Com Yasar Kemal, a Turquia moderna teve a sua epopeia

O grande escritor da geração anterior a Orhan Pamuk morreu no sábado, aos 92 anos, vítima de falência respiratória. Deixa uma obra incomparável, traduzida em mais de 40 línguas, que fundou a moderna literatura turca e uma parte da sua consciência.

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Doente pulmonar, o seu estado de saúde agravara-se muito ao longo da última semana; acabou por morrer no sábado, vítima de falência respiratória, num hospital de Istambul, acompanhado pela mulher, Ayse Semiha Baban. O primeiro-ministro turco, Ahmet Davutoglu, reagiu com "tristeza" à "perda do grande escritor e artista", sublinhando em comunicado a sua "capacidade para manter a dissidência e dizer a verdade sem hesitações num tempo em que dizer a verdade era difícil". Na sua conta do Twitter, o ministro da Cultura, Omer Celik, escreveu que "a Turquia e a Humanidade perderam uma grande alma".

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Doente pulmonar, o seu estado de saúde agravara-se muito ao longo da última semana; acabou por morrer no sábado, vítima de falência respiratória, num hospital de Istambul, acompanhado pela mulher, Ayse Semiha Baban. O primeiro-ministro turco, Ahmet Davutoglu, reagiu com "tristeza" à "perda do grande escritor e artista", sublinhando em comunicado a sua "capacidade para manter a dissidência e dizer a verdade sem hesitações num tempo em que dizer a verdade era difícil". Na sua conta do Twitter, o ministro da Cultura, Omer Celik, escreveu que "a Turquia e a Humanidade perderam uma grande alma".

Traduzido em mais de 40 línguas (em grande parte pela sua primeira mulher, Thilda Serrero, uma judia sefardita de Istambul que dominava perfeitamente o inglês e o francês), o grande escritor da geração anterior a Orhan Pamuk transportou a literatura turca, então ainda muito influenciada pelo barroquismo da poesia persa, até à modernidade europeia, justapondo ao universo fantasioso dos contos da tradição popular um agudo poder de observação e de denúncia das tremendas injustiças sociais da Turquia pós-otomana. 

Memed, Meu Falcão, o seu torrencial primeiro romance, publicado em 1955 (e editado em Portugal pela Caminho, que o incluiu na colecção Uma Terra Sem Amos), tornou-se muito rapidamente um clássico da literatura de revolta, narrando o coming of age do filho de jornaleiros pobres que se revolta contra o cacique da aldeia. Através de Yasar Kemal (que quase até ao fim, conta o Libération, continuou a escrever a lápis em grandes folhas de papel branco aquilo que deverá vir a ser a sua autobiografia), a Turquia rural tornou-se ficção, e todo um cancioneiro oculto, o cancioneiro difundido pelos velhos asik, trovadores ambulantes que chegavam às aldeias mais remotas do Sul do país acompanhados de um alaúde, ganhou visibilidade. Foi, de resto, a contar e a cantar histórias que Kemal descobriu o segredo para se libertar finalmente da gaguez, aos 12 anos. Foi então que nasceu verdadeiramente um escritor, e que se inaugurou uma literatura. 

Correr à frente do medo

Nascido em 1923 em Hemite, uma aldeia da região de Osmeniye, no Sul da Turquia, Kemal Sadik Gökçel começou a escrever ainda muito jovem, antes de chegar a Istambul: transcrevendo os seus poemas e as histórias do folclore popular, ouvindo os camponeses analfabetos ditarem-lhe as palavras que queriam fazer chegar aos seus entes queridos da grande diáspora da primeira metade do século XX.

Em 1946, mudou-se para Istambul para estar com os irmãos, Arif e Abdidi Dino, perfeitamente integrados nos círculos intelectuais esquerdistas da grande cidade euro-asiática, mas nunca deixou de sonhar com os arrozais e com os campos de algodão, nem com a linhagem de camponeses, bandidos, poetas errantes e ladrões de cavalos de que sempre se viu como herdeiro. Quatro anos depois, publicava o primeiro livro, comprometido não apenas com a renovação da língua e da literatura turcas como com a transmissão nua e crua da vida do campesinato: "Não acredito numa arte separada do povo. A minha literatura está ao serviço do proletariado", declararia.

O compromisso com o ideário comunista levá-lo-ia, já na década de 60, depois de publicados o seu primeiro volume de contos e o seu grande romance, à direcção do Partido Trabalhista turco em 1962; cinco anos mais tarde, fundava a Ant, uma revista marxista. Ao longo da sua vida, nunca deixou de presidir a sindicatos e associações de artistas e de escritores nem de se bater publicamente em defesa das causas que considerava justas, e nomeadamente pelos direitos da minoria curda e contra o abuso de poder.

O seu desassombro levou-o a ser detido uma primeira vez aos 17 anos; uma década mais tarde, cumpriu tempo na prisão por fazer "propaganda comunista"; o golpe militar de 1971 forçá-lo-ia ao exílio na Suécia. Já em 1995, de volta à Turquia, foi condenado a uma pena suspensa de 20 meses de cadeia por defender o separatismo curdo ("Um mundo em que haja apenas uma língua será pior do que o inferno").  Mas voltou a aparecer à porta do tribunal quando em 2005 foi preciso dar o seu apoio a Orhan Pamuk, que em certo sentido lhe roubou o Nobel da Literatura para que havia sido proposto pela primeira vez em 1973 e que então enfrentava um julgamento por "insultos à nação", ou, mais recentemente, ao sociólogo Pinar Selek, julgado em 2011. Era mais forte do que ele, explicou certa vez: "Detesto os heróis, mas como muitos homens não consigo impedir-me de correr à frente do meu medo." De resto, foi precisamente num tribunal que decorreu a primeira leitura pública do seu livro de estreia: "O juiz lia muito bem e no final da audiência confidenciou-me que tinha gostado muito da minha história."

Premiado inúmeras vezes no estrangeiro (François Mitterrand deu-lhe a Legão de Honra em 1984 e voltou a recebê-lo no Palácio do Eliseu em 1995, quando o escritor estava indiciado pelo seu apoio à causa curda), Yasar Kemal nunca deixou de acreditar na Turquia, que coincidentemente nasceria como república apenas umas semanas depois dele, apesar da sua terrível propensão para a tragédia. Na sua última grande saga, ainda por traduzir em português, narrou esse parto difícil saído do sangue e da impossível mortandade da Primeira Guerra Mundial: "É a tragédia original da modernidade turca que continua a assombrar a nossa memória: as guerras, os deslocamentos forçados de populações inteiras, os massacres, os genocídios, mas também a destruição da natureza."