O Brasil na fronteira

Mais próximos do vizinho Paraguai do que da capital do próprio estado, os brasileiros do Paraná habituaram-se a olhar para fora.

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É feriado e toda a gente parece ter tido a mesma ideia. O trânsito segue intenso pela principal estrada da região: o caminho até à fronteira será, a esta hora, o mais concorrido de todo o Sudoeste do Brasil. “É sempre assim. O passeio do pessoal em dia feriado é ir no Paraguai”, conta Carlos, o motorista desta viagem. O movimento rodoviário ao longo de toda a estrada para Guaíra, a última cidade brasileira, é impressionante. Quando se aproxima o acesso à ponte que une os dois países, o ritmo da circulação torna-se ainda mais lento e a entrada no país vizinho é congestionada. São filas de automóveis que começam vários quilómetros antes da linha fronteiriça.

Ao longo de toda a estrada, vão-se multiplicando os enormes cartazes que anunciam a existência de centros comerciais nos primeiros quilómetros do território paraguaio. “Visite Paraguay. Importados”; “Compre en Monalisa”, lê-se. Nas cabinas da portagem, também há publicidade à casa “nº 1 em eletrónica” naquele país. É assim na fronteira de Guaíra. Mas o cenário repete-se quase 150 quilómetros mais a sul, em Foz do Iguaçu, onde o Brasil, além do Paraguai, se encontra também com a Argentina.

Este é o Brasil na fronteira. Na Zona Oeste do Paraná, os passeios nos dias de descanso ou as compras fazem-se com maior facilidade nos países vizinhos do que dentro do próprio território. Curitiba, a capital estadual, fica a cerca de 500 quilómetros desta área. É praticamente a mesma distância que seria necessário percorrer até Assunción, a capital do Paraguai. Não admira, por isso, que grande parte da vida nesta região se faça a olhar para o outro lado da fronteira.

A criação do Mercosul — a união de mercado comum composta por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai a que, mais recentemente, se juntou a Venezuela — tornou a circulação transfronteiriça na América do Sul mais fácil. Depois, o crescimento económico brasileiro dos últimos anos fez da classe emergente do país um alvo apetecível do investimento comercial dos vizinhos. O Paraguai, em concreto, parece estar mais interessado em captar consumidores brasileiros do que os seus próprios consumidores.

Em Salto del Guairá, do outro lado da fronteira de Guaíra, abriu, no ano passado, o Mercosur, que se apresenta como “o maior e mais moderno shopping do Paraguai”. Anunciado assim mesmo, em português, em todos os seus suportes de comunicação. O centro comercial tem 60 mil metros quadrados e foi inaugurado há um ano, fruto de um investimento de 30 milhões de euros, ficando a apenas cinco quilómetros da fronteira. Também há investimentos como este, ainda que de menor escala, em Ciudad Del Este ou Puerto Iguazu, outras duas cidades que se situam próximo da fronteira com o Brasil. Entre grandes shoppings e espaços comerciais mais pequenos, há quase uma dezena de unidades deste tipo na zona raiana, apostando em captar os reais brasileiros, bem mais valiosos do que a moeda paraguaia — 1 real vale mais de 1800 guaranis (cerca de 30 cêntimos de euro). “É sempre assim cada semana: tem gente que vai no Paraguai, compra um vidrinho de perfume e vem embora”, ilustra Carlos.

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A Ponte da Amizade liga a Ciudad del Este no Paraguai à Foz do Iguaçu, no Brasil REUTERS/Stringer

Os acordos aduaneiros do Mercosul permitem que cada pessoa que cruza a fronteira possa trazer consigo de forma legal 150 dólares de produtos, um valor que foi reduzido para metade no mês passado, fruto de uma revisão feita pelo Governo brasileiro ao Regime Aduaneiro de Bagagem. A mudança apanhou quase toda a gente desprevenida e é um exemplo do esforço que vem sendo feito pelo Brasil para responder ao outro lado da moeda deste movimento na fronteira: o contrabando.

A passagem ilegal de mercadorias na fronteira entre o Brasil e o Paraguai não é uma realidade recente. Há muito que esta área do Brasil é conhecida no país como a região do contrabando. O tabaco do Paraguai, por exemplo, é motivo de piada recorrente nas conversas dos locais e mesmo nas grandes cidades. Mas nos últimos anos as autoridades brasileiras têm encarado o problema como um caso sério, reforçando a presença policial e as acções de fiscalização.

Não é preciso muito para se dar de cara com reflexos desta realidade. Nos restaurantes e quiosques à volta de Guaíra ou Foz do Iguaçu, há autocolantes que anunciam “Novo preço mínimo do cigarro: 4 reais” (o equivalente a 1,30 euros). “Abaixo disso é ilegal”, diz o mesmo anúncio. O tabaco sai do Paraguai com preços entre os 35 e os 50 centavos de real por maço, e é vendido a 2 reais (0,65 cêntimos de euro) no Brasil. Os números oficiais apontam para o facto de, no estado do Paraná, 33% dos cigarros consumidos serem fabricados no Paraguai, o que representa perdas de receita anuais de 100 milhões de reais (33 milhões de euros) em receita fiscal.

O Paraná é um dos estados mais expostos a esta actividade ilegal, por via dos seus mais de 1000 quilómetros de fronteira, aos quais se juntam 1350 quilómetros de fronteira fluvial, formada pelo lago da Itaipu e as suas reentrâncias ao longo da bacia do rio Paraná. Nesta região, as autoridades estimam que existam cerca de 300 portos clandestinos.

Este movimento dos barcos sobre o rio Paraná é bem conhecido das autoridades brasileiras. Em Junho, a Polícia de Fonteira abriu uma delegacia em Guaíra para reforçar a sua presença. “A principal prática que encontramos aqui é o contrabando, sobretudo de tabaco”, reconhece Bruno Pazin, responsável pela equipa especializada em patrulhamento de água, a Cobra.

Esta tensão fronteiriça é evidente no Oeste da região. Quer pela quantidade de operações policiais com que é possível alguém deparar-se, no dia-a-dia, ao longo das estradas, quer nas patrulhas dos elementos da Cobra no rio, armados com fuzis de mira telescópica e com as caras tapadas por passa-montanhas. “Temos essa equipa que actua por água e também equipas por terra, que aguardam nos portos clandestinos, onde chegam as embarcações carregadas”, conta Pazin. Este reforço da atenção das autoridades brasileiras em relação à fronteira com o Paraguai tem dado resultados, a avaliar pelos números divulgados recentemente pela Receita Federal: nos primeiros seis meses do ano, a apreensão de cigarros na região aumentou 217%.

Mas não é só o tabaco que entra no Brasil pela fronteira do Paraná. Em seis anos, o Estado contabilizou mais de 483 milhões de reais (159 milhões de euros) em prejuízos aos cofres públicos por via da entrada de peças automóveis, produtos têxteis, combustíveis, bebidas, produtos de higiene e limpeza, fios e cabos eléctricos e outros produtos electrónicos. Segundo dados da Associação Brasileira de Combate à Falsificação, o Paraná representa cerca de um quinto do total da evasão fiscal brasileira.

Num país com dimensão continental, a área de fronteira prolonga-se num raio de 150 quilómetros — era como se Portugal incluísse Espinho, por exemplo, dentro da área de fronteira com a Galiza ou Montemor-o-Novo na zona de fronteira com a Estremadura espanhola. A acção da Polícia de Fronteira estende-se, por isso, pela área a montante no rio Paraná, entrando no Parque Nacional da Ilha Grande, onde também actua a Polícia Ambiental. E a área protegida está na rota do contrabando transfronteiriço.

“Temos um índice elevado de contrabando”, confirma Alcimar Crescêncio, responsável pela unidade estacionada em Porto Camargo, no extremo norte do parque, a 140 quilómetros de Guaíra. Estes agentes concentram-se no combate a delitos ambientais, mas acabam por deparar-se com outros tipos de práticas ilícitas, estando autorizados a intervir nessas situações. Têm feito dezenas de apreensões de tabaco, material electrónico e também de drogas na área protegida.

“Principalmente durante a noite, quando fazemos patrulhamento aquático, temo-nos deparado com tráfico e contrabando, que infelizmente têm sido comuns na região do Parque Nacional”, conta Crescêncio. “Os contrabandistas navegam aí no rio, a 100 quilómetros por hora, num comboio de barcos, no escuro total. É preciso alguma perícia”, ilustra o responsável pela Polícia Ambiental no Parque Nacional da Ilha Grande. Os “cigarreiros” usam lanchas rápidas, como a que é usada pela polícia. Não é por acaso: a embarcação é fruto de uma apreensão feita há poucos meses.

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Barcos de patrulha como este (do estado de Mato Grosso) tentam deter o contrabando Yasuyoshi CHIBA/AFP

Porto Camargo é uma pequena povoação junto à foz do rio Ivaí. A entrada das águas barrentas do afluente na imensidão verde do rio Paraná é uma imagem poderosa. A beleza natural do lugar atrai alguns visitantes e é por isso que, mesmo junto à água, se instalaram dois pequenos restaurantes, cujos donos exploram embarcações de recreio que permitem percorrer esta parte do sétimo maior rio do mundo. É daqui que o barco da Polícia Ambiental parte, a alta velocidade, numa das suas acções de patrulha. Do outro lado do rio — que é também o segundo maior rio do Brasil, com 3942 quilómetros de extensão, apenas ultrapassado pelo Amazonas — fica outro estado brasileiro, o Mato Grosso do Sul. Entre uma margem e outra, a distância chega a ser de cinco quilómetros. Os homens de Alcimar Crescêncio precisam, por isso, de estar muito atentos.

As rotas do contrabando atravessam esta zona, que é o ponto mais a norte do Parque Nacional da Ilha Grande, uma área protegida de 78 mil hectares, criada em 1997. São 180 ilhas ao longo de quase 150 quilómetros. A unidade de conservação, gerida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), um organismo público, corresponde ao último troço em que o rio corre no seu leito natural, entre as hidroeléctricas de Porto Primavera, localizada no estado de São Paulo, e o início do lago da Itaipu. “Se perder esse pedaço de rio, você está perdendo o último trecho que guarda as suas características originais”, alerta Romano Pulzatto Neto, director do parque.

A área protegida fica numa zona de transição de ecossistemas entre o final da mata atlântica (floresta tropical da costa leste e sul do Brasil) e o cerrado (a “savana” brasileira), já no estado do Mato Grosso do Sul. As áreas alagadas junto ao rio, que são a maior parte do parque, dão também origem a áreas de pantanal. Por isso, a fauna aqui existente também é a correspondente a esses três biomas, incluindo exemplares do cervo-do-pantanal, a onça-pintada, o tamanduí ou a capivara. Mas os avistamentos de fauna são “complicados”, reconhece o responsável.

Esse é um dos motivos para que o parque seja ainda muito pouco procurado por visitantes. As estatísticas existentes têm por base os dados dos municípios com algum controlo de entrada na área do Parque Nacional e apontam para 6000 a 7000 pessoas por ano. “É insignificante para uma unidade de conservação”, afirma Romano Neto. O Parque Nacional é ainda relativamente recente e, apesar da oferta turística algo precária como a que se encontra em Porto Camargo, não há grandes infra-estruturas de apoio à visitação.

Além da riqueza de fauna e flora e da beleza das paisagens, a imensidão do rio Paraná dá azo a que, na área, surjam pequenas praias, como a Praia do Meião, um areal formado no centro do rio na zona de Porto Camargo e que é bastante procurado pelos locais durante o Verão. A esta procura, há que juntar o turismo de pesca, uma prática em crescimento num momento em que a economia brasileira está aquecida. “Quando a pesca abre, tem quase 300 embarcações no rio”, conta Alcimar Crescêncio, da Polícia Ambiental.

O Paraná tem a quinta maior economia do Brasil, representando quase 6% do PIB nacional. Entre os cerca de 4 mil milhões de euros de exportações anuais, a soja e derivados assumem especial relevância, representando um terço desse valor. O estado é também forte na produção de cana-de-açúcar (26 milhões de toneladas anuais), milho (12 milhões de toneladas) e mandioca (5 milhões) e também na agro-pecuária com 9,5 milhões de cabeças de bovinos, 4,2 milhões de suínos e uma forte avicultura, que produz mais de 100 milhões de aves.

Essa força da agricultura na economia da região é bem marcante na paisagem. Há longos quilómetros e quilómetros de campos de cultivo em que vão desfilando a soja, o milho ou a cana. Às primeiras horas da manhã, os velhos autocarros percorrem as estradas da região, recolhendo trabalhadores que vão trabalhar na roça e em qualquer percurso há camiões transportando produtos dos campos para armazéns ou fábricas.

A relação de privilégio do Oeste do Paraná com a natureza não se observa apenas na sua produtividade agrícola. A região é também pródiga em paisagens fulgurantes e cenários de cortar a respiração. Quase sempre com uma relação muito forte com os rios. O Parque Nacional da Ilha Grande é só um dos exemplos.

Entre esses lugares, não há nenhum mais conhecido do que as cataratas de Iguaçu, um conjunto de mais de 250 quedas de água no rio Iguaçu, entre o Brasil e a Argentina, em Foz do Iguaçu. Os parques nacionais criados de cada um dos lados da fronteira têm mais de 250 mil hectares de floresta. A área é considerada Património Natural da Humanidade, desde 1984. Além disso, foi eleita uma das sete maravilhas naturais do mundo num concurso internacional promovido em 2011. O Parque Nacional de Foz do Iguaçu tem cerca de 1,5 milhões de visitantes por ano e é actualmente o segundo destino mais visitado por estrangeiros no Brasil. (O primeiro é o Rio de Janeiro.)

Mas, antes do fenómeno mundial de massas em que se tornaram estas cataratas, a região conheceu outro conjunto de quedas de água impressionante, entretanto desaparecidas. Em Guaíra, o Brasil e o Paraguai comunicam-se através de uma ponte sobre as águas elevadas do rio Paraná. Nem sempre foi assim. Até 1982, era aqui que a cidade de Guaíra se encontrava com as Sete Quedas, o maior conjunto de cataratas do mundo em volume de água. As cascatas estiveram aqui até que foram submersas pelo lago resultante da construção da barragem de Itaipu — então a maior hidroeléctrica do mundo, entretanto ultrapassada pela barragem de Três Gargantas, nas China. O nome da cidade deve-se, de resto, à sua existência. “Guaíra é uma palavra de origem indígena que quer dizer vento divino”, conta Ana Menel, o que remete para a brisa provocada pela força com que as águas caíam a pique nas cascatas.

“Foz do Iguaçu não tem comparação com o que eram as Sete Quedas”, avalia Menel, lembrando que o Iguaçu “é só um afluentezinho do rio Paraná”. “Para você ter uma ideia, a vazão do rio Iguaçu é 2000 metros cúbicos por segundo e a vazão do Paraná é 20 mil metros cúbicos por segundo”, confirma Romano Neto, director do Parque Nacional da Ilha Grande, nascido na região. As cataratas desaparecidas tinham, por isso, 10 vezes maior volume de água do que um dos grandes chamarizes turísticos do Brasil contemporâneo.

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As cataratas de Iguaçu são a segunda atracção turística do Brasil Jorge Adorno/REuters

Ana Menel é uma antiga professora de História, que conta a vida da região aos seus visitantes há mais de 20 anos. Com palha de milho e fibra de bananeira, ela criou as personagens dos três momentos centrais da Região Oeste do Paraná: os indígenas, que primeiro habitaram a região, os jesuítas espanhóis, que por aqui se instalaram em meados do século XVI, e os bandeirantes, que chegaram quase um século depois.

A narrativa é acompanhada por um sorriso nos lábios e um entusiasmo contagiante. Mas o semblante de Menel muda quando o assunto são as Sete Quedas. “A gente ficou órfã”, sintetiza. A cidade perdeu o seu grande referente há mais de 30 anos. Com o fim das cascatas, Guaíra também deixou de receber turistas e perdeu a sua imagem de marca. A cidade também perdeu o seu som. “O seu ronco era ouvido a 20 ou 30 quilómetros”, recorda a antiga professora de História.

Foram precisos 14 dias desde o fecho das comportas da Itaipu até que o lago da barragem se formasse. A partir de então, o ruído das cascatas foi-se tornando cada vez mais baixo. “Até que, no dia 20 de Novembro, a gente acordou no silêncio”. Ana Menel pára um pouco e assume um ar ainda mais solene: “Se você perguntar para qualquer guairense do que sente mais falta em relação às Sete Quedas, ele vai te dizer: é do som delas”.

Itaipu está a mais de 200 quilómetros a sul, em Foz do Iguaçu, mas a sua dimensão fez inundar toda esta região. O sol põe-se sobre esse imenso lago em que se transformou este troço do rio Paraná. Do lado de lá, fica o Paraguai. Assim que a luz do dia deixa de se reflectir na água, começam a ouvir-se os motores de lanchas a trabalhar. Em poucos minutos, o porto de dimensões reduzidas na margem brasileira enche-se de pequenos barcos carregados de caixas de cartão, desembarcadas prontamente por homens vestidos de negro para carrinhas de transporte. Não há autoridades por perto. O material seguirá, pelo menos por agora, pelas estradas da região, de encontro ao destino previsto.

a Esta reportagem foi realizada no âmbito do programa de formação jornalística Beyond Your World