A vírgula no sapato

Foto
Cristina Carvalhal e Crista Alfaiate PEDRO FILIPE MARQUES

Um comentário, não — vários. Os quadros são feitos de excertos, fragmentos e citações, apresentados quer pelo jogo dos actores quer pelo aparato de sons e projecções, que compõem uma grande colagem em movimento. A partir da deportação dos communards para a Nova Caledónia, os directores convidam os espectadores a explorar as contradições desses tempos e, obviamente, sim, claro está, dos nossos.

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Um comentário, não — vários. Os quadros são feitos de excertos, fragmentos e citações, apresentados quer pelo jogo dos actores quer pelo aparato de sons e projecções, que compõem uma grande colagem em movimento. A partir da deportação dos communards para a Nova Caledónia, os directores convidam os espectadores a explorar as contradições desses tempos e, obviamente, sim, claro está, dos nossos.

A récita da estreia começou um pouco a medo, com os actores apresentando algo friamente excertos de cartas e discursos dos deportados, que servem para conhecer o que sobrou dos ideais revolucionários e patriotas, bem como a estranheza e exotismo que marcarão a relação dos europeus com o resto mundo por muito bom tempo. À medida que se permitiram brincar com a quantidade enorme de informação que foi levantada mas que, aparentemente, não lhes é familiar, os actores começaram a bater as asas e voar, já que são excelentes intérpretes e criadores teatrais, capazes de arrastar a plateia para as suas fantasias, assim acreditem nelas.

 O espectáculo tem momentos altos, quer visualmente quer de interpretação, e a encenação da fumarada das trincheiras da primeira guerra, por exemplo, é excelente. Porém, são visíveis, a olho nu, a incredulidade perante aqueles projectos utópicos, revolucionários, de cidadania, que fizeram boa parte dos últimos duzentos anos e o cepticismo em relação aos motivos que levam pessoas a dar o peito às balas, em vários pontos do mundo, enquanto se faz teatro. Essa desconfiança prejudica o vigor e nitidez das actuações, independentemente do tema.

 Quando o elenco pega com maior convicção no texto, e se entrevêem, aqui e ali, razões pessoais para fazer um espectáculo como este, a cena levanta voo; mesmo se, ou talvez por isso, o ponto de vista pareça oposto ao das figuras invocadas. Nesses momentos, estes actores são como autênticos anjos da história, voando no hiper-espaço. Sem pontos de vista definidos, porém, o absurdo e paradoxal não passa de non-sense. A féerie de citações é libertadora, o que talvez faça jus às aspirações dos revolucionários, ou pelo menos de elogio fúnebre, e foge de qualquer tentação autoritária, denunciando as máscaras do poder. Desconstrói-se à esquerda, à direita e ao centro, em favor do teatro. Não sabemos o que ficará depois — mas esse é o trabalho dos espectadores, não dos artistas.

Nova, Caledónia, a parceria de Miguel Loureiro e André Guedes, com a participação de Cristina Carvalhal, Crista Alfaiate e João de Brito, entre outros colaboradores, é um bom espectáculo, que ficará ainda melhor quando assentar ideais.