A guerra civil na Síria e a minoria alauíta de Bashar al-Assad

Pensar que o derrube do regime inaugurado por Hafez al-Assad e continuado por Bashar al-Assad, inquestionavelmente autoritário e autocrático, trará a paz e a democracia na Síria, é simplista e ilusório.

Se todas as guerras são sempre destruidoras e violentas, as guerras civis tendem a fazer sobressair algumas das piores facetas do ser humano. Originam sangrentas e vingativas lutas fratricidas. A violência  tende a aumentar, ainda mais, quando há uma propaganda de “sacralização” daquilo por que se luta, associada a uma desumanização do(s) opositor(es). Pior ainda, a escalada de violência pode ser levada ao extremo quando, por razões objectivas e/ou subjectivas, o conflito é percebido como uma ameaça à própria existência colectiva de um grupo. Tudo isto parece estar a ocorrer na Síria. Os alauítas, uma minoria religiosa que, desde os anos 1960/1970, ocupa o poder, primeiro com Hafez al-Assad, agora com Bashar al-Assad, estão no centro deste conflito. Este é percebido, ou foi deliberadamente configurado, como sendo uma ameaça existencial à sua própria sobrevivência. Na memória colectiva alauíta estão, provavelmente bem vivos, os sentimentos de humilhação e discriminação a que ao longo da sua história foram submetidos. Recuemos um século atrás.

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Se todas as guerras são sempre destruidoras e violentas, as guerras civis tendem a fazer sobressair algumas das piores facetas do ser humano. Originam sangrentas e vingativas lutas fratricidas. A violência  tende a aumentar, ainda mais, quando há uma propaganda de “sacralização” daquilo por que se luta, associada a uma desumanização do(s) opositor(es). Pior ainda, a escalada de violência pode ser levada ao extremo quando, por razões objectivas e/ou subjectivas, o conflito é percebido como uma ameaça à própria existência colectiva de um grupo. Tudo isto parece estar a ocorrer na Síria. Os alauítas, uma minoria religiosa que, desde os anos 1960/1970, ocupa o poder, primeiro com Hafez al-Assad, agora com Bashar al-Assad, estão no centro deste conflito. Este é percebido, ou foi deliberadamente configurado, como sendo uma ameaça existencial à sua própria sobrevivência. Na memória colectiva alauíta estão, provavelmente bem vivos, os sentimentos de humilhação e discriminação a que ao longo da sua história foram submetidos. Recuemos um século atrás.

2. Após o colapso do Império Otomano no final da I Guerra Mundial, a maioria das suas províncias árabes ficaram sob administração britânica (atuais territórios de Israel/Palestina, Jordânia e Iraque) e francesa (Síria e Líbano), no âmbito de um mandato atribuído pela Sociedade das Nações (SdN). Encontram-se aqui as raízes do moderno Médio Oriente, das atuais fronteiras políticas na região, bem como  dos conflitos mais intrincados. A Síria insere-se neste contexto. Nos anos 1920 e 1930, ao afirmarem o seu poder colonial, os franceses enfrentaram frequentemente resistência da população local. Essa resistência vinha sobretudo de notáveis e clãs árabes sunitas, maioritários na região, a tradicional classe governante dessas ex-províncias do Império Otomano. Todavia, o Líbano e a Síria, esta última nas partes adjacentes ao território libanês, eram, no período otomano, sítios tradicionais de refúgio de substanciais minorias não islâmicas — sobretudo de cristãos ortodoxos, arménios e maronitas — e de grupos heterodoxos (especialmente drusos e alauítas). Em comum tinham o facto de serem vistos como seitas heréticas pelo Islão sunita dominante. O caso dos alauítas merece especial atenção. O nome tem origem no termo francês alaouites, utilizado durante o mandato da SdN. Sob o Império Otomano, eram conhecidos depreciativamente como “nusairitas”, a partir do nome do seu fundador, Muhammad Ibn Nusayr. A sua crença é sincrética e tradicionalmente fechada, por razões de perseguição religiosa. Os seus detractores denunciam-na como tendo práticas secretas heréticas. Sintomático da sua especificidade é o facto de tradicionalmente não usarem mesquitas. O credo contém elementos da tradição islâmica, numa versão mais ou menos próxima do xiismo. A veneração de Ali é o mais óbvio, embora com uma diferença importante: a deificação de Ali. Todavia, integra também aspectos provavelmente absorvidos de outras religiões pré-islâmicas, incluindo do Cristianismo. Aquilo que visto sob o prisma secular e científico ocidental seria tendencialmente objecto de curiosidade, de estudo, ou até de esforços de preservação, pelo seu “exotismo” e diferença cultural, constitui, em sociedades tradicionais do Médio Oriente, uma  linha de fractura identitária e religiosa e um problema político. Em épocas de instabilidade, esta diferença cultural-religiosa-política face ao Islão sunita dominante, tende  a tornar-se numa linha de conflito aberto.

3. A mentalidade secular ocidental é um obstáculo à compreensão do funcionamento social e político do Médio Oriente e dos seus intrincados conflitos, incluindo o caso aqui analisado da Síria. A esse obstáculo acresce o superficial conhecimento da região, do seu passado histórico, do seu tecido social e valores. Leva a que os acontecimentos sejam frequentemente lidos e interpretados através de analogias e extrapolações com o passado ocidental. Os exemplos abundam. A qualificação das revoltas no mundo árabe em 2011 como uma “Primavera Árabe” foi uma extrapolação, simultaneamente ingénua é abusiva, do termo usado para qualificar as revoluções nacionais de 1848 na Europa. Outro exemplo é a configuração do derrube de ditadores como uma espécie de réplicas da história europeia e ocidental. O imaginário implícito é que a deposição de regimes autoritários e ditatoriais dará lugar, mais tarde ou mais cedo, a formas de democracia liberal — ainda que com tonalidades islâmicas —, à semelhança do que ocorreu na Europa da segunda metade do século XX. Há, todavia, um problema de fundo com este imaginário. A democracia só pode emergir e ganhar raízes a par de uma secularização do político aceite pela  população. Implica, ainda, uma cultura política pluralista e de negociação, onde as eleições não sejam vistas como mera forma de legitimar o autoritarismo de uma maioria. Por outras palavras, pressupõe que as ideias políticas, de esquerda ou direita, se sobreponham a lógicas étnicas e/ou religiosas. Pressupõe uma integração das minorias na vida política. Pressupõe ainda que a legitimidade última do poder é a vontade popular/nacional e não religiosa/divina. Fora disso, o melhor que podemos ter é uma espécie de “democracia” étnico-religiosa (com corpos eleitorais separados para diferentes grupos religiosos, como, por exemplo, no Líbano); ou uma “democracia” que se restringe a um mero jogo eleitoral, mais ou menos condicionado, como no Egipto após o afastamento de Hosni Mubarak em 2011. Nenhum dos casos cabe em qualquer definição rigorosa de democracia.

4. A sociedade síria enferma dos problemas anteriormente apontados. Os alauítas, o grupo religioso de origem do regime autoritário de Bashar al-Assad, serão 12% ou 13% da população. São a principal proveniência dos elementos do exército e do poder governamental. Historicamente situam-se entre o litoral e as montanhas, na região a norte do Líbano e a sul da Turquia. Hoje vivem também nas grandes cidades sírias. Sob a administração colonial francesa, nos anos 1920 e 1930, tiveram o seu próprio território estadual (o Estado de Latakia), tal como outras minorias, drusos e cristãos maronitas (a separação do Líbano da Síria tem origem nesse período). Na época, a administração colonial francesa procurava alicerçar o seu poder através de alianças com as minorias, numa sociedade dominada pelos notáveis e burguesia sunitas. Não foi por acaso que, em meados do século XX e no pós-independência (ocorrida em 1946), as ideologias políticas seculares, de tipo ocidental, ganharam sobretudo aceitação entre as minorias. Estas permitiam uma ascensão social e política, combatendo a cidadania de segunda classe a que eram relegados os não muçulmanos sunitas. Michel Aflaq, originário de uma família cristã ortodoxa de Damasco, foi o principal fundador do Partido Baath. Quando chegou ao poder em 1970/1971, Hafez al-Assad, um alauíta de Qardaha, na região de Latakia, também era membro do Partido Baath. Originalmente o partido assentava num ideário de tipo secular e inspirado em valores socialistas. Promovia um nacionalismo pan-árabe. Acabou por ser distorcido pelo autoritarismo de tipo autocrático do regime de Hafez al-Assad. Sintomático é que as grandes revoltas contra Hafez al-Assad, no poder entre 1970/1971 e 2000, não ocorreram em nome da liberdade, ou de qualquer ideologia democrática e secular, mas em nome do Islão (sunita), sendo lideradas pelos islamistas da Irmandade Muçulmana. Os acontecimentos de 1982, em Hama, pela sua grande violência e repressão, fazem lembrar os episódios mais trágicos da actual guerra civil.

5. Pensar que o derrube do regime inaugurado por Hafez al-Assad e continuado por Bashar al-Assad, inquestionavelmente autoritário e autocrático, trará a paz e a democracia na Síria, é simplista e ilusório. As tensões religioso-étnico-políticas  agravadas pela guerra, tornam muito improvável esse resultado. Entre os grupos que se opõem ao regime de Bashar Al-Assad, os que lutam por uma alternativa democrática e liberal são poucos, mal organizados e sem capacidade militar relevante. A agudização do conflito levou a que os alauítas, simpatizantes ou não do regime, passassem, cada vez mais, a recear pela sua própria existência e a cerrar fileiras, num reflexo autodefensivo. Os múltiplos grupos islamistas-jihadistas que combatem na guerra civil da Síria, tipicamente oriundos do Islão sunita — dos quais o Estado Islâmico do Iraque e do Levante é apenas  o mais conhecido pela sua barbárie —, acentuaram esse medo existencial. Se vencer a guerra, a alternativa do radicalismo islamista que domina a aposição armada a Bashar al-Assad, significará passar de uma opressão de tipo secular para uma opressão teocrática. A tragédia da Síria continuará de uma outra forma e não apenas para os alauítas, que passarão a ser objecto de vingança. Para a maioria dos muçulmanos sunitas, excepto para islamistas convictos ou oportunistas, não é discernível um futuro melhor. Quanto às minorias religiosas (cristãos e drusos), ou étnicas (curdos), poderão ter de enfrentar também a sua própria ameaça existencial.

Investigador