Morreu João Ribas, o grande herói do punk português

O vocalista dos Tara Perdida, figura fundadora do movimento punk nos anos 1980 com os Ku de Judas e os Censurados, tinha 48 anos.

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Comecem onde começarem, há um ponto em que todas as pequenas histórias do punk português vão parar àquele quarto de uma casa de classe média no bairro de Alvalade, em Lisboa — o quarto que a câmara de Edgar Pêra visita em dia de ensaios dos Censurados num dos “malogrados filmes imberbes” que o realizador compilou em Punk Is Not Daddy, o seu cine-diário dos anos 1980 em Portugal. O plano sobe da bateria de Samuel Palitos até aos amplificadores Marshall empilhados em altura, e só depois encosta o vocalista, João Ribas, à parede coberta de cartazes de concertos e demais parafernália punk (“Polícia bom é polícia morto”, lê-se logo atrás em letra de imprensa, à direita do rapaz de crista vermelha desenhado a marcador).

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Comecem onde começarem, há um ponto em que todas as pequenas histórias do punk português vão parar àquele quarto de uma casa de classe média no bairro de Alvalade, em Lisboa — o quarto que a câmara de Edgar Pêra visita em dia de ensaios dos Censurados num dos “malogrados filmes imberbes” que o realizador compilou em Punk Is Not Daddy, o seu cine-diário dos anos 1980 em Portugal. O plano sobe da bateria de Samuel Palitos até aos amplificadores Marshall empilhados em altura, e só depois encosta o vocalista, João Ribas, à parede coberta de cartazes de concertos e demais parafernália punk (“Polícia bom é polícia morto”, lê-se logo atrás em letra de imprensa, à direita do rapaz de crista vermelha desenhado a marcador).

Uma parte desse quarto sobrevive a João Ribas, o vocalista dos Tara Perdida (e dos Osso Ruído) que morreu ontem de manhã no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde estava internado desde o início do mês com uma infecção respiratória. Outra parte não. “O quarto do João Ribas é histórico, e tão central quanto o próprio João Ribas no fenómeno do punk português”, diz ao PÚBLICO Paula Guerra, a socióloga da Faculdade de Letras da Universidade do Porto que está a coordenar o primeiro estudo feito no país sobre a história do movimento, Keep it simple, make it fast! Prolegómenos e cenas punk (1977-2015). Feitas mais de 200 entrevistas a vários protagonistas do punk nacional— músicos, editores, seguidores —, a investigadora já pôde concluir que João Ribas é uma figura unânime e absolutamente incontornável desta história: “Não há ninguém, de Norte a Sul, que não o tenha referenciado como fundamental.”

  

Antes dos Tara Perdida — formados em 1995 e regressados em 2013, com o álbum Dono do mundo, depois de um interregno de cinco anos —, João Ribas já tinha tido várias aventuras punk. Sobretudo com os Ku de Judas e os Censurados, bandas que formou durante a década dos 1980 com o seu grupo de amigos de Alvalade, onde era uma espécie de herói local, como explica Tó Trips, dos Dead Combo: “O João era o símbolo máximo do punk em Portugal e, não menos importante, um ícone do bairro. Nos concertos dos Ku de Judas e dos Censurados, perguntava sempre: ‘Como é que é? Há alguém de Alvalade aí?’. Cheguei a fazer algumas capas para os Tara Perdida e até um logotipozinho que dizia ‘Alvalade recomenda este disco’.”
“De facto, o punk afirma-se em Portugal a partir de Alvalade, embora sempre numa lógica underground, de não-reconhecimento”,  confirma Paula Guerra. Era então “um bairro residencial habitado por uma classe média-alta aberta às influências externas, onde os discos iam chegando”. E onde havia , sobretudo, muitos adolescentes — alguns dos quais nunca cresceram totalmente, como João Ribas, que manteve até aos 48 anos o seu lado Peter Pan. “O João Ribas é uma figura central por ter estado em vários momentos fundadores do punk português, mas também porque encarnou mesmo o modo de vida punk. Ao ponto de nunca ter saído dele”, diz ainda a socióloga. 


“Era sem dúvida”, reitera Zé Pedro, dos Xutos & Pontapés, “o grande carismático da facção mais radical do rock’n’roll nacional”. “Foi um óptimo músico e um óptimo letrista. Tinha uma maneira muito genuína de dizer as palavras e em palco sempre se mostrou um frontman enorme”, continua, destacando a invulgar militância do vocalista dos Tara Perdida (“Era um activista: fazia fanzines, apoiava as bandas novas”), tantos anos depois das suas primeiras aventuras punk, que foram também um ritual de passagem para a geração que cresceu entre os anos 1980 e os anos 1990.
Pessoalmente, Zé Pedro recorda-se sobretudo da fase Censurados (1988-1994) — uma espécie de segundos Xutos & Pontapés, enquanto fenómeno de culto, hinos geracionais incluídos (do homónimo Censurados a É difícil ou Animais, todos do disco de estreia): “Eles deram uma volta muito boa ao rock português e essa revolução devia-se bastante à atitude do João, que era muito nova em Portugal e que ele nunca perdeu. Continuava a acreditar que iria longe e realmente foi muito longe com os Tara Perdida, que até tinham um som mais radical do que os Censurados.”
A música, nota Tó Trips, era definitivamente a vida de João Ribas (se não tivesse sido vocalista, teria trabalhado no teatro, como contra-regra ou a fazer luz e som, confessou à Blitz em 2009). “Sempre o vi em bandas. Lembro-me do João a tocar na Comuna, no Rock Rendez-Vous, no Johnny Guitar... Sempre teve este lado incrível de tanto tocar com bandas grandes como a seguir ir ensaiar com uns putos. Ainda noutro dia nos encontrámos e lá ia ele ter com uma malta. Era muito de estar com as pessoas, do convívio, e também era isso que o tornava carismático”, afirma o guitarrista dos Dead Combo. Para sucessivas gerações, acrescenta Paula Guerra: “Vi os Tara Perdida em Julho no Super Bock, Super Rock e o público ia dos 14 aos 50.”
Há umas semanas, quando anunciaram o adiamento do concerto marcado para o dia 14 no Paradise Garage, os Tara Perdida prometeram agendar nova data. Entretanto, o estado do grande herói do punk português — português ao ponto de começar o dia com um pastel de bacalhau e uma Super Bock — agravou-se. O funeral sai hoje às 12h da Igreja de S. João de Brito para o Cemitério dos Olivais.