Que imagens contam o que foi a Grande Guerra?

Nunca nenhuma guerra fora tão fotografada. O enorme desenvolvimento tecnológico da fotografia, ao longo da segunda metade do século XIX e na primeira década do século XX, permitiu que as imagens da Guerra 1914-18 se multiplicassem com uma velocidade nunca vista.

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Nunca nenhuma guerra fora tão fotografada como a I Guerra Mundial. O enorme desenvolvimento tecnológico da fotografia, ao longo da segunda metade do século XIX e na primeira década do século XX, permitiu que as imagens da Guerra 1914-18 se multiplicassem com uma velocidade nunca vista e que o seu impacto tivesse lugar ainda durante o decurso do conflito. O uso da máquina fotográfica e a impressão de imagens democratizara-se. Passara a ser fácil e barato tirar fotografias. O postal fotográfico, inventado na transição do século, tornara-se uma forma de comunicação comum. E os exércitos e governos também já sabiam como as imagens podiam ser uma arma de guerra.

Os progresso da tecnologia

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Preparativos para o embarque do Corpo Expedicionário na Rua Augusta JoshuaBenoliel/AM

Em 1854, o fotógrafo britânico Roger Fenton esteve na Guerra da Crimeia e, um ano depois, os visitantes da Exposição Universal de Paris de 1855 puderam já ver as suas imagens. Não uma guerra mostrada através da pintura ou da gravura, mas um conflito representado através de uma nova técnica de reprodução que fora patenteada em 1839 – a fotografia. Em meados do século XIX a discussão ainda ia no adro – a fotografia pertencia à “indústria” ou às “belas-artes”? Era um meio mecânico ou um meio artístico? Na Exposição Universal de Paris de 1855, a primeira de várias que tiveram lugar nas décadas seguintes, a fotografia foi exposta no edifício dedicado à indústria. No livro Esquisses Photographiques a propos de l’Exposition Universelle et de la Guerre d’Orient, Ernest Lacan tratou a exposição, a fotografia e a guerra da Crimeia numa só abordagem. “Graças ao Monsieur Fenton, esta moderna Ilíada já tem o seu pintor, tal como um dia terá os seus poetas.”

As guerras faziam parte da história e tanto a literatura como a pintura contribuíam para preservar a sua memória. Em meados do século XIX, a fotografia surgia como um novo instrumento deste processo, mesmo que a identidade profissional daquele que realizava as fotografias fosse ainda ambígua. O mesmo crítico chamava “pintor” a Roger Fenton, mas as suas obras estavam expostas no edifício dedicado à indústria.

Ao longo da segunda metade do século XIX, as guerras, conflitos armados, acções políticas e todos aqueles acontecimentos que eram considerados “históricos”, foram fotografados. Não apenas na Europa onde as técnicas de reprodução fotográfica tinham sido inventadas – por Daguerre, em França, ou por Nièpce, em Inglaterra – mas num mundo global que logo se apropriou das múltiplas possibilidades da fotografia.

O mesmo veio a suceder com a I Guerra Mundial. Ou seja, as transferências de conhecimento que possibilitaram a divulgação globalizada da fotografia, em 1914, transformaram um conflito europeu na primeira guerra “mundial”. O desenvolvimento dos meios de reprodução, a mobilidade e a comunicação associados às múltiplas conexões territoriais, proporcionadas pelos impérios coloniais, criaram os novos espaços e tempos que acabaram por multiplicar os cenários de guerra e os envolvimentos de tantas nações e respectivas colónias.

Quando em 1914 despoletou o conflito, o fundador da Kodak, George Eastmann, já lançara no mercado a “Vest Pocket”, ou “soldier’s camera” Uma máquina que, tal como o nome sugere, se podia guardar num bolso de casaco. Ou num uniforme militar. O seu carácter portátil permitia uma nova mobilidade, bem distinta da que era permitida pelas câmaras de madeira e tripé. Podiam ser levadas em viagens ou excursões. Mas também podiam ser levadas para a guerra. A fotografia estivera, desde os seus começos, associada aos momentos excepcionais da vivência humana – uma ida com os filhos ao estúdio fotográfico, uma visita real ao país vizinho, o dia do casamento, a visita à Torre Eiffel.

A guerra também era um evento excepcional e temporário. Embora quase sempre menos temporário do que se pensava à partida. As guerras implicavam quase sempre viagens, sendo estas momentos que deviam ser preservados na memória, oral, escrita ou material dos indivíduos. Aqueles que viajavam por lazer partiam com a obrigatoriedade da escrita (de diários de viagem ou de correspondência) e, mais tarde, com a obrigatoriedade de trazerem imagens para casa. O aristocrata britânico do século XVIII que trazia o seu auto-retrato pintado durante o Grand Tour italiano; a norte-americana que se fazia fotografar em Paris durante o seu tour europeu na segunda metade do século XIX; o casal moderno que obrigava a família a longas sessões de slides nos anos 1970, ou os jovens que transformam o seu Erasmus em feeds diários de selfies onde apenas variam os cenários. Os soldados também viajavam para a guerra. E, quando regressavam, também traziam as cartas, postais, fotografias ou mesmo diários com que tinham registado a sua experiência.

Fotografar na linha da frente

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Desfile do Corpo Expedicionário no Parque Eduardo XVII, em Lisboa Joshua Benoliel/AML

O controle sobre a produção de imagens passou a estar não apenas nas mãos dos fotógrafos profissionais, mas de um número muito mais alargado de homens e, em menor número, também de mulheres. Nos cenários de guerra ou nos países envolvidos no conflito podemos identificar sobretudo três tipos de fotógrafos: os fotógrafos oficiais, contratados pelo exército ou pelas autoridades; os repórteres fotográficos, ao serviço de jornais; e os amadores, que se dedicavam à fotografia por iniciativa própria.

O exército português também teve o seu fotógrafo oficial em Arnaldo Garcez (Santarém, 1885-1964). Quando no Cais de Santa Apolónia se deu o primeiro embarque das tropas nacionais para França, em Janeiro de 1917, com os soldados, partiram três homens cuja função não era a de combater, mas a de representar a experiência de guerra através da fotografia, do desenho e da pintura. Ao acompanhar o Corpo Expedicionário Português, o pintor Sousa Lopes, que se especializara em pintura de história durante os vários anos da sua estadia em Paris, pôde pôr em prática a sua especialidade. A história em directo, vivida, e sofrida, sobretudo através de águas fortes, a preto e branco tal como as fotografias da guerra. Cristiano Cruz, artista que já se destacara com os seus desenhos e traço satírico com que apreendia a contemporaneidade. E Arnaldo Garcez.

Quando se deu a República em 1910, Garcez era já um fotógrafo profissional que colaborava com vários jornais da capital. Na altura em que se começou a ponderar a participação de Portugal no conflito, Norton de Matos, Ministro da Guerra, convidou-o a fotografar os treinos militares que decorriam em Tancos. Tomada a decisão de avançar para Flandres, Garcez tornou-se a escolha natural para fotografar a participação portuguesa na Guerra. Partiu com o exército mas não voltou com ele após o Armistício de 1918, pois continuou por França até ao ano de 1921. O casamento com uma francesa e o nascimento de três filhos também terão adiado o seu regresso.

Quer em França, quer já em Portugal, continuou a documentar os resquícios e destroços do conflito, contribuindo para a construção, imediata, da memória da guerra. Escolhido para membro da Comissão de Padrões da Grande Guerra, organizou exposições fotográficas sobre a guerra; envolveu-se na construção dos cemitérios em França onde ficaram tantos portugueses e fotografou as transladações de corpos, inauguração de monumentos aos mortos e todas as cerimónias de luto e lembrança. Isto, claro, depois da euforia da vitória aliada – que ele também testemunhou, ao acompanhar as tropas portuguesas a passar sob o Arco do Triunfo de Paris, ou nas ruas engalanadas de Londres.

A “guerra” de Garcez desobedeceu a algumas das instruções superiores que decidiam aquilo que podia ou não podia ser fotografado e aquilo que podia ou não ser visto. O estatuto do exército português – entre uma afirmação nacional que queria defender as suas colónias africanas da ameaça alemã, e a dependência da Inglaterra, que secundarizava o seu poder militar – também teve implicações na prática da fotografia. As imagens de Arnaldo Garcez tinham que passar no crivo censório do exército britânico.

Os 16 fotógrafos oficiais britânicos, deslocados em vários teatros de guerra, já estavam sujeitos a uma política de propaganda que decidia aquilo que permanecia nos arquivos militares ou o que deveria ser visto pelo público. Havia que mostrar os aspectos negativos do inimigo, sem revelar o pior da guerra, e sem abalar o espírito combativo e entusiasta que as populações deveriam manter. O esforço de guerra afectava todos, incluindo aqueles que não estavam na frente da batalha, e que sabiam da guerra sobretudo pela imprensa. Para os muitos que, em Portugal, não sabiam ler, as fotografias impressas em jornais eram a guerra visível.

Do diário ilustrado ao postal fotográfico

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Desfile do Corpo Expedicionário em Lisboa Joshua Benoliel/AML

Em 1916, um ofício confidencial da Secretaria da Guerra ordenava à Comissão de censura que não se publicassem fotografias sobre assuntos militares em jornais “sem que apresentem uma prova vizada neste Ministério”. O principal jornal a publicar imagens da guerra – em desenho ou em fotografia – era a Ilustração Portuguesa, tal como França tinha L’Illustration e a Inglaterra o Illustrated London News. A primeira capa que a Ilustração Portuguesa dedicou à guerra foi logo em Outubro de 1914. Não uma fotografia, mas um desenho de um soldado feito por Stuart de Carvalhais. Era o momento da mobilização das tropas por toda a Europa, mas não deixava de ser ainda um acontecimento estrangeiro.

Perante a ameaça alemã às fronteiras coloniais de Moçambique e Angola, pouco depois, Portugal enviou as primeiras tropas portuguesas para um cenário de guerra. O embarque dos navios para África foi fotografado pelo prestigiado fotojornalista Joshua Benoliel, juntamente com Garcez, Novais e outros, testemunha dos acontecimentos políticos e públicos portugueses das primeiras décadas do século XX. Desfiles das tropas destinadas às colónias, navios atulhados de soldados ou, num registo distinto, um soldado abraçado à sua mãe já velha. A Ilustração Portuguesa colocou esta imagem na capa e legendou o soldado com “um sorriso, misto de ternura, de coragem e da consciência do dever.”

Que saibamos não partiu nenhum fotógrafo oficial para as colónias africanas, tendo ficado o registo fotográfico da experiência nas mãos dos amadores, quase sempre oficiais do exército. João Alves de Melo, por exemplo, “soldado-repórter”, terá regressado à metrópole com as imagens que depois enviou para a Ilustração. Os registos da presença militar em África são assim mais fragmentados e dispersos, sem a unidade do trabalho de Garcez que, dos treinos em Tancos antes da partida, até ao enterro dos mortos, contou da experiência militar portuguesa na Europa uma história reflexiva, intimista e com preocupações totalizantes.

As centenas de fotografias realizadas por Garcez mostram tudo menos a morte (ou as da morte foram feitas e não se sabe do seu paradeiro): os treinos com a máscara anti-gás a que as novas tecnologias de guerra obrigavam; os acampamentos provisórios, onde a logística do quotidiano se tivera de reinventar em espaços inóspitos; os momentos de espera entre batalhas, em que se partilhavam cigarros e conversas; o transporte, o movimento entre diversas frentes; os encontros oficiais entre o exército português e o inglês; uma Igreja na Flandres arruinada por um bombardeamento; as crianças locais a brincarem entre escombros; os vários momentos da visita do presidente Bernardino Machado à frente de batalha, como aquela onde visita um ferido no hospital militar; os repórteres de guerra a escrevinhar desconfortavelmente deitados no chão. Ou os retratos emblemáticos de dois soldados de cigarro na boca. Um, o cabo “Sementes”, sem nome e sem esperança. Outro, sem nome mas com a identidade militar de pertencer ao batalhão do regimento de Infantaria nº 7, a mostrar na lapela a condecoração da Cruz de Guerra.

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Arnaldo Garcez/Liga dos Combatentes Soldado português

Quem é que viu estas imagens ? Onde é que foram reproduzidas? Logo em 1916, Arnaldo Garcez participa com outros fotógrafos da sua geração na Primeira Exposição Nacional de Photographia realizada em Novembro de 1916 no Palácio Nacional de Bellas Artes Lisboa e promovida pela revista Arte Photographica. Ao lado de Domingos Alvão, Jorge de Almeida Lima ou Villarinho Pereira, apresenta 12 fotografias mas, apenas com os seus títulos, não sabemos se a guerra já aparecia exposta – mesmo com uma das legendas denominada “raça heróica”.

Em França, no entanto, 75 das suas fotografias foram utilizadas numa colecção de postais fotográficos sobre a guerra editados pelo Corpo Expedicionário Português. A transformação da fotografia em postal fotográfico, para venda e circulação massificada, era já uma prática corrente. Nascido em finais do século XIX, o postal era ainda um meio recente, mas a guerra acabou por lhe dar um forte impulso.  Ao forçar a mobilidade de milhões de pessoas em diversas regiões do mundo e ao afastar famílias e amigos durante longos espaços de tempo, a guerra acabou por ser um espaço privilegiado para o desenvolvimento do postal.

Nas trincheiras, com as condições de vida limitadas aos mínimos da sobrevivência, um postal permitia enviar uma imagem, fotográfica ou desenhada, com umas breves palavras. Texto e imagem, num pequeno rectângulo viajavam dos cenários de guerra para as moradas dos que tinham ficado e de quem se tinha saudades. As mães e os pais, mas também as mulheres, e as noivas que não se deveriam esquecer deles e deveriam esperar pelo seu regresso. Os postais amorosos – com encenações realistas de casais em fotografias por vezes pintadas e decoradas – conheceram uma grande popularidade durante a guerra. Eram a ligação possível. Foi uma guerra onde se escreveu muito de sofrimento mas também se escreveu muito de amor.   

Mulheres nas linhas da guerra

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ArnaldoGarcez/Liga dos Combatentes Os soldados portugueses nas trincheiras

As mulheres ficaram – quase todas – mas não ficaram paradas. Christina Broom, por exemplo, uma das primeiras mulheres britânicas fotógrafas de reportagem, especializou-se em fotografar os soldados em Londres, antes de partirem para a guerra (Exposição no Museum of London, em 2015). A ausência dos homens e as necessidades de alimentar os teatros de guerra com armamento e logística militar obrigaram-nas a assumir novos tipos de trabalho.

A fotografia deste período dá conta deste fenómeno um pouco por toda a Europa, embora os casos britânico e francês sejam talvez aqueles com maior visibilidade. Mulheres a conduzirem transportes públicos enquanto os maridos faziam de soldados. Sentadas em uniforme, às dezenas, em fábricas improvisadas ou a lidar mais directamente com os resultados da guerra, nos hospitais improvisados que acolhiam os mutilados e feridos que proliferavam com os novos tipos de ataques.

Com o exército português também partiram mulheres – as “Damas Enfermeiras Auxiliares” da Cruz Vermelha Portuguesa, “senhoras da melhor sociedade” que tinham feito o curso de enfermagem e que se voluntariaram para trabalhar nos hospitais da frente de batalha francesa. Garcez fotografou-as várias vezes, contribuindo assim para a multiplicação de imagens de mulheres a prestar serviços de saúde durante a guerra.

As mulheres que ficavam usavam a fotografia como a memória dos que tinham partido. Os usos privados da fotografia, a unir aqueles que a guerra afastara na projecção da dor e da saudade, na troca de correspondência, na memória, individual, de cada família são um fenómeno que, apesar de menos visível, não deve ser descurado. Para as famílias daqueles que não regressaram da guerra, a fotografia do morto quando ainda estava vivo tornou-se num dos objectos mais olhados e preservados da memorialística intíma. Vestidos com o uniforme militar antes de partirem, muitos não puderam voltar a ser fotografados. Estas fotografias de guerra permanecem sobretudo nos arquivos familiares. Outras foram preservadas em museus de fácil acesso, como o Imperial War Museum londrino, onde as fotografias portuguesas da primeira guerra são uma ínfima parte de um espólio que possui quase 11 milhões de fotografias. Outros conjuntos de imagens da I Guerra continuam a ser descobertos, como aquele que se encontrou há uns anos num celeiro abandonado de uma aldeia no Nordeste da França.

Mas, 100 anos depois, nem a fotografia guarda todas as memórias – não se sabe quem foi o autor das 400 chapas fotográficas de vidro, um amador provavelmente, nem quem são as centenas de soldados britânicos que para ele posaram. Os arquivos de guerra continuam a ser desenterrados para enriquecer a cultura visual do primeiro conflito a ser tão fotografado na história da humanidade. Depois de 1918, nos muitos conflitos armados que se seguiram, a fotografia continuou a assumir todas as suas facetas e a ser usada tanto como um instrumento nas estratégias de guerra, como um antídoto para a dor.

Bibliografia

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Regresso do Corpo Expedicionário Português Anselmo Franco

Catálogo da primeira Exposição Nacional de Photographia realizada em Novembro de 1916 no Palácio Nacional de Bellas Artes Lisboa e promovida pela revista Arte Photographica.

General Ferreira Martins, dir., Portugal na Grande Guerra (Lisboa: Ática, 1934).

António Pedro Vicente, Arnaldo Garcez. Um repórter fotográfico na 1ª Grande Guerra (Porto: Centro Português de Fotografia, 2000).

Cor. Cavª Conde Falcão, Imagens da I Guerra Mundial (Lisboa: Estado Maior do Exército, 2004).

Jorge Pedro Sousa, A Grande Guerra. Uma crónica visual – Parte I. Estudo do discurso em imagens da Ilustração Portuguesa (1914-1918) sobre a participação portuguesa na I Guerra Mundial (Porto: Media XXI, 2013).

Amanhã: "Um momento de emancipação para as mulheres". Miguel Bandeira Jerónimo entrevista a historiadora Françoise Thébaud
 

   

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