Um teatro de choque

Quase 30 anos depois de estreada, a peça El Público, de Federico García Lorca, foi transformada em ópera pelo compositor Mauricio Sotelo, a pedido do Teatro Real

Fotogaleria

Nesta peça, numa linguagem influenciada pelo surrealismo, tão poética quão desbragada, aborda-se a verdade do amor, o papel das máscaras, a relação entre vida e arte e a possibilidade de um teatro novo; a pulsão erótica surge no seu espectro mais largo, da languidez mais táctil à violência mais gratuita, tendo no seu centro o desejo homossexual. Através da relação entre o Director e Gonzalo, seu antigo amante, imagina-se um teatro subterrâneo feito de verdades sepultadas, como a de Julieta, que brevemente ressuscita, aspirando a um amor proibido, que não o de Romeu; mas o público, dividido, afasta-se ou revolta-se, crucificando também esse amor, ou esse espectáculo.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Nesta peça, numa linguagem influenciada pelo surrealismo, tão poética quão desbragada, aborda-se a verdade do amor, o papel das máscaras, a relação entre vida e arte e a possibilidade de um teatro novo; a pulsão erótica surge no seu espectro mais largo, da languidez mais táctil à violência mais gratuita, tendo no seu centro o desejo homossexual. Através da relação entre o Director e Gonzalo, seu antigo amante, imagina-se um teatro subterrâneo feito de verdades sepultadas, como a de Julieta, que brevemente ressuscita, aspirando a um amor proibido, que não o de Romeu; mas o público, dividido, afasta-se ou revolta-se, crucificando também esse amor, ou esse espectáculo.

Foi esta peça que o anterior director artístico do Teatro Real, Gérard Mortier (1943-2014), quis ver transformada em ópera pelo compositor espanhol Mauricio Sotelo (n. 1961), que para tal se apoiou no seu amigo escritor, também músico, Andrés Ibañez, a quem confiou o libreto. Ideada e composta entre 2010 e 2014 (com a escrita concentrada em 2011/2012), foi estreada em Madrid na passada terça-feira, já depois da morte de Mortier, a quem é dedicada. Manter-se-á em palco até dia 13 de Março; a récita de dia 6 será transmitida em directo no canal de televisão Arte.



Para Andrés Ibañez, El Público "representa o lado mais negro de Lorca, a sua busca de um teatro impossível". O libreto conserva o texto original, que foi contudo comprimido através de cortes cirúrgicos, procurando-se "conservar o absurdo e o obsceno, e tudo aquilo que para Lorca era de mais pessoal (o amor homossexual, a reflexão sobre as máscaras)". Algumas mudanças procuraram corresponder a sugestões do compositor, Mauricio Sotelo, cuja preocupação primeira foi "ser fiel à visão que Mortier tinha de uma ópera espanhola dentro da tradição europeia, o que implicava reter a sua inteligibilidade."

De resto, "todo o elemento musical é baseado em dicas textuais, incluindo cores tímbricas, notas derivadas de simbolismos numéricos, os acordes espectrais usados como filtro; por exemplo os cavalos com as suas trompetas sugeriu-me o início trompeteado da seguidilla, que é depois transformado num trompetear orquestral; e o assassínio da criança motiva o único grande cluster da obra." Esta inspiração lorquiana aplica-se em geral a uma das características mais marcantes desta partitura, a presença do flamenco andaluz.

Na verdade, em palco e no fosso orquestral não vemos apenas o habitual grupo de solistas, um coro de cinquenta pessoas e uma orquestra de câmara (Klangforum Wien), a que se soma, de forma mais invisível, música electrónica e um sistema de amplificação/transformação que realça e unifica o resultado sonoro. Temos também um percussionista (Agustín Diassera), um famoso guitarrista de flamenco (Juan Manuel Cañizares), dois conhecidíssimos cantaores (Arcángel e Jesús Méndez) e, como bailarino, o director e coreógrafo do Ballet Flamenco de Andalucía (Rubén Olmo). A integração na ópera desta fina-flor do flamenco andaluz contemporâneo constituiu um desafio tanto para compositor como para os intérpretes.

The partial view '~/Views/Layouts/Amp2020/CITACAO_CENTRAL.cshtml' was not found. The following locations were searched: ~/Views/Layouts/Amp2020/CITACAO_CENTRAL.cshtml
CITACAO_CENTRAL

O flamenco tem sido atentamente escutado por Maurico Sotelo, que desde há largos anos procura maneiras de o integrar na própria criação, evitando tratá-lo como exotismo desgarrado, ou tique nacionalista; no caso vertente, isso passou por enviar aos cantores ficheiros áudio com um esboço sobre o qual, durante três dias, eles gravaram a letra de acordo com o seu estilo; fase de que resultou novo ficheiro já com os ritmos e notas ajustados, "repintados com a sua voz", para eles aprenderem e memorizarem de ouvido.

Segundo Francisco Arcángel, "o Mauricio marca a entrada, as notas, as saídas, mas dá-nos liberdade suficiente de fazer a música à nossa maneira; ele sabe que as notas-base (que definem os diferentes estilos) estão lá, mas o que está no meio (os contornos da melodia e o tempo que dura) depende do teu domínio do material e da tua decisão pessoal, consoante o dia em que estás e como o sentes; há uma improvisação ordenada, não seríamos capazes de reproduzir em todos os pormenores, em todas as actuações, uma só maneira de fazer. Já actuei em obras dele com quarteto e com orquestra, mas esta ópera foi mais difícil, custou-nos as férias; pela extensão, mas sobretudo pela componente cénica, e aprender a actuar em turma. No princípio era tudo novo, movimentos, figurinos, vestimo-nos de uma forma muito estranha; mas também a dinâmica de um grupo. Muitas vezes não se tem a referência do maestro, temos que ter os cinco sentidos alerta; costumo cantar em palco, mas fazê-lo por um minuto, e ter de estar calado três minutos antes de intervir de novo — nesse tempo, que parece longuíssimo, tens que te mover de certa maneira, tens que ouvir os outros solistas, a orquestra, estar super-concentrado para não perder a nova entrada — isso foi o maior desafio."

Para quem segue uma partitura, a espera não é tão dramática, porque há um hábito de contagem de tempos; no entanto estes hábitos não são os mesmos das sequências rítmicas do flamenco: "no ritmo, porque nos é intrínseco, somos bastante exactos", acrescenta Arcángel; "não é que os outros não sejam, mas à sua maneira; mas apesar disso conseguimos ajustar-nos", muito graças à escrita rigorosa de Sotelo e ao maestro Pablo Heras-Casado, que tendo vivido toda a juventude em Granada, tem familiaridade com o flamenco e consegue compatibilizá-lo com a linguagem clássica.

Para os cantores educados em conservatórios, a presença dos cantaores causou alguma perplexidade, e não só por não se apoiarem na partitura: "eles rasgam mais a voz", diz-nos a soprano Isabella Gaudí, "não sei como o fazem, a partir das entranhas, é perigoso, podem romper a voz; enquanto nós a cobrimos procurando as ressonâncias; mas na minha linha de canto vislumbro algo de flamenco, de modo que a fusão acaba por funcionar".

O seu próprio papel, de Julieta, pôs-lhe problemas: "na ária un mar de tierra blanca, estou a cantar a solo, sem acompanhamento, imenso tempo, e acabo muito agudo e pianíssimo, o que é tecnicamente difícil de conseguir. Do ponto de vista interpretativo, há uma mudança brusca, quase imperceptível, entre duas Julietas; a primeira, arrancada a Shakespeare, submissa a um fado, atraída pelo carnal; a segunda já crê no amor verdadeiro, em que a mulher tem voz e voto, e domina o seu destino. De alguma forma, em Lorca surge um canto feminista... como, e porque é que se opera a mudança? Tenho que saber quem é a Julieta, torná-la real".

Durante a ópera, Julieta é acossada pelas pulsões irracionais da natureza, simbolizadas por três cavalos brancos (dois cantaores e um bailaor), duplicados por bailarinos; mas acaba por escolher cavalgá-las, à sua maneira, mesmo urinada pelos animais. No último quadro, Julieta é denunciada pelos seus pés de homem; seria ela um rapaz de quinze anos? Um estudante responde que podendo amar, não interessa. Atravessado por enigmas e aparentes incongruências, o texto de Lorca desafia o público: "a obra é muito densa, e para além de versar temas complexos e abstractos, é composta por cenas que transmitem muitas sensações e sentimentos, é um espelho para o espectador se olhar a si mesmo, para retirar dele a sua própria leitura", acrescenta Isabella Gaudí. Arcángel concorda: ele espera "que as pessoas venham com o coração aberto e a mente aberta, perante uma obra que não é fácil e na qual trabalhámos no duro. Acho que foi um acerto abordar uma obra surrealista através da música contemporânea, que capta a estranheza, o múltiplo. As opiniões hão-de diferir, mas gostava que no fim do espectáculo, ninguém lhe ficasse indiferente."

The partial view '~/Views/Layouts/Amp2020/CITACAO_CENTRAL.cshtml' was not found. The following locations were searched: ~/Views/Layouts/Amp2020/CITACAO_CENTRAL.cshtml
CITACAO_CENTRAL

 
O crítico esteve em Madrid a convite do Teatro Real