Para a Memorial, a repressão do Kremlin não é um filme novo

Mostraram ao mundo os crimes do regime soviético e continuaram a expor os abusos do poder. Agora, a Memorial regressa ao passado, com a extinção no horizonte.

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Cerimónia organizada pela Memorial em memória das vítimas da repressão soviética na cidade de Krasnoiarsk, na Sibéria Ilya Naymushin/Reuters

Quando realizou a jornada daquela pedra, a Memorial vivia os seus primeiros tempos e seguia a missão de expor os crimes perpetrados pelo regime prestes a cair, aproveitando a abertura promovida por Mikhail Gorbachev, a perestroika. Mais de duas décadas depois, o mesmo grupo é ele próprio alvo de perseguição política, correndo o sério risco de vir a fechar portas.

“Assim que Gorbachev deu a luz verde, em 1987, para que as pessoas pudessem investigar os crimes do comunismo e do [antigo líder soviético, Josef] Estaline, a Memorial conseguiu trabalhar numa escala muito maior”, explica a professora da Universidade de Amesterdão, Nanci Adler, em conversa telefónica com o PÚBLICO. A abertura dos arquivos da polícia política permitiu revelar o terror vivido durante décadas de opressão e o mundo, incluindo a própria Rússia, pôde finalmente saber o que se passava nos longínquos gulags. E a Memorial estava na linha da frente dos acontecimentos.

Nas suas fileiras contaram-se importantes dissidentes políticos como o físico nuclear e Prémio Nobel da Paz, Andrei Sakharov, entre outros. Os anos foram passando, mas a missão de um grupo que serviu originalmente como “mecanismo de justiça transicional” foi assumindo novos contornos.

“A Memorial desenvolveu-se e cresceu significativamente e, focando-se nos crimes do passado, também se concentrou nos crimes do presente por se ter tornado num vigilante tão importante”, diz-nos Adler, autora de vários livros sobre a organização. A sua acção centrou-se durante bastante tempo no conflito na Tchetchénia, para onde enviava equipas de investigação para apurar abusos e desaparecimentos de civis. Em 2009, o preço a pagar pela busca da verdade foi demasiado alto para Natalia Estemirova, raptada e encontrada morta com um tiro na cabeça e outro no peito, enquanto investigava as acções do exército russo. Após uma investigação altamente criticada, o governo russo acabou por concluir que a activista foi morta por guerrilheiros rebeldes.

Nesse mesmo ano, a organização recebe o Prémio Sakharov de Liberdade de Pensamento, atribuído pelo Parlamento Europeu. Apesar de nunca ter ganho Nobel da Paz, a Memorial é uma “forte candidata”, segundo Nanci Adler.

Mas agora a luta é apenas pela sobrevivência, num momento em que a organização está a “travar a sua luta mais séria” desde a fundação, nota Adler, que é também directora de pesquisa do Instituto de Estudos sobre Genocídio e Holocausto de Amesterdão.

O Ministério da Justiça russo pediu a “liquidação” da Memorial ao Supremo Tribunal, por causa das “violações graves e reiteradas” da Constituição e das leis do país, de acordo com o serviço de imprensa do ministério. Na base da argumentação do Kremlin estão problemas organizacionais apontados ao grupo, nomeadamente a sua “estrutura em guarda-chuva”, que agrupa cerca de 50 pequenas delegações de defesa de direitos humanos. “As autoridades querem que tudo funcione na Rússia de cima para baixo. E sabemos bem porquê: uma organização vertical é muito mais fácil de controlar”, observa a directora-executiva da Memorial, Elena Jemkova, citada pela AFP.

Para esta quinta-feira estava agendada a decisão do Supremo Tribunal, que optou por adiar para 17 de Dezembro, dando cerca de um mês para que a Memorial altere a sua organização estatutária.

O “problema organizacional” apontado pelas autoridades governamentais é apenas um pretexto para continuar a perseguição, segundo a leitura de Nanci Adler. “A intimidação à Memorial é parte da acção do Estado contra quem discorda e contra a mensagem que têm, que é tanto sobre o passado como sobre o presente. Aquilo que a Memorial vem dizendo não é propriamente aquilo que o Estado gostaria de mostrar de si próprio”, nota.

Em Julho, a organização foi registada, em conjunto com outras quatro ONG, como “agente do estrangeiro” – uma expressão com ecos da terminologia soviética. Esta classificação abrange os organismos que obtêm financiamento fora da Rússia e que desenvolvam uma “actividade política”.

A verdade é que o apoio internacional sempre foi basilar na actividade da Memorial, desde a sua fundação, muito apoiada por instituições como a norte-americana Ford Foundation. Nanci Adler reconhece mesmo que “a Memorial é mais popular internacionalmente do que a nível nacional”, que encontrou “muita oposição por parte da população”, que continua a olhar com alguma admiração os tempos do regime soviético. “No Dia da Vitória é muito fácil encontrar símbolos com Estaline. Parte disso é porque nunca houve uma condenação oficial, nem um julgamento, nem uma comissão de verdade”, explica a investigadora.

Actualmente é também fora de portas que vêm as maiores manifestações de indignação face à possibilidade de extinção da Memorial. O presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, criticou a decisão “inaceitável e provavelmente destituída de uma clara justificação legal”.

Se a vontade do Kremlin for adiante, “muitas discussões importantes ficariam suspensas”, adverte Nanci Adler. No entanto, como organização de sobreviventes, a docente acredita que a Memorial pode sobreviver a mais este desafio. “Uma das coisas que aprendemos numa sociedade pós-repressiva é que o passado tem que ser algo que se possa olhar e confrontar. E não esquecer.”
 

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Quando realizou a jornada daquela pedra, a Memorial vivia os seus primeiros tempos e seguia a missão de expor os crimes perpetrados pelo regime prestes a cair, aproveitando a abertura promovida por Mikhail Gorbachev, a perestroika. Mais de duas décadas depois, o mesmo grupo é ele próprio alvo de perseguição política, correndo o sério risco de vir a fechar portas.

“Assim que Gorbachev deu a luz verde, em 1987, para que as pessoas pudessem investigar os crimes do comunismo e do [antigo líder soviético, Josef] Estaline, a Memorial conseguiu trabalhar numa escala muito maior”, explica a professora da Universidade de Amesterdão, Nanci Adler, em conversa telefónica com o PÚBLICO. A abertura dos arquivos da polícia política permitiu revelar o terror vivido durante décadas de opressão e o mundo, incluindo a própria Rússia, pôde finalmente saber o que se passava nos longínquos gulags. E a Memorial estava na linha da frente dos acontecimentos.

Nas suas fileiras contaram-se importantes dissidentes políticos como o físico nuclear e Prémio Nobel da Paz, Andrei Sakharov, entre outros. Os anos foram passando, mas a missão de um grupo que serviu originalmente como “mecanismo de justiça transicional” foi assumindo novos contornos.

“A Memorial desenvolveu-se e cresceu significativamente e, focando-se nos crimes do passado, também se concentrou nos crimes do presente por se ter tornado num vigilante tão importante”, diz-nos Adler, autora de vários livros sobre a organização. A sua acção centrou-se durante bastante tempo no conflito na Tchetchénia, para onde enviava equipas de investigação para apurar abusos e desaparecimentos de civis. Em 2009, o preço a pagar pela busca da verdade foi demasiado alto para Natalia Estemirova, raptada e encontrada morta com um tiro na cabeça e outro no peito, enquanto investigava as acções do exército russo. Após uma investigação altamente criticada, o governo russo acabou por concluir que a activista foi morta por guerrilheiros rebeldes.

Nesse mesmo ano, a organização recebe o Prémio Sakharov de Liberdade de Pensamento, atribuído pelo Parlamento Europeu. Apesar de nunca ter ganho Nobel da Paz, a Memorial é uma “forte candidata”, segundo Nanci Adler.

Mas agora a luta é apenas pela sobrevivência, num momento em que a organização está a “travar a sua luta mais séria” desde a fundação, nota Adler, que é também directora de pesquisa do Instituto de Estudos sobre Genocídio e Holocausto de Amesterdão.

O Ministério da Justiça russo pediu a “liquidação” da Memorial ao Supremo Tribunal, por causa das “violações graves e reiteradas” da Constituição e das leis do país, de acordo com o serviço de imprensa do ministério. Na base da argumentação do Kremlin estão problemas organizacionais apontados ao grupo, nomeadamente a sua “estrutura em guarda-chuva”, que agrupa cerca de 50 pequenas delegações de defesa de direitos humanos. “As autoridades querem que tudo funcione na Rússia de cima para baixo. E sabemos bem porquê: uma organização vertical é muito mais fácil de controlar”, observa a directora-executiva da Memorial, Elena Jemkova, citada pela AFP.

Para esta quinta-feira estava agendada a decisão do Supremo Tribunal, que optou por adiar para 17 de Dezembro, dando cerca de um mês para que a Memorial altere a sua organização estatutária.

O “problema organizacional” apontado pelas autoridades governamentais é apenas um pretexto para continuar a perseguição, segundo a leitura de Nanci Adler. “A intimidação à Memorial é parte da acção do Estado contra quem discorda e contra a mensagem que têm, que é tanto sobre o passado como sobre o presente. Aquilo que a Memorial vem dizendo não é propriamente aquilo que o Estado gostaria de mostrar de si próprio”, nota.

Em Julho, a organização foi registada, em conjunto com outras quatro ONG, como “agente do estrangeiro” – uma expressão com ecos da terminologia soviética. Esta classificação abrange os organismos que obtêm financiamento fora da Rússia e que desenvolvam uma “actividade política”.

A verdade é que o apoio internacional sempre foi basilar na actividade da Memorial, desde a sua fundação, muito apoiada por instituições como a norte-americana Ford Foundation. Nanci Adler reconhece mesmo que “a Memorial é mais popular internacionalmente do que a nível nacional”, que encontrou “muita oposição por parte da população”, que continua a olhar com alguma admiração os tempos do regime soviético. “No Dia da Vitória é muito fácil encontrar símbolos com Estaline. Parte disso é porque nunca houve uma condenação oficial, nem um julgamento, nem uma comissão de verdade”, explica a investigadora.

Actualmente é também fora de portas que vêm as maiores manifestações de indignação face à possibilidade de extinção da Memorial. O presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, criticou a decisão “inaceitável e provavelmente destituída de uma clara justificação legal”.

Se a vontade do Kremlin for adiante, “muitas discussões importantes ficariam suspensas”, adverte Nanci Adler. No entanto, como organização de sobreviventes, a docente acredita que a Memorial pode sobreviver a mais este desafio. “Uma das coisas que aprendemos numa sociedade pós-repressiva é que o passado tem que ser algo que se possa olhar e confrontar. E não esquecer.”