As lágrimas de Dilma no dia em que o Brasil conhece o relatório final sobre a ditadura militar

Comissão Nacional da Verdade identifica 377 responsáveis por crimes contra a humanidade e recomenda a punição de responsáveis por mortes e torturas.

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Presidente Dilma Rousseff emocionada na apresentação do relatório da Comissão Nacional da Verdade AFP/Evaristo Sá

Dilma, que foi uma das vítimas da tortura do regime militar, não conseguiu esconder a emoção na cerimónia, e por várias vezes interrompeu o discurso, para limpar as lágrimas e respirar fundo. “Quando lançámos a Comissão Nacional da Verdade, disse que o Brasil merecia a verdade, as novas gerações mereciam a verdade, mas principalmente aqueles que perderam...” – pausa para conter o choro – “aqueles que continuam sofrendo como se morressem de novo a cada dia”, concluiu.

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Dilma, que foi uma das vítimas da tortura do regime militar, não conseguiu esconder a emoção na cerimónia, e por várias vezes interrompeu o discurso, para limpar as lágrimas e respirar fundo. “Quando lançámos a Comissão Nacional da Verdade, disse que o Brasil merecia a verdade, as novas gerações mereciam a verdade, mas principalmente aqueles que perderam...” – pausa para conter o choro – “aqueles que continuam sofrendo como se morressem de novo a cada dia”, concluiu.

A Presidente constituiu aquela comissão no final de 2011 – ao contrário dos seus vizinhos Argentina e Uruguai, o Governo do Brasil ainda não tinha feito contas com o seu tenebroso passado de repressão. De acordo com o decreto que a fundou, a missão da CNV era “apurar e esclarecer” as suspeitas de graves violações dos direitos humanos praticadas pelos órgãos públicos entre 1946 e 1988, o período que intermediou as duas últimas Constituições democráticas.

Terminado o trabalho, foi anunciado o número oficial das vítimas da ditadura brasileira: os chamados “anos de chumbo” produziram 434 mortos e desaparecidos. O último dos três capítulos do relatório final da CNV (um documento com mais de quatro mil páginas) apresenta as suas biografias e conta as suas histórias. Mas a comissão foi além das vítimas, e identificou também os seus carrascos – no total, são nomeadas 377 pessoas, entre as quais os cinco generais que assumiram a presidência do Brasil durante a ditadura militar, vários ministros dos seus governos, membros dos vários ramos das Forças Armadas e agentes das diversas forças de segurança, civis e militares.

A comissão não tem autoridade judicial, mas os seus membros pedem que pelo menos cem indivíduos, que comprovadamente estiveram envolvidos em sequestros, sessões de tortura, violações, homicídios ou na ocultação de cadáveres de opositores do regime, sejam acusados e levados a julgamento. “Para nós, o relevante é que haja responsabilidade jurídica aos que deram causa a essas graves violações de direitos humanos, para que não haja impunidade”, sublinhou o coordenador do CNV, Pedro Dallari.

É cedo para perceber se essa é uma recomendação que poderá vir a ser atendida, em nome da reconciliação nacional. Para tal, seria necessário um amplo consenso na sociedade brasileira (e também no Congresso) para a revisão ou até eventual revogação da Lei da Amnistia, que foi promulgada em 1979 e prevê o perdão de todos os crimes políticos e todos “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.

A Presidente deixou claro que não apoia qualquer alteração legislativa que abra caminho à acusação dos envolvidos nos crimes da ditadura. “Nós reconquistámos a democracia à nossa maneira, por meio de lutas duras, por meio de sacrifícios humanos irreparáveis, mas também por meio de pactos e acordos nacionais que estão traduzidos na Constituição de 1988. Assim como reverenciamos todos os que lutaram pela democracia e tombaram nessa luta de resistência, também reconhecemos os pactos políticos que nos levaram à redemocratização”, sublinhou.

O diário Folha de São Paulo estima que “as conclusões e recomendações do relatório, apesar de não terem poder executivo, podem levar a novas acções de responsabilização de militares, pressionar por mudanças na cultura das Forças Armadas e pautar o debate de políticas públicas de segurança”. E as investigações da CNV poderão ser aproveitadas pelo Ministério Público em novas diligências judiciais contra acusados de crimes na ditadura – em curso na justiça existem actualmente dez processos, com 24 arguidos.

Relatório não é sobre o regime
Na véspera da apresentação do relatório em Brasília, Dallari fez questão de sublinhar que o trabalho realizado nos últimos dois anos e meio não teve como objectivo “analisar o regime militar, mas as graves violações feitas por esse regime. O relatório tem toda a consistência necessária e nenhum viés político”, defendeu, numa antevisão das conclusões à rede Globo. Mas vários especialistas e comentadores políticos salientaram a leitura necessariamente política que o documento exige, num país onde a violência do Estado é um fenómeno ainda prevalente e que, 50 anos depois do golpe militar, assiste ao reaparecimento de slogans a favor do regresso da ditadura em manifestações contra o Governo.

O relatório final, que foi dividido em três volumes, reflecte os mais de 1100 depoimentos à comissão, a informação recolhida em 80 audiências públicas e vasta documentação, alguma dela inédita. A maior dificuldade dos investigadores foi o acesso aos arquivos militares: a feroz oposição das Forças Armadas brasileiras à mera existência da CNV manifestou-se numa resistência generalizada à partilha de informação (a certa altura, o Exército até alegou que a documentação tinha sido destruída, uma “desculpa” que depois se revelou não corresponder à realidade).

Ainda assim, o material disponível permitiu reconstituir o modus operandi do sistema repressivo, traçar a hierarquia de comando e a cadeia de organização e ainda compilar uma lista dos nomes envolvidos, com o detalhe das suas actividades. Como notou Pedro Dallari ao jornal Zero Hora, “o relatório é um compêndio de crueldade. Em alguns momentos ,até é difícil de ler, tal a crueza e a rusticidade da conduta de servidores pagos pelo erário público”.

O retrato que emerge é de tal maneira avassalador que permite riscar de vez a tese de que os abusos dos anos de chumbo foram casos isolados ou actos individuais: a informação recolhida é suficiente para demonstrar que a repressão era sistémica e estava implantada por todo o aparelho do Estado. “Ficou evidente pela investigação que houve graves violações aos direitos humanos que não decorreram da acção isolada de alguns indivíduos: foram produzidas por orientação da cúpula do regime militar de maneira sistemática e persistente”, acrescentou.

Como se lê no relatório, “na ditadura militar, a repressão e a eliminação de opositores políticos converteram-se em política de Estado, concebida e implementada a partir de decisões emanadas da Presidência da República e dos ministérios militares. Operacionalizada através de cadeias de comando que, partindo dessas instâncias dirigentes, alcançaram os órgãos responsáveis pelas instalações e pelos procedimentos directamente implicados na actividade repressiva, essa política de Estado mobilizou agentes públicos para a prática sistemática de detenções ilegais e arbitrárias e tortura, que se abateu sobre milhares de brasileiros, e para o cometimento de desaparecimentos forçados, execuções e ocultação de cadáveres”.

Inquérito desvenda mistérios
Os brasileiros não precisaram de esperar pela divulgação do relatório final para ficar a conhecer algumas das conclusões a que a CNV chegou – e muito menos para perceberem, pela primeira vez, a escala e aviolência da máquina de repressão do regime militar. Durante o inquérito, foram sendo apresentadas várias descobertas, apanhadas algumas pontas soltas e revelados alguns pormenores que escapavam aos compêndios históricos: locais insuspeitos foram assinalados como cárceres privados e centros de tortura mantidos clandestinamente pelo Exército e documentos inéditos revelaram a escravidão de milhares de indígenas.

Para os familiares das vítimas do regime, o relatório da CNV coloca um ponto final a várias décadas de dúvidas ou lamentos. Um dos “sucessos” iniciais das investigações foi a alteração do atestado de óbito do jornalista Vladimir Herzog, que morreu durante uma violenta sessão de interrogatório no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (conhecidos como DOI-Codi) de São Paulo, em 1975. O documento produzido pelo Exército, há 40 anos, apontava a “asfixia mecânica por enforcamento"; agora a família tem um atestado que prova que a morte decorreu de “lesões e maus tratos” às mãos dos torturadores.

Outro dos casos paradigmáticos da investigação foi o que dizia respeito ao “mistério” do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, em Janeiro de 1971 em São Paulo. Até hoje, o seu corpo não foi recuperado, e a própria comissão admite que o seu principal falhanço foi não ter conseguido localizar os cadáveres dos desaparecidos (apenas uma vítima de tortura, que tinha sido enterrada como indigente num cemitério de Brasília, foi “recuperada”: Epaminondas Gomes de Oliveira, espancado e torturado com choques eléctricos).

No entanto, o inquérito concluiu que Rubens Paiva foi detido por militares, morto durante uma sessão de tortura no Rio de Janeiro, e o seu cadáver ocultado. A intriga foi exposta por um antigo coronel, Paulo Malhães, que não demonstrou qualquer arrependimento pela sua participação em sequestros e torturas. O seu temor, disse à CNV, era que alguém tentasse silenciá-lo – os que quisessem fazer justiça pelas próprias mãos ou os que quisessem impedir o trabalho da justiça. Um mês depois do seu depoimento à CNV, Malhães (conhecido como doutor Pablo) foi encontrado morto, em circunstâncias suspeitas, na sua casa, embora a polícia tenha concluído ter-se tratado de um crime de oportunidade durante um assalto.

A CNV ouviu vários “arrependidos”, nomeadamente Cláudio Guerra, um ex-delegado de polícia do estado de Espírito Santo, que ofereceu detalhes sobre o funcionamento da infame casa da morte de Petrópolis, o caso Riocentro ou a morte da estilista Zuzu Angel, alegadamente orquestrada por militares.

Os investigadores também se confrontaram com a recusa de várias testemunhas em depor. Mais de uma centena de militares na reserva ou na reforma que foram convocados não aceitaram prestar declarações. Uma das “negas” que fizeram títulos nos jornais foi a de José Conegundos, que na resposta à notificação escreveu “Não colaboro com o inimigo. Não vou comparecer. Se virem”.

A razão para a oposição dos militares tem que ver com o facto de a CNV apenas investigar os abusos cometidos pelos agentes do Estado, e não incidir também sobre os crimes cometidos pelos resistentes ou opositores da ditadura, nomeadamente membros militantes ou apenas simpatizantes de partidos de extrema-esquerda ou de grupos guerrilheiros. Segundo argumentam, ao não apurar todos os crimes ocorridos no período em causa, a CNV acabou por prejudicar a verdade histórica.

“As famílias dos 124 brasileiros mortos em acções [levadas a cabo por organizações radicais de esquerda] merecem que as histórias dos seus filhos e parentes sejam contadas também. Só assim a nação estaria pacificada. A dor de uma mãe que perde o seu filho para a tortura ou para o terror é exactamente igual. Assim como os excessos eventualmente praticados pelos agentes do Estado, não se podem varrer para baixo do tapete crimes de morte, sequestros e justiçamentos praticados por aqueles que se confrontavam com as forças do Governo”, comparou o presidente do Clube Naval, vice-almirante Paulo Dobbin, à BBC Brasil.