O partido-estado

O partido-estado é um partido transversal, é um transpartido que acolhe cerca de 6 milhões de portugueses que, directa ou indirectamente, dependem das suas remunerações, benefícios, prestações e contratos.

O partido-estado pode ser definido como uma constelação de interesses e poderes que vivem e sobrevivem acoplados aos diversos aparelhos do poder do Estado e que, para o efeito, construíram uma rede de interdependências de tal ordem que estão, para o melhor e o pior, prisioneiros desse mesmo Estado dos interesses.

Num outro registo, podemos definir o partido-estado, em sentido amplo, como o conjunto de agentes prestadores e beneficiários, directos e indirectos, permanentes e circunstanciais, que vivem dentro e à volta do Estado e que, por via do orçamento e através dele, estruturam uma rede arterial e capilar de tal modo densa e fina que vivem permanentemente o “dilema do prisioneiro”. Numa terceira aceção, podemos definir o partido-estado como um campo de forças que providencia expectativas positivas, de estabilidade, previsibilidade, permanência e segurança, que suscita e estimula a nossa adesão, de tal modo que legitimam e justificam a existência de um meta-partido para lá das divisões político-ideológicas dos partidos do sistema em vigor. O partido-estado é, pois, um meta-partido, uma espécie de guardião do regime e de todos os direitos adquiridos, sempre ausente mas sempre omnipresente, o partido-constituição por natureza.

O partido-estado é o partido dos interesses permanentes, mesmo que seja um partido inorgânico, pastoso, conglomerado e difuso. No plano formal é um partido nuvem, mas no plano material é um partido clientelar, onde reinam e se experimentam, recorrentemente, o calculismo e a tática político-partidária. O partido-estado é, também, um campo de treino por excelência, por onde circulam e se formam as chamadas elites partidárias e se faz a chamada reciclagem dos dirigentes partidários. Este campo de treino é imenso, pois o partido-estado tem ramificações fora do aparelho de Estado, uma vez que se estende ao chamado sector empresarial do Estado, num vaivém permanente entre o que fica dentro e o que fica fora do chamado perímetro orçamental. O partido-estado está lá para ser instrumentalizado pelo rotativismo partidário dominante, por isso, no sistema de trocas em que está envolvido, usa de toda a cumplicidade, duplicidade e ambiguidade que o regime lhe proporciona. Não gosta de pactos e acordos de regime ou de outros tipos de compromisso de médio e longo prazo que lhe ameacem a condição e o estatuto, com o receio de que esses actos venham a clarificar a situação nebulosa e difusa em que se move. Do mesmo modo, o partido-estado não gosta, também, de intrusos exteriores que perturbem a sua extensa zona de conforto.

No partido-estado privatiza-se o benefício e socializa-se o prejuízo, porque está baseado no princípio geral do cinismo, aquele em que o contribuinte anónimo é o pagador de último recurso, por via do Estado e do seu orçamento. O partido-estado é, essencialmente, um partido-bastidor-corredor, por isso não lhe interessa muito a accountability do sistema político, apenas tolera uma mitigada modernização da administração pública. O crescimento do partido-estado é uma constante dos últimos quarenta anos. O seu crescimento tem muito a ver com os movimentos de contração e dilatação do perímetro orçamental, isto é, com as operações de desorçamentação e reorçamentação que foram sendo realizadas, de acordo com as necessidades, umas vezes, e com as conveniências, outras vezes. Para providenciar as trocas que são necessárias, o partido-estado, através dos seus “círculos interiores” e dos seus “agentes principais”, vive alojado na rede capilar dos partidos do sistema e parasita essa rede que está muito próxima dos corredores do poder instituído.

O partido-estado e a constelação de poderes que lhe está subjacente fazem ruir qualquer tentativa de “equação orçamental” que procure responder aos problemas estruturais da sociedade portuguesa. O partido-estado é um partido transversal, é um transpartido que acolhe cerca de 6 milhões de portugueses que, directa ou indirectamente, dependem das suas remunerações, benefícios, prestações e contratos. Este partido-estado atravessa transversalmente o espectro político-partidário português, é o único que não vai a eleições e que não é escrutinado pelo povo que diz servir. O partido-estado é a vaca sagrada do regime, o seu derradeiro tabu. Representa quase 50% da riqueza anual produzida num país que “se recusa a crescer”.

Em matéria orçamental, o lema do partido-estado, “a dívida não é para pagar, é para trocar e para rolar”, está definitivamente posto em causa pelo programa da troika. Em 2014, sem moeda própria e sem autonomia orçamental, com taxas de inflação próximas de 1% e com limites orçamentais para cumprir impreterivelmente no quadro do Pacto de Estabilidade e Crescimento e do Tratado Orçamental, estamos numa situação económica e financeira sem escapatória, ou seja, o partido-estado está pela primeira vez obrigado a fazer uma pesada cura de emagrecimento que corresponderá a uma redução de 10 pontos percentuais no peso da despesa pública total no PIB, mais em linha com a receita fiscal que é possível arrecadar numa conjuntura de muito fraco crescimento do produto. Este corte estrutural da despesa pública diz respeito a cerca de 20 mil milhões de euros e corresponde a uma situação orçamental com excedente primário que se afigura indispensável para começar a amortizar dívida pública. Com a troika já foi possível cortar cerca de metade deste saldo de 20 mil milhões de euros. Na proposta de orçamento para 2014, a despesa pública total representa 46,8% do PIB e a receita fiscal 42,8%, para um défice de 4% do PIB. Do que se disse, decorre imediatamente uma contradição insanável: sem crescimento económico nominal acima dos 5 a 6% nos próximos anos, o partido-estado e a equação orçamental do partido-estado estarão definitivamente postos em causa pela próxima fase da UEM, a chamada união orçamental e, de um modo geral, pela designada “política de condicionalidade” correspondentes à segunda fase da união económica e monetária (UEM II) e ao lançamento das primeiras pedras da união política europeia (UPE). Estas condições europeias, que são necessárias e urgentes e que geram condições macroeconómicas favoráveis, fazem apelo e justificam, no plano interno, uma frente política com o mesmo nível de exigência e de ambição, a pôr em prática já nas eleições de 2015. Assim, torna-se necessário o seguinte imperativo categórico: um compromisso histórico interpartidário para duas legislaturas (2015-2023), uma revisão constitucional no quadro da UEM II e da UPE, um programa de reforma do Estado para duas legislaturas e, por último, mas em simultâneo, um programa de desenvolvimento económico e social para duas legislaturas.

Professor catedrático na Universidade do Algarve

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