Neste powerpoint dos anos 1930 está um capítulo da ciência colonial

Em três missões a Angola há oito décadas, o naturalista Luís Carrisso procurou retratar a sua flora e mostrar as suas virtudes. Ainda hoje, há um pequeno testemunho no antigo liceu de Braga.

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“Foi um colega de biologia que a encontrou”, conta Luís Cristóvam, professor de História e responsável pelo museu da escola.

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“Foi um colega de biologia que a encontrou”, conta Luís Cristóvam, professor de História e responsável pelo museu da escola.

A misteriosa colecção foi colocada num armário envidraçado, na sala de reuniões da escola, ao lado de objectos de artesanato, como estatuetas africanas, colheres de pau e uma junta de bois em miniatura. Até há pouco tempo, ninguém sabia ao certo o seu significado.

É preciso voltar nove décadas no tempo e tocar em pelo menos três domínios – ciência, educação e ideologia – para contar a sua história. Dela fazem parte, no papel principal, as expedições a Angola empreendidas entre 1927 e 1937 por Luís Wittnich Carrisso, professor da Universidade de Coimbra e director do seu Jardim e Instituto Botânico.

As expedições de Luís Carrisso são o tema de um de quatro documentários sobre as missões botânicas realizadas por académicos de Coimbra ao longo de 200 anos – num projecto lançado pela universidade em 2012, com a produtora Terratreme, que agora está em fase de conclusão.

As viagens a Angola tinham a mesma motivação de missões anteriores da universidade, como as “viagens filosóficas” do século XVIII ou as expedições a São Tomé na alvorada do século XX: conhecer melhor para ocupar e explorar mais racionalmente as colónias, unindo a ciência à geopolítica. Mas, do ponto de vista da botânica, tudo o que já tinha sido feito antes parecia não ser suficiente. Carrisso recebeu certa vez uma carta do prestigiado Jardim Botânico de Kew, em Londres, a dizer, a respeito de Moçambique: “Provavelmente não há nenhuma parte de África cuja flora tenha sido tão pouco investigada como a África Oriental Portuguesa”.

Esta frase terá sido o rastilho que mobilizou Carrisso para a aventura de novas missões científicas às colónias. Demonstrando o mal-estar que a menção lhe causara, utilizou-a como epígrafe num plano sintético que traçou em 1924 para uma expedição botânica a Moçambique. Mas Angola, onde Carrisso tinha amigos próximos na administração da colónia, acabou por passar à frente.

Luís Carrisso partiu no dia 1 e Junho de 1927, acompanhado apenas por outro naturalista, Francisco de Ascenção Mendonça. Durante seis meses, ambos percorreram o território angolano, recolhendo espécies de herbário. “De lá vim, cheio de entusiasmo e fé, intimamente convencido de que urge lançarmo-nos ao trabalho e mostrar ao mundo civilizado que somos capazes de nos ocupar daquilo que nos pertence, e de o valorizar para o progresso da Humanidade”, escreveu posteriormente.

Regressou sobretudo determinado a fazer mais para divulgar as potencialidades dos territórios ultramarinos, vestindo com paixão a camisola da propaganda colonial. Carrisso lamentava que nas escolas só se conheciam as colónias através dos mapas e lançou-se num outro projecto: uma missão “académica” a Angola, que levaria 40 professores e alunos de estabelecimentos de ensino superiores, para que vissem e sentissem in loco o que era o império colonial. “Imaginem V.Exas, que esplendido complemento educativo não seria, para esses rapazes prestes a serem lançados na vida prática, o conhecimento directo das nossas riquezas de além-mar”, justificou, numa palestra.

No dia 10 de Agosto de 1929, uma comitiva um pouco menor do que se previa – incluindo oito professores e 13 alunos – zarpou de Lisboa no paquete João Belo. Duas semanas depois, o grupo estava em Luanda e durante um mês e meio percorreu 6000 quilómetros de estradas

“Foi uma missão muito mais política e diplomática, de conhecer as principais infra-estruturas, mostrar os locais que impressionam em termos de paisagem, mostrar a variedade do território, dos recursos. Foi uma tentativa de ‘evangelização’ das classes cultas”, afirma o biólogo António Gouveia, do Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra e coordenador do projecto No Trilho dos Naturalistas, sob o qual estão a ser realizados os documentários.

Não há registos de que a iniciativa tenha tido grandes resultados práticos. Mas Luís Carrisso não desistiu e o seu próximo passo foi voltar-se directamente aos estudantes dos liceus.

Das expedições de 1927 e 1929 tinham resultado, além de um filme, largas centenas de fotografias – ainda hoje existentes. Foi a partir destas imagens que Carrisso pensou numa colecção de diapositivos, a ser distribuída pelas escolas, acompanhada de um guia explicativo – uma espécie de powerpoint dos anos 1930.

A primeira série incluía 20 imagens, em diapositivos de grande formato, como os que se utilizavam na altura, em projectores herdeiros das “lanternas mágicas”. Foi tudo feito na própria universidade: os diapositivos, alguns deles coloridos à mão, as legendas inscritas ao lado das fotos, as caixinhas de madeira, as etiquetas.

As notas são um complemento essencial das imagens. Explicam por exemplo, a partir de duas fotos da Maiumba, em Cabinda, como funciona a floresta tropical. Descrevem o deserto de Mossâmedes – hoje deserto de Namibe – e a sua icónica planta, a Welwitschia mirabilis. Referem porquê os imbondeiros são poupados no derrube de florestas para abrir caminho à agricultura. Falam do porto do Lobito, de Luanda e de como as construções das térmitas – as “aldeias de salalé” – são utilizadas na pavimentação das estradas.

A última imagem é a de uma casa nova, vazia, em Nova Lisboa – hoje Huambo –, que se preparava para ser a capital da colónia, que nunca viria a ser na prática. “No fundo, aquela casa chamava o aluno, dizendo: há aqui uma nova oportunidade de vida, um futuro”, interpreta António Gouveia.

No dia 21 de Julho de 1932, 36 caixas foram despachadas pela Universidade de Coimbra – uma para cada um dos 33 liceus nacionais, uma para a Figueira da Foz, de onde Luís Carrisso era natural, uma para Luanda e uma ainda para o gabinete de Salazar.

O momento do envio – durante as férias – não foi o melhor. Só no regresso às aulas é que os professores a que se destinavam iriam vê-la. Tudo o que se sabe é que todos os liceus a receberam. “É difícil saber qual o impacto que tiveram estas colecções ou como foram utilizadas nas aulas”, afirma António Gouveia.

Na escola secundária Sá de Miranda, em Braga, ninguém sabe se os diapositivos chegaram a ser usados. Durante décadas, estiveram esquecidos num armário, até que começaram as obras realizadas pela Parque Escolar – a empresa estatal para a modernização das escolas públicas.

A remodelação ajudou a escola a pôr parcialmente em ordem o seu vasto património histórico. Em 1928, antes da chegada da caixa de diapositivos, o liceu de Braga estava muito bem equipado. Um álbum fotográfico da época mostra a sala de Geografia, com cinco globos antigos, inúmeros mapas e um modelo mecânico do sistema solar. Os gabinetes de Química e de Física aparecem repletos de instrumentos. No de Ciências Histórico-Naturais, havia troféus de caça nas paredes, armários recheados de aves empalhadas e gavetas com colecções de conchas.

Oitenta anos depois, estava quase tudo escondido ou esquecido. “A única coisa que se conhecia eram os animais que estavam nos armários nas salas de aula”, recorda Luís Cristóvam. Os animais foram limpos e restaurados, catalogaram-se 1200 mapas e ilustrações, construiu-se um arquivo para documentos desde 1846, criou-se um pequeno museu. “Há um espólio enorme que está a ser trabalhado. Ainda há muito por fazer”, diz Cândida Batista, coordenadora da biblioteca.

A caixa de diapositivos de Angola é apenas um elemento neste rol de testemunhos materiais do passado. “Já tinha olhado para ela, mas não tinha a noção do que é que representava”, afirma Nuno Fernandes, membro da direcção da escola. Um dos slides já lhe tinha, no entanto, chamado a atenção: o que mostra a curiosa Welwitschia mirabilis. “Quando andava na escola, ouvia falar desta planta”, recorda.

Foi o austríaco Frederich Welwitsch, que esteve Angola a serviço do governo português entre 1853 e 1861, o primeiro naturalista a dar conta daquela enorme planta, que emerge insolitamente do solo desértico com uma cabeleira de folhas largas, e que na verdade são apenas duas que se vão desfiando com o tempo. O botânico Joseph Hooker, que denominou a espécie em homenagem ao seu descobridor, dizia que era a planta mais extraordinária e mais feia que conhecia. Charles Darwin chamava-lhe “o ornitorrinco vegetal”. Luís Carrisso classificou-a como um “verdadeiro aborto do reino vegetal“.

“É uma planta órfã em termos de parentes. Os mais próximos são os pinheiros. Tem características que parecem antagónicas, que não deveriam estar reunidas na mesma planta”, explica o biólogo António Gouveia.

Por razões que não se conhecem, as colecções de diapositivos não tiveram seguimento e aquela foi a única série produzida. Raros exemplares restaram e a escola Sá de Miranda foi uma das poucas que responderam positivamente aos contactos feitos pela equipa do documentário, quando tentaram saber quais dos antigos liceus ainda possuíam os diapositivos. “É um objecto que as pessoas vêem durante anos e, de repente, quando sabem um bocadinho da história, ganha outra dimensão”, diz António Gouveia.

Em 1937, cinco anos depois da sua iniciativa pedagógica, Luís Carrisso voltou a Angola com outros naturalistas, em mais uma expedição botânica. Foram recolhidos 25.000 exemplares de plantas que, somados ao conhecimento adquirido nas missões anteriores, permitiram a publicação posterior de uma obra de referência sobre a flora africana.

Em termos científicos, a terceira missão foi um sucesso. Mas, por ironia do destino, a viagem encerrou os esforços de Carrisso da forma mais dramática possível. No dia 14 de Junho, depois de quatro meses em Angola e quando a viagem se aproximava do fim, o naturalista sentiu-se mal depois de regressar de uma colina no deserto do Namibe e morreu na tenda em que acampava.

Pouco tempo depois, um pequeno obelisco foi erguido no local onde falecera, no meio do nada. No ano passado, durante as filmagens em Angola, a equipa do projecto No Trilho dos Naturalistas foi à procura daquele marco. Quando lá chegou, um cortejo de autoridades locais estava à sua espera. Queriam saber a história daquela pedra. “Havia a memória de que havia um registo, uma pedra que ninguém sabia a que ou a quem se referia. Pediram logo que enviassem artigos e informações sobre o Carrisso”, conta António Gouveia.

Tal como a caixa de diapositivos da escola de Braga, foi mais um objecto que reencontrou a sua história.

O PÚBLICO está a acompanhar, com uma série de reportagens, o projecto No Trilho dos Naturalistas, da Universidade de Coimbra, que é financiado pelo QREN e pela agência Ciência Viva. Mais em blogues.publico.pt/missoesbotanicas/