Elif Shafak: “É possível sonhar em mais do que uma língua. Recuso categorias nacionais”

Na ficção de Elif Shafak quase tudo é política. Romancista, ensaísta, percorre o mundo em palestras sobre literatura e direitos humanos. É, a par com Pamuk, a autora mais traduzida da Turquia. Esteve em Lisboa a promover A Bastarda de Istambul, romance que em 2005 quase a levou à prisão quando narrou o conflito turco-arménio por mulheres à partida irreconciliáveis

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Acabava de publicar A Bastarda de Istambul, romance que contava o massacre arménio que começou em 1915 e fez cerca de um milhão e meio de vítimas até 1923. Durante décadas, a Turquia não reconheceu o crime e silenciou-o. Shafak contou-o na perspectiva de mulheres de várias gerações e vivências distintas unidas pela herança do passado numa Istambul com uma relação ambígua com a sua história. Cosmopolita e tradicional, liberal e conservadora, religiosa e capaz de suspeitar de dogmas. O livro cruza esses universos, o tempo que se lê e adivinha nas borras de café, e o que discute filosofia, arte e política num café espaço de debate intelectual conotado com a liberdade de pensar ocidental, chamado simbolicamente café Kundera, onde se fala de questões caras àquele escritor checo que são também as de Shafak. Memória, esquecimento, pensamento, exílio, a crítica a todas as formas de totalitarismo, ao dogma, aos estereótipos, recorrendo ao humor, sublinhando o vazio.

É um livro carregado de simbologia, mensagens políticas e deambulações existenciais, contado com referências a escritores, com a música de Johnny Cash. Passaram dez anos sobre o lançamento do livro. Elif foi ilibada ao mesmo tempo que era mãe. Em Lisboa, para apresentar a tradução portuguesa, olha essa experiência com o trauma resolvido, mas com muitas críticas a um regime que acusa de ter acentuado a censura e, por isso, estar a matar a criatividade, a pôr em causa a democracia, a hipotecar uma sociedade que já teve esperança na União Europeia como destino colectivo, mas que agora não quer saber. Ler o livro agora, com as suas personagens presas entre o presente e o passado, a tabus civilizacionais e religiosos, traz a sensação de que o tempo foi capaz de pouco. Elif Shafak, como as mulheres que inventou para o seu livro, traz essa inquietação. Como Amy, a rapariga meia arménia meio americana que viajou para Istambul à procura de “um sentido de continuidade e de identidade”, como escreve no livro, resultado de uma infância fragmentada. Sente-se de muitos lugares por essa itinerância. A sua literatura, onde se destacam nove romances, sete escritos em inglês e só depois traduzidos para turco, transporta essa visão contaminada por várias culturas. Este livro querer conter toda essa complexidade e essa ambição talvez seja a sua maior fraqueza. Como agarrar o leitor a algo quando se quer dar-lhe tudo? Elif Shafak tenta tudo isso numa conversa longa que, como a escrita deste livro, começou com uma imagem: uma rapariga a andar pelas ruas de Istambul à chuva, um salto de sapato partido, a coxear a caminho de uma clínica para fazer um aborto.   

O seu nome literário está colado à política. Pelo percurso, pelos temas, pela perseguição. Incomoda-a responder menos acerca do que escreve do que daquilo que é publicamente?
Não me importo do responder a questões políticas. Enquanto escritora turca não tenho o luxo de cortar com isso. Os meus livros estão cheios de política, têm uma voz política, mas literatura é a minha prioridade. Literatura, histórias, imaginação. Não é a política que me guia, não é essa a minha missão. Tenho formação em Ciência e em Filosofia Política, também venho de movimentos feministas e estou convicta de que a política está em todo o lado, incluindo o nosso espaço privado. Não quero ensinar nada às pessoas, mas gosto de colocar questões e quero ser capaz de o fazer. Fazer perguntas é um acto político. Depois é com o leitor, o modo como vai responder a essas questões. O escritor faz perguntas.
 

Como se define então?
Sou uma contadora de histórias que privilegia a imaginação. Contudo, quando se é uma escritora turca não se tem a possibilidade de não se ser política. Talvez seja o mesmo com um escritor do Paquistão, do Egipto ou da Nigéria, de sítios que não têm uma democracia madura. Se nos interessamos pelas pessoas, se nos preocupamos com a justiça, com o que está a acontecer não podemos dizer que não nos preocupamos com política. A política está em todo o lado. Está nas nossas cozinhas, nas nossas casas, nos nossos quartos. Onde quer que haja relações de poder há política.
 

Esta história é contada da perspectiva de mulheres. Mustafa, personagem masculina, é quase apagada ao longo da narrativa. E a cozinha, tradicionalmente ligada ao universo feminino, com ingredientes a dar nome a capítulos, aparece quase como linguagem próxima do universal, a ligar tempos e geografias diferentes.
Ao escrever este livro dei-me conta de que não nos era permitido falar sobre o passado, não apenas sobre 1915 e as atrocidades, os massacres, mas em geral não podemos falar sobre o passado sem ficarmos zangados ou demasiado patriotas e emotivos. Eu procurava uma nova narrativa, uma linguagem e estilo diferentes, mais calmo, mais caloroso e mais sábio. As mulheres têm isso. Queria contar a história através dos olhos das mulheres de várias gerações, avós, mães, filhas e netas; arménias e turcas, e encontrar uma ponte entre elas. Se um dia houver paz ela virá através de mulheres, será com uma energia mais feminina. Estou tão cansada da energia masculina extremada no Médio Oriente! E a energia feminina cada vez mais confinada ao espaço privado. Ela tem de estar no espaço público. Há muito poucas mulheres no espaço público e escondem o seu lado mais feminino porque para conquistarem esse espaço têm de ser duras.


Ensaia essa possibilidade de paz com mulheres arménias e turcas, divididas por um passado traumático, com “expectativas absolutamente irreconciliáveis”, como escreve.
Sim. Os homens falharam na conversa. Talvez ela seja possível com as mulheres. Foi a minha intenção.

Participou numa conferência dizendo que o poder da narrativa e das histórias pode alterar o modo como pensamos e com isso mudar o resto. Acredita mesmo que a literatura pode salvar?
Sim. Acredito que os livros têm um impacto em nós, acredito que as histórias nos mudam. Mudaram-me. Há momentos em que acho que os livros me salvaram, me deram um sentido de continuidade, uma sensação de centro. Fui uma criança solitária e tive de aprender muitas coisas por mim mesma, através da observação. Os livros ligaram-me ao universo, tiraram-me para fora do meu mundo muito pessoal e egoísta e expandiram a minha mente.
 

Diz que a Turquia mudou muito desde este livro, que começou a aceitar e a integrar no seu discurso o que aconteceu com os arménios, mas essa ideia de abertura, de tolerância não passa para fora. 
A Turquia não está melhor em geral do que estava nesse tempo. Só no que se refere à questão arménia. Há mais pessoas a falar do assunto, mais livros a serem publicados sobre o tema, mais filmes e documentários a serem feitos. A sociedade civil fez progressos em relação ao tema, às deportações, aos massacres de 1915 e a todas as atrocidades cometidas. Mas sobre os progressos democráticos na Turquia, aí a história é diferente. Estou preocupada com o modo como os tribunais funcionam, com a liberdade de expressão, em particular a liberdade de expressão nos media. Muitos jornalistas perderam os seus trabalhos na Turquia, muitos esperam julgamento. A Turquia afundou-se nos rankings mundiais de liberdade de expressão. No passado havia uma maior multiplicidade de vozes e isso desapareceu. Todos os jornalistas, todos os poetas, todos os escritores sabem que na Turquia as palavras os podem meter em trabalhos. Escrevemos com esse conhecimento e como resultado há uma enorme auto-censura.


A sua auto-censura aumentou depois de publicar este livro que quase a levou à prisão?
Quando estou a escrever um artigo acho que sou mais cautelosa do que quando escrevo ficção.

Mas foi a ficção que lhe valeu um julgamento por traição à pátria.
Sim, ironicamente. Mas num romance estou tão preocupada com a história e as personagens que avanço. A ficção tem um magnetismo muito próprio. Acredito que as personagens imaginadas e o mundo acerca do qual estou a escrever são reais. Quando o livro termina, começo a preocupar-me. Será que vai ser um problema? Mas é demasiado tarde.

É inevitável não falar na autobiografia. Quem a lê e sabe do seu percurso de vida reconhece traços seus nas personagens e na relação com a paisagem. Zeliha, a mãe da bastarda, diz-se colada a Istambul, Amy, a rapariga que, como a Elif, não nasceu ali sente essa pertença. Mas há sempre uma sensação ambígua com a cidade ao atravessar o livro.
Acabamos sempre por escrever o que somos não é? Vivi sempre dentro e fora do país. Nasci em França, passei grande parte da minha infância em Ancara com a minha avó e a outra metade em Madrid com a minha mãe. Fui à escola na Turquia, tive uma educação turca, mas também tive uma educação internacional. Foi uma infância pouco comum. Não cresci numa família patriarcal tradicional turca, o que teve grande impacto em mim, na minha individualidade e também na minha ficção.

Sente, como Zeliha, que Istambul é o seu lugar?
Sim e não. Parte de mim é de Istambul por um sentimento de pertença que é ancestral. Mas também me sinto londrina; talvez queira ser capaz de dizer que sou uma alma mundial, uma cidadã do mundo. Parte de mim é de Istambul. A outra parte está ligada a muitas outras culturas. Hoje é possível ter-se mais do que uma casa, um lugar. E até ter mais do que uma pátria. É possível sonhar em mais do que uma língua. Recuso categorias nacionais e pertencer a um único chão. Se me perguntar o que é pátria, respondo que pátria é a terra das histórias. Essa é a minha pátria, o lugar das histórias. Procuro diferentes lugares de pertença, não gosto de políticas de identidade.

Fernando Pessoa dizia que a nossa pátria é a nossa língua.
Sim.
A Elif escreve em turco e em inglês. A Bastarda de Istambul foi o seu segundo romance em inglês e desde então é em inglês que escreve a ficção.
Esse é um assunto que me interessa muito. Fernando Pessoa disse isso e também Mahmoud Darwish [1941-2008], o poeta palestiniano, que disse que a casa é a língua. Respeito essa ideia. É muito querida a muitos poetas e escritores, mas tenho uma visão diferente. Acho que o lugar das histórias é o que conta. É essa a minha pátria. É uma pátria que se pode transportar connosco, como a tartaruga com a casa, a nossa concha. Adoro a liberdade que vem dessa capacidade de se ser entre duas línguas. Não fácil porque não cresci bilingue. Comecei a ler inglês com dez anos; era a minha terceira língua depois do turco e do espanhol. Mas gosto muito da língua inglesa. Ela nunca me abandonou nem eu a abandonei.
 

Não sendo bilingue, como consegue escrever emoções em inglês?
Lendo, pensando. Adoro o vocabulário. Comparo o vocabulário da língua turca com o do inglês. Em turco o vocabulário encolheu porque tirámos palavras antigas. Isso torna a língua pouco aberta. Precisamos de todas as palavras. A minha ligação à língua inglesa é mais intelectual, mais cerebral. Isso é parte do que sou. A ligação com a língua turca é mais emotiva, e eu também sou isso. Não quero ter de fazer uma escolha. A língua molda-nos. Cada língua tem a sua própria melodia, ritmo e isso afecta-nos, mas adoro ser remodelada. Se estou a escrever sobre saudade ou melancolia acho mais fácil em turco. Se quiser ser irónica é muito mais fácil em inglês

Está a falar de identidade e ela está presente neste livro. Asya, a filha bastarda, e Amy, a rapariga arménio-americana, cresceram em mundos distintos. Uma tenta fugir ao passado, a outra corre atrás dele. Encontram-se em Istambul.
Istambul era o sítio ideal para as juntar. É uma cidade fascinante, muito antiga, mas com uma energia muito nova. No entanto, há cem anos era mais cosmopolita do que hoje. Perdemos muita dessa energia cosmopolita porque muita gente deixou Istambul: arménios, judeus, gregos, comunidades cristãs antigas de que ainda restam algumas em Anatolia. muitas minorias foram embora e perdemos muito perdendo-os. Depois dos anos 90 do século passado, votou a ser mais multicultural. Vieram pessoas dos Balcãs, das ex-repúblicas soviéticas, do Médio Oriente, muita gente ligada aos movimentos LGBT, que apoio. Há muitos tipos de minorias, mas é uma cidade enorme, com 14 milhões de pessoas, com muitos tipos de vida onde agora se fala muito em expansão e isso só tem a ver com mais edifícios. Não há memória urbana e a ligação com o passado está a ser arrancada. Só se fala em expansão.

A literatura turca mudou desde o Nobel de Pamuk em 2006?
A literatura na Turquia continua a ser um caminho com um só sentido. O que chega ao inglês da literatura turca, por exemplo, é uma gota. É pena. Porque a Turquia é um país interessante, com todos os seus conflitos entre Oriente e Ocidente. Não acho que o Nobel de Pamuk tenha feito grande diferença para exportar literatura turca, contudo foi muito importante, estimulante para nós, escritores e poetas. Deu-nos mais esperança. Ele tem sido muito criticado na Turquia pelas suas posições, mas apoio-o e respeito-o. Somos um país muito politizado e mal polarizado. Tudo está à sombra da política. Artistas, escritores, precisamos de liberdade, de autonomia. Isso é difícil de explicar na Turquia. É preciso ler romances sem ser através das lentes da política. Há um mês houve uma série de artigos negativos em alguns órgãos de comunicação pró-governamentais sobre Pamuk e sobre mim própria, acusando-nos de pertencer a um lobby de literatura internacional. É surreal. Segundo essa imprensa há um lobby de literatura internacional e que escolhe dois ou três escritores de cada país e esses escritores são usados como instrumentos para destruir a reputação desses países. Sempre que criticamos algo somos acusados de não amar o nosso país, ou de sermos peões de poderes ocidentais. Parece que não são capazes de fazer distinções simples: precisamos de ser críticos se queremos ter futuro. Como resultado, muitos escritores fecham-se nos seus mundos, têm as suas ilhas. Eu não quero. Talvez por isso tenho uma casa em Londres e outra em Istambul. Quero estar ligada ao mundo.


A sua página de Facebook tem centenas de milhares de seguidores, o mesmo acontece no Twitter. É a escritora que mais vende na Turquia, a sua opinião conta e pedem-lhe para ser uma voz colectiva, uma representante.
Muitos leitores do Dubai, Paquistão, Líbano dizem-me que eu os represento, ou que represento as mulheres muçulmanas, que sou uma voz do Oriente ou do Médio Oriente. Fico surpreendida. Como posso representar qualquer coisa maior do que eu mesma? Só posso ser eu. Não quero representar mais nada. Acredito na individualidade e ponho ênfase no indivíduo. Sei que isso se confunde com egoísmo. A Turquia é uma sociedade muito colectiva de uma maneira má. São tribos, partidos políticos, colectividades, comunidades, mas onde está o indivíduo? Quero encorajar a individualidade. Especialmente para as mulheres, é importante serem vistas como indivíduos. São sempre definidas através de homens ou de ligações sociais. Não quero representar as mulheres turcas. Sou uma mulher que também é turca e é assim que quero ser.


Questiona estereótipos, parodia-os numa espécie de nomenclatura no livro.
Sim. Xenofobia, racismo, ultranacionalismo, fundamentalismo religioso, tudo o que divide a humanidade em compartimentos. Tudo o que nos faz dizer que existe um “nós” e um “eles” e que “nós” é melhor que “eles”.
 

Acha que isso é ter um olhar feminino ou feminista sobre o mundo?
Chamo-lhe pós-feminismo [risos]. Tenho muito respeito pelo feminismo, mas quero olhar para o futuro. Não quero ficar nesse registo. Há fenómenos que os movimentos feministas têm ignorado, como as questões LGBT, ou a discrepância entre mulheres orientais e ocidentais, as questões de classe, o pós-colonialismo. É preciso alargar o âmbito, fazer melhor. Enquanto mulheres temos de perceber que temos responsabilidade na continuidade da sociedade e cultura patriarcais. Escrevi um romance chamado Honor [2012, esteve na longlist para o Booker]; é a história de uma mãe e de um filho que mata em nome da honra. Na Turquia criam-se os filhos como sultões e são as mães que fazem isso, que ensinam os seus filhos que eles são privilegiados, que têm o direito de vigiar as suas irmãs. Não estamos perante um regime em que os homens são os opressores e as mulheres as oprimidas. É mais complicado do que isso. As mulheres também são opressoras umas das outras, podem ser o pior inimigo umas das outras. Isso passa-se nos ambientes mais ocidentalizados como nos mais tradicionais onde a matriarca, a sogra, pode oprimir a nora. É muito frequente.


E acha que há uma escrita feminina?
[Risos] Sigo o conselho de Virgina Woolf quando diz que a nossa caneta deve ser bissexual. Não acredito numa voz feminina per se. Gosto de enfatizar a energia feminina porque ela foi oprimida durante demasiado tempo, especialmente no mundo muçulmano. Mas preciso das duas. É a sociedade e a cultura que nos ensina a acentuar uma, e perdemos o equilíbrio. Mas tem de haver um equilíbrio.
 

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Acabava de publicar A Bastarda de Istambul, romance que contava o massacre arménio que começou em 1915 e fez cerca de um milhão e meio de vítimas até 1923. Durante décadas, a Turquia não reconheceu o crime e silenciou-o. Shafak contou-o na perspectiva de mulheres de várias gerações e vivências distintas unidas pela herança do passado numa Istambul com uma relação ambígua com a sua história. Cosmopolita e tradicional, liberal e conservadora, religiosa e capaz de suspeitar de dogmas. O livro cruza esses universos, o tempo que se lê e adivinha nas borras de café, e o que discute filosofia, arte e política num café espaço de debate intelectual conotado com a liberdade de pensar ocidental, chamado simbolicamente café Kundera, onde se fala de questões caras àquele escritor checo que são também as de Shafak. Memória, esquecimento, pensamento, exílio, a crítica a todas as formas de totalitarismo, ao dogma, aos estereótipos, recorrendo ao humor, sublinhando o vazio.

É um livro carregado de simbologia, mensagens políticas e deambulações existenciais, contado com referências a escritores, com a música de Johnny Cash. Passaram dez anos sobre o lançamento do livro. Elif foi ilibada ao mesmo tempo que era mãe. Em Lisboa, para apresentar a tradução portuguesa, olha essa experiência com o trauma resolvido, mas com muitas críticas a um regime que acusa de ter acentuado a censura e, por isso, estar a matar a criatividade, a pôr em causa a democracia, a hipotecar uma sociedade que já teve esperança na União Europeia como destino colectivo, mas que agora não quer saber. Ler o livro agora, com as suas personagens presas entre o presente e o passado, a tabus civilizacionais e religiosos, traz a sensação de que o tempo foi capaz de pouco. Elif Shafak, como as mulheres que inventou para o seu livro, traz essa inquietação. Como Amy, a rapariga meia arménia meio americana que viajou para Istambul à procura de “um sentido de continuidade e de identidade”, como escreve no livro, resultado de uma infância fragmentada. Sente-se de muitos lugares por essa itinerância. A sua literatura, onde se destacam nove romances, sete escritos em inglês e só depois traduzidos para turco, transporta essa visão contaminada por várias culturas. Este livro querer conter toda essa complexidade e essa ambição talvez seja a sua maior fraqueza. Como agarrar o leitor a algo quando se quer dar-lhe tudo? Elif Shafak tenta tudo isso numa conversa longa que, como a escrita deste livro, começou com uma imagem: uma rapariga a andar pelas ruas de Istambul à chuva, um salto de sapato partido, a coxear a caminho de uma clínica para fazer um aborto.   

O seu nome literário está colado à política. Pelo percurso, pelos temas, pela perseguição. Incomoda-a responder menos acerca do que escreve do que daquilo que é publicamente?
Não me importo do responder a questões políticas. Enquanto escritora turca não tenho o luxo de cortar com isso. Os meus livros estão cheios de política, têm uma voz política, mas literatura é a minha prioridade. Literatura, histórias, imaginação. Não é a política que me guia, não é essa a minha missão. Tenho formação em Ciência e em Filosofia Política, também venho de movimentos feministas e estou convicta de que a política está em todo o lado, incluindo o nosso espaço privado. Não quero ensinar nada às pessoas, mas gosto de colocar questões e quero ser capaz de o fazer. Fazer perguntas é um acto político. Depois é com o leitor, o modo como vai responder a essas questões. O escritor faz perguntas.
 

Como se define então?
Sou uma contadora de histórias que privilegia a imaginação. Contudo, quando se é uma escritora turca não se tem a possibilidade de não se ser política. Talvez seja o mesmo com um escritor do Paquistão, do Egipto ou da Nigéria, de sítios que não têm uma democracia madura. Se nos interessamos pelas pessoas, se nos preocupamos com a justiça, com o que está a acontecer não podemos dizer que não nos preocupamos com política. A política está em todo o lado. Está nas nossas cozinhas, nas nossas casas, nos nossos quartos. Onde quer que haja relações de poder há política.
 

Esta história é contada da perspectiva de mulheres. Mustafa, personagem masculina, é quase apagada ao longo da narrativa. E a cozinha, tradicionalmente ligada ao universo feminino, com ingredientes a dar nome a capítulos, aparece quase como linguagem próxima do universal, a ligar tempos e geografias diferentes.
Ao escrever este livro dei-me conta de que não nos era permitido falar sobre o passado, não apenas sobre 1915 e as atrocidades, os massacres, mas em geral não podemos falar sobre o passado sem ficarmos zangados ou demasiado patriotas e emotivos. Eu procurava uma nova narrativa, uma linguagem e estilo diferentes, mais calmo, mais caloroso e mais sábio. As mulheres têm isso. Queria contar a história através dos olhos das mulheres de várias gerações, avós, mães, filhas e netas; arménias e turcas, e encontrar uma ponte entre elas. Se um dia houver paz ela virá através de mulheres, será com uma energia mais feminina. Estou tão cansada da energia masculina extremada no Médio Oriente! E a energia feminina cada vez mais confinada ao espaço privado. Ela tem de estar no espaço público. Há muito poucas mulheres no espaço público e escondem o seu lado mais feminino porque para conquistarem esse espaço têm de ser duras.


Ensaia essa possibilidade de paz com mulheres arménias e turcas, divididas por um passado traumático, com “expectativas absolutamente irreconciliáveis”, como escreve.
Sim. Os homens falharam na conversa. Talvez ela seja possível com as mulheres. Foi a minha intenção.

Participou numa conferência dizendo que o poder da narrativa e das histórias pode alterar o modo como pensamos e com isso mudar o resto. Acredita mesmo que a literatura pode salvar?
Sim. Acredito que os livros têm um impacto em nós, acredito que as histórias nos mudam. Mudaram-me. Há momentos em que acho que os livros me salvaram, me deram um sentido de continuidade, uma sensação de centro. Fui uma criança solitária e tive de aprender muitas coisas por mim mesma, através da observação. Os livros ligaram-me ao universo, tiraram-me para fora do meu mundo muito pessoal e egoísta e expandiram a minha mente.
 

Diz que a Turquia mudou muito desde este livro, que começou a aceitar e a integrar no seu discurso o que aconteceu com os arménios, mas essa ideia de abertura, de tolerância não passa para fora. 
A Turquia não está melhor em geral do que estava nesse tempo. Só no que se refere à questão arménia. Há mais pessoas a falar do assunto, mais livros a serem publicados sobre o tema, mais filmes e documentários a serem feitos. A sociedade civil fez progressos em relação ao tema, às deportações, aos massacres de 1915 e a todas as atrocidades cometidas. Mas sobre os progressos democráticos na Turquia, aí a história é diferente. Estou preocupada com o modo como os tribunais funcionam, com a liberdade de expressão, em particular a liberdade de expressão nos media. Muitos jornalistas perderam os seus trabalhos na Turquia, muitos esperam julgamento. A Turquia afundou-se nos rankings mundiais de liberdade de expressão. No passado havia uma maior multiplicidade de vozes e isso desapareceu. Todos os jornalistas, todos os poetas, todos os escritores sabem que na Turquia as palavras os podem meter em trabalhos. Escrevemos com esse conhecimento e como resultado há uma enorme auto-censura.


A sua auto-censura aumentou depois de publicar este livro que quase a levou à prisão?
Quando estou a escrever um artigo acho que sou mais cautelosa do que quando escrevo ficção.

Mas foi a ficção que lhe valeu um julgamento por traição à pátria.
Sim, ironicamente. Mas num romance estou tão preocupada com a história e as personagens que avanço. A ficção tem um magnetismo muito próprio. Acredito que as personagens imaginadas e o mundo acerca do qual estou a escrever são reais. Quando o livro termina, começo a preocupar-me. Será que vai ser um problema? Mas é demasiado tarde.

É inevitável não falar na autobiografia. Quem a lê e sabe do seu percurso de vida reconhece traços seus nas personagens e na relação com a paisagem. Zeliha, a mãe da bastarda, diz-se colada a Istambul, Amy, a rapariga que, como a Elif, não nasceu ali sente essa pertença. Mas há sempre uma sensação ambígua com a cidade ao atravessar o livro.
Acabamos sempre por escrever o que somos não é? Vivi sempre dentro e fora do país. Nasci em França, passei grande parte da minha infância em Ancara com a minha avó e a outra metade em Madrid com a minha mãe. Fui à escola na Turquia, tive uma educação turca, mas também tive uma educação internacional. Foi uma infância pouco comum. Não cresci numa família patriarcal tradicional turca, o que teve grande impacto em mim, na minha individualidade e também na minha ficção.

Sente, como Zeliha, que Istambul é o seu lugar?
Sim e não. Parte de mim é de Istambul por um sentimento de pertença que é ancestral. Mas também me sinto londrina; talvez queira ser capaz de dizer que sou uma alma mundial, uma cidadã do mundo. Parte de mim é de Istambul. A outra parte está ligada a muitas outras culturas. Hoje é possível ter-se mais do que uma casa, um lugar. E até ter mais do que uma pátria. É possível sonhar em mais do que uma língua. Recuso categorias nacionais e pertencer a um único chão. Se me perguntar o que é pátria, respondo que pátria é a terra das histórias. Essa é a minha pátria, o lugar das histórias. Procuro diferentes lugares de pertença, não gosto de políticas de identidade.

Fernando Pessoa dizia que a nossa pátria é a nossa língua.
Sim.
A Elif escreve em turco e em inglês. A Bastarda de Istambul foi o seu segundo romance em inglês e desde então é em inglês que escreve a ficção.
Esse é um assunto que me interessa muito. Fernando Pessoa disse isso e também Mahmoud Darwish [1941-2008], o poeta palestiniano, que disse que a casa é a língua. Respeito essa ideia. É muito querida a muitos poetas e escritores, mas tenho uma visão diferente. Acho que o lugar das histórias é o que conta. É essa a minha pátria. É uma pátria que se pode transportar connosco, como a tartaruga com a casa, a nossa concha. Adoro a liberdade que vem dessa capacidade de se ser entre duas línguas. Não fácil porque não cresci bilingue. Comecei a ler inglês com dez anos; era a minha terceira língua depois do turco e do espanhol. Mas gosto muito da língua inglesa. Ela nunca me abandonou nem eu a abandonei.
 

Não sendo bilingue, como consegue escrever emoções em inglês?
Lendo, pensando. Adoro o vocabulário. Comparo o vocabulário da língua turca com o do inglês. Em turco o vocabulário encolheu porque tirámos palavras antigas. Isso torna a língua pouco aberta. Precisamos de todas as palavras. A minha ligação à língua inglesa é mais intelectual, mais cerebral. Isso é parte do que sou. A ligação com a língua turca é mais emotiva, e eu também sou isso. Não quero ter de fazer uma escolha. A língua molda-nos. Cada língua tem a sua própria melodia, ritmo e isso afecta-nos, mas adoro ser remodelada. Se estou a escrever sobre saudade ou melancolia acho mais fácil em turco. Se quiser ser irónica é muito mais fácil em inglês

Está a falar de identidade e ela está presente neste livro. Asya, a filha bastarda, e Amy, a rapariga arménio-americana, cresceram em mundos distintos. Uma tenta fugir ao passado, a outra corre atrás dele. Encontram-se em Istambul.
Istambul era o sítio ideal para as juntar. É uma cidade fascinante, muito antiga, mas com uma energia muito nova. No entanto, há cem anos era mais cosmopolita do que hoje. Perdemos muita dessa energia cosmopolita porque muita gente deixou Istambul: arménios, judeus, gregos, comunidades cristãs antigas de que ainda restam algumas em Anatolia. muitas minorias foram embora e perdemos muito perdendo-os. Depois dos anos 90 do século passado, votou a ser mais multicultural. Vieram pessoas dos Balcãs, das ex-repúblicas soviéticas, do Médio Oriente, muita gente ligada aos movimentos LGBT, que apoio. Há muitos tipos de minorias, mas é uma cidade enorme, com 14 milhões de pessoas, com muitos tipos de vida onde agora se fala muito em expansão e isso só tem a ver com mais edifícios. Não há memória urbana e a ligação com o passado está a ser arrancada. Só se fala em expansão.

A literatura turca mudou desde o Nobel de Pamuk em 2006?
A literatura na Turquia continua a ser um caminho com um só sentido. O que chega ao inglês da literatura turca, por exemplo, é uma gota. É pena. Porque a Turquia é um país interessante, com todos os seus conflitos entre Oriente e Ocidente. Não acho que o Nobel de Pamuk tenha feito grande diferença para exportar literatura turca, contudo foi muito importante, estimulante para nós, escritores e poetas. Deu-nos mais esperança. Ele tem sido muito criticado na Turquia pelas suas posições, mas apoio-o e respeito-o. Somos um país muito politizado e mal polarizado. Tudo está à sombra da política. Artistas, escritores, precisamos de liberdade, de autonomia. Isso é difícil de explicar na Turquia. É preciso ler romances sem ser através das lentes da política. Há um mês houve uma série de artigos negativos em alguns órgãos de comunicação pró-governamentais sobre Pamuk e sobre mim própria, acusando-nos de pertencer a um lobby de literatura internacional. É surreal. Segundo essa imprensa há um lobby de literatura internacional e que escolhe dois ou três escritores de cada país e esses escritores são usados como instrumentos para destruir a reputação desses países. Sempre que criticamos algo somos acusados de não amar o nosso país, ou de sermos peões de poderes ocidentais. Parece que não são capazes de fazer distinções simples: precisamos de ser críticos se queremos ter futuro. Como resultado, muitos escritores fecham-se nos seus mundos, têm as suas ilhas. Eu não quero. Talvez por isso tenho uma casa em Londres e outra em Istambul. Quero estar ligada ao mundo.


A sua página de Facebook tem centenas de milhares de seguidores, o mesmo acontece no Twitter. É a escritora que mais vende na Turquia, a sua opinião conta e pedem-lhe para ser uma voz colectiva, uma representante.
Muitos leitores do Dubai, Paquistão, Líbano dizem-me que eu os represento, ou que represento as mulheres muçulmanas, que sou uma voz do Oriente ou do Médio Oriente. Fico surpreendida. Como posso representar qualquer coisa maior do que eu mesma? Só posso ser eu. Não quero representar mais nada. Acredito na individualidade e ponho ênfase no indivíduo. Sei que isso se confunde com egoísmo. A Turquia é uma sociedade muito colectiva de uma maneira má. São tribos, partidos políticos, colectividades, comunidades, mas onde está o indivíduo? Quero encorajar a individualidade. Especialmente para as mulheres, é importante serem vistas como indivíduos. São sempre definidas através de homens ou de ligações sociais. Não quero representar as mulheres turcas. Sou uma mulher que também é turca e é assim que quero ser.


Questiona estereótipos, parodia-os numa espécie de nomenclatura no livro.
Sim. Xenofobia, racismo, ultranacionalismo, fundamentalismo religioso, tudo o que divide a humanidade em compartimentos. Tudo o que nos faz dizer que existe um “nós” e um “eles” e que “nós” é melhor que “eles”.
 

Acha que isso é ter um olhar feminino ou feminista sobre o mundo?
Chamo-lhe pós-feminismo [risos]. Tenho muito respeito pelo feminismo, mas quero olhar para o futuro. Não quero ficar nesse registo. Há fenómenos que os movimentos feministas têm ignorado, como as questões LGBT, ou a discrepância entre mulheres orientais e ocidentais, as questões de classe, o pós-colonialismo. É preciso alargar o âmbito, fazer melhor. Enquanto mulheres temos de perceber que temos responsabilidade na continuidade da sociedade e cultura patriarcais. Escrevi um romance chamado Honor [2012, esteve na longlist para o Booker]; é a história de uma mãe e de um filho que mata em nome da honra. Na Turquia criam-se os filhos como sultões e são as mães que fazem isso, que ensinam os seus filhos que eles são privilegiados, que têm o direito de vigiar as suas irmãs. Não estamos perante um regime em que os homens são os opressores e as mulheres as oprimidas. É mais complicado do que isso. As mulheres também são opressoras umas das outras, podem ser o pior inimigo umas das outras. Isso passa-se nos ambientes mais ocidentalizados como nos mais tradicionais onde a matriarca, a sogra, pode oprimir a nora. É muito frequente.


E acha que há uma escrita feminina?
[Risos] Sigo o conselho de Virgina Woolf quando diz que a nossa caneta deve ser bissexual. Não acredito numa voz feminina per se. Gosto de enfatizar a energia feminina porque ela foi oprimida durante demasiado tempo, especialmente no mundo muçulmano. Mas preciso das duas. É a sociedade e a cultura que nos ensina a acentuar uma, e perdemos o equilíbrio. Mas tem de haver um equilíbrio.
 

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ENRIC-VIVES RUBIO
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O livro começou com uma imagem: uma rapariga a andar pelas ruas de Istambul à chuva, um salto de sapato partido, a coxear a caminho de uma clínica para fazer um aborto ENRIC-VIVES RUBIO