excepção no que diz respeito à postura de Katharine na redacção. A popularidade de que goza na estrutura, apontam os observadores, não é só fruto da sua personalidade jovial, calorosa e até mesmo “radiante”, como dizem os perfis entretanto publicados. Nos seus 18 anos no The Guardian, Viner cultivou amizades e importantes alianças — segundo Michael Wolff, era a “mais simpática” e também a “mais esperta” de todos os candidatos ao cargo de director. O Financial Times diz que é bastante mais “acessível” e também mais “esquerdista” do que Rusbridger.

A força da sua candidatura, concordam vários comentadores, assentou na sua total coincidência ideológica com o rumo definido há vários anos por Alan Rusbridger: um plano que uns classificam como “enérgico”, outros como “visionário” e outros ainda como “existencial” de crescimento e expansão internacional através da operação digital, primeiro nos EUA, depois na Austrália e em seguida (diz-se) na Índia.

Uma estratégia que, ainda segundo Michael Wolff, permitiu reabilitar a reputação e fortalecer a influência do jornal. O colunista aponta os três momentos que projectaram o Guardian como uma marca global: os casos que ficaram conhecidos como o Cablegate em colaboração com a Wikileaks; a revelação do programa secreto de vigilância electrónica dos serviços secretos do Reino Unido e dos EUA, com a exposição de Edward Snowden como fonte; e ainda a cobertura das escutas ilegais realizadas pelo tablóide britânico News of the World e outros títulos do império mediático de Rupert Murdoch. Essa história, que o Guardian revelou e nunca desistiu de investigar, levou à extinção de um jornal de 168 anos, a demissões no Governo, à abertura de um inquérito parlamentar para a mudança da regulação dos media e ainda à detenção de jornalistas.

O problema do grupo é que a estratégia de sucesso editorial está a ser implementada à custa da sua base financeira, e “até ao momento não produziu receitas significativas”. O desafio da nova directora, resumia o Financial Times, será encontrar o “equilíbrio entre as ambições globais do The Guardian e a sua esquiva rentabilidade”.

Viner vai trabalhar sob pressão para provar o acerto do plano de Rusbridger: apesar de a venda da participação no lucrativo Trader Media Group (que detém o site AutoTrader) ter garantido ao Scott Trust uma almofada de mil milhões de libras (1,3 mil milhões de euros), estima-se que os prejuízos do grupo tenham atingido os 45 milhões de libras (61 milhões de euros) no último exercício.

Activista menos ortodoxo
Completamente alinhada com a estratégia digital de Rusbridger, Katharine Viner surpreendeu, tanto no seu manifesto como na sessão de perguntas e respostas com os jornalistas na sede de Kings Cross, ao insistir nas potencialidades da reportagem, da crítica ou da cultura, aparentemente deixando para segundo plano a investigação e a cobertura política — a sua proposta, interpretaram os comentadores, é para um jornal menos “ortodoxo” e “doutrinário”, ainda que na mesma linha de “activismo” na cobertura de causas liberais (como a actual campanha sobre alterações climáticas “Keep it in the ground”).

E surpreendeu ainda mais ao falar na necessidade de “salvaguardar o futuro do papel”, e defender a reabilitação da edição física do The Guardian, que na sua opinião precisa de atenção urgente. Com as vendas e a circulação em queda (para uma média diária de 180 mil exemplares, atrás do The Times e do Telegraph), o produto em papel é visto por muitos como um anacronismo com os dias contados, mas a nova directora diz que não pode ser “prejudicado” pela evolução para o digital, antes deve ser “acarinhado”.

A surpresa veio, talvez, por Viner ser alguém que há anos defende a plataforma digital, e que fala com a autoridade de quem foi responsável, num ano, por um aumento de 30% no tráfego online nos EUA, que já é um terço da audiência digital do The Guardian. E por se referir com emoção e entusiasmo à “mudança conceptual e sociológica” do jornalismo digital, que define como uma coisa “fluida, viva, em permanente evolução, sem limites, inexorável”; como uma “oportunidade” que pode ser, ao mesmo tempo, “um perigo e uma armadilha” (como disse num discurso em Melbourne em 2013, onde reafirmou a sua posição de princípio contra o estabelecimento de paywalls, que considera uma antítese da liberdade oferecida pela plataforma digital).

Sistemas analíticos
No discurso de “campanha” na sede do jornal, indicou que a sua abordagem seria de inclusão e convívio entre as novas e velhas técnicas e tecnologias. “O Guardian navegou com sucesso a primeira fase da revolução digital: aumentamos a nossa escala, percebemos o que nos faz diferentes e conquistamos a confiança dos leitores”, escreveu. “Temos uma identidade forte, uma história que nos honra e uma base de integridade e resiliência. Mas enfrentamos grandes desafios: e é porque devemos garantir a sobrevivência do jornalismo do The Guardian que o nosso plano deve ser claro mas flexível — temos de ser humildes perante um futuro tão incerto”.

A sua apetência e até “obsessão” com o jornalismo digital ficou comprovada num artigo do Nieman Lab sobre a utilização crescente de sistemas analíticos nas redacções. A peça abre com o exemplo de Katharine Viner e a sua constante preocupação com a medição e avaliação da performance das peças publicadas. “Quando acordo de manhã, primeiro passo os olhos pelo Ophan [o sistema de análise integrado desenvolvido pelo The Guardian], depois espreito o Twitter, o correio electrónico e depois vejo as coisas pessoais”, confessou.

No início do ano, Viner promoveu mais uma reorganização do The Guardian em Nova Iorque. “É um plano ambicioso para montar uma redacção capaz de produzir tanto notícias rápidas como reportagens profundas, que assegura uma cobertura efectiva durante todo o dia e que aproveita da melhor maneira as características individuais de cada jornalista”, explicou num comunicado interno. É a receita que promete replicar agora em Londres, dentro da linha “de excelência jornalística, opinião independente, análise profunda e inovação digital” que distinguem o Guardian, disse.