O Amor de Perdição tem código postal

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Há dois anos que a cidade tem um largo com nome de livro. No Porto, o Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, tem código postal: 4050-008. A proposta de renomear assim o terreiro em frente à antiga Cadeia da Relação partiu da comissão de toponímia e trazia agregada uma outra novidade, uma estátua de Francisco Simões, que o escultor de Almada queria doar ao Porto, no ano em que se celebravam os 150 anos do lançamento da primeira edição do livro.

É bonita a ideia de dar títulos de livros a pedaços da cidade. Podíamos ter a Avenida do Ano da Morte de Ricardo Reis, a Alameda d’Os Maias ou a Praça d’Os Cus de Judas espalhados pelo país fora. Porque não? Menos bonito é um certo ar de abandono que parece acompanhar o Largo do Amor de Perdição.

Sabem como há espaços na cidade que nos sabem sempre a pouco? Que parecem gritar que alguma coisa falta ali? Que houve algo que não correu bem? É assim este largo com nome de livro. Aquele espaço amplo, de pedra cinzenta, tem a vantagem tremenda de tornar o edifício histórico onde está instalado o Centro Português de Fotografia (CPF) numa estrela sem concorrência, mas toda aquela pedra despida é demasiado tentadora para se manter vazia.

O uso que mais lhe dão é transformá-lo em parque de estacionamento, ilegal e improvisado. E não é só nas noites de maior movimento dos bares ali ao pé. É também durante o dia. Ainda há pouco, quando lá passei, cinco carrinhas alinhavam-se sobre o lajedo, voltadas para a antiga Cadeia da Relação. Do outro lado da rua, no Jardim da Cordoaria, as folhas caídas das árvores pareciam fazer corridas, empurradas pelo vento, mas no Largo do Amor de Perdição só há pedra manchada, escurecida pela chuva e carros estacionados.

Na ponta do largo, a estátua Amor de Perdição mostra um Camilo bem coberto por um capote, agarrado a uma mulher nua. A opção não terá agradado a todos, mas o escritor e a sua amante (musa?) lá continuam, sossegados, no largo. É suposto aquela mulher simbolizar as mulheres que Camilo amou e também a sua obra, mas ali, tão perto da Cadeia da Relação, é impossível não associar aquela figura à de Ana Plácido. É que os dois amantes estiveram encarcerados precisamente naquele edifício, enquanto aguardavam o julgamento que acabaria por os absolver. Ela, casada, foi acusada de adultério, ele de “copular com mulher casada”. Há uma certa ironia no facto de o largo em frente ao cárcere dos dois amantes ter agora o nome da obra mais famosa do escritor. E que uma estátua de Camilo, copiosamente agarrado ao traseiro da figura feminina que o acompanha, esteja ali naquela esquina, de costas voltadas para a antiga prisão. Assim como quem diz, toma lá!

A estátua não chega, contudo, para tornar o largo menos amplo e vazio. Não é suficiente para o povoar. Os extremos do largo são, aliás, os únicos locais onde ainda se vêem algumas pessoas a viver o espaço, sentados nos blocos de pedra que o bordejam. Aí e nos degraus do próprio CPF, onde quatro jovens conversam, de mochilas às costas. Aos outros, resta-lhes atravessar o Amor de Perdição e ir descobrindo o carácter central deste espaço. A Torre dos Clérigos nunca se esconde, está mesmo ali. De todos os lados da antiga Cadeia da Relação descem, até ao Douro, as estreitas ruas medievais do centro histórico da cidade. De alguns pontos vê-se a torre dos Paços do Concelho e, de outros, um centro comercial na outra margem, em Gaia. O Palácio da Justiça está do outro lado da rua, bem como a Reitoria da Universidade do Porto e o Jardim da Cordoaria. O amplo e vazio Largo do Amor de Perdição podia ser um ponto de encontro. Vamos encontrar-nos ali e explorar a cidade.     

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