Encontramo-nos todos em Al Mutamid, o rei poeta

Músicos portugueses, espanhóis e marroquinos mostram uma cultura comum, a do al-Andalus. Concerto sábado em Lisboa e domingo em Beja.

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Seguimos as imagens: o discreto mausoléu em Aghmat, erguido pelo reino marroquino àquele que é considerado um dos grandes poetas da língua árabe; o mar de Tânger, que Al-Mutamid atravessara despojado do seu reino; uma sala num edifício daquela cidade, onde músicos portugueses, espanhóis e marroquinos, guiados pela vida e obra do rei poeta, se encontram numa linguagem comum, a do al-Andalus, a cultura miscigenada criada durante os sete séculos de presença árabe na Península Ibérica, esbatida na consciência colectiva por séculos de costas voltadas.

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Seguimos as imagens: o discreto mausoléu em Aghmat, erguido pelo reino marroquino àquele que é considerado um dos grandes poetas da língua árabe; o mar de Tânger, que Al-Mutamid atravessara despojado do seu reino; uma sala num edifício daquela cidade, onde músicos portugueses, espanhóis e marroquinos, guiados pela vida e obra do rei poeta, se encontram numa linguagem comum, a do al-Andalus, a cultura miscigenada criada durante os sete séculos de presença árabe na Península Ibérica, esbatida na consciência colectiva por séculos de costas voltadas.

Ouvimos a música: é quinta-feira e estamos no Largo Café, no Largo do Intendente, em Lisboa. El Arabi Serghini, cantor marroquino, ergue-se e ergue o seu canto sufi, lamento poderoso, tão tocante quanto empolgante, incrivelmente expressivo nas gradações dos melismas. A percussão de Quinté vai aumentando de intensidade, acompanhando o bailado sincopado dos braços e tronco de El Arabi Serghini. Filipe Raposo colora a música com um piano que é melodia magrebina trazida para clube de jazz pouco convencional. Jamal Ben Allal, violino na vertical, apoiado na perna, acentua o rodopio frenético a que a música se entrega, enquanto os andaluzes Eduardo Paniagua, ele do som cintilante do saltério, e Cesar Carazo, ele que, pouco antes na mesma música, cantara com gravidade a glória sangrenta da guerra (Al-Mutamid conhecia-a bem), ele que acompanha Ben Allal com a fídula medieval, contribuem para esta música tão prenhe de mistério e ascensão espiritual quando de celebração inebriante de algo primevo, indefinível.

No fim, o público na pequena sala aplaude. Aplaude um ensaio – incompleto, já que Janita Salomé, o vocalista português do grupo, não pode estar presente. Isto, porém, é apenas o início – nasceu música, será editado um CD, um filme chegará em 2015.

O arranque a sério acontecerá este fim-de-semana. O concerto “Al Mutamid, Rei Poeta do al-Andalus” será estreado esta noite no Teatro São Luiz, em Lisboa (21h). Domingo, passará por Beja, a cidade onde nasceu o homem que se celebra (21h30). Aí ouviremos mais que na noite de quinta-feira. Lá estará Janita, ele que cantou Al Mutamid em álbuns como Lavrar o Teu Peito (1985), sequência do enamoramento com a cultura marroquina iniciada em A Cantar ao Sol (1983), a juntar a sua voz extraordinária à extraordinária voz de El Arabi Serghini. Vozes irmãs, de certa forma. Janita conta-nos que, em ensaios em Tânger, reconheceu numa canção cantada por Serghini a melodia de uma moda alentejana: cantou-a, deixou Serghini “estupefacto e satisfeitíssimo” com as semelhanças, e a música que nasceu depois tornou-se união, sem fissuras à vista, entre tradição marroquina e alentejana.

No dia dos concertos, não iremos limitar-nos a ouvir mais. Veremos mais. “Os vídeos no concerto farão, por um lado, uma relação cronológica com a vida de Al Mutamid em Beja, Silves, Sevilha, Múrcia, Tânger e Aghmat”. Por outro, através dos músicos e das pessoas as filmagens captaram, o público “partirá à procura do mito”. Quem o explica é Carlos Gomes, arquitecto, realizador e responsável pelo projecto. Foi através dele que os músicos se juntaram e será ele o realizador do “road movie musical” que seguirá os passos de Al Mutamid, conduzindo-nos “por este território em continuidade, com trocas de conhecimento e traços culturais comuns que fizeram com que fosse moldado da mesma maneira”. A separá-lo, um estreito. E séculos de clivagem religiosa e uma lógica de “vencedores e vencidos” – sete séculos depois da chegada dos árabes à península, a reconquista cristã concretizou-se com a conquista de Granada pelos Reis Católicos de Castela em 1492.


Tudo o que nos liga

“Em Espanha há gente culta que sabe da história, que sabe da literatura, que ama o al-Andalus e a sua cultura", diz Eduardo Paniagua, músico com discografia extensa dedicada à música medieval espanhola. "Mas, em geral", aponta, "Espanha vive de costas para o mundo árabe. Esqueceu o seu passado e o árabe passou a significar ‘invasão’, ‘exclusão’, o que é um erro dramático". E no entanto…

Janita Salomé estava em Paris, acompanhando José Afonso no início da década de 1980. Ali viu e tocou com músicos norte-africanos. A reacção àquela música e àquelas vozes foi imediata: “Senti um apelo ancestral, senti que muito nos ligava. Relacionei logo aquele canto com o fado e com o cante alentejano”. Encontrou algo que não sabia que lhe faltava e, a partir daí, aprofundou. Descobriu a riqueza a que devemos cerca de 18 mil palavras da nossa língua, a contribuição para a gastronomia, para a música, para a poesia. Tal tomada de consciência, em momentos diferentes, parece comum aos integrantes do projecto – El Arabi Serghini é sucinto: “tudo isso está em nós, no sul da Europa e em Marrocos”.

 

A arte como reflexo da vida

Vejamos Carlos Gomes. O clique deu-se com a leitura de O Meu Coração é Árabe [Assírio & Alvim; 1998], colectânea de poesia árabe criada no sul do que é hoje o território português, compilada pelo poeta e ensaísta Adalberto Alves, também colaborador neste projecto. Carlos começou pela poesia e estreitou depois laços com a cultura do norte de África, deparando-se com um temperamento (“um espaço maior na relação com o outro, uma certa incerteza na ligação com a realidade”) que vê como tendo “moldado a nossa maneira de ser”: “acho que é isso que faz com que nos sintamos em casa naquele território”. Agora, deu um passo em frente. Quer levar a outros, a todos aos que lhe for possível, “essa memória cheia de indefinições, o que é a sua grande força, transmitida oralmente ao longo dos tempos”. Neste contexto, quem melhor para servir de elo transmissor que Al Mutamid, cujo percurso de vida parece espelhar o do próprio Al Andalus?

“A sua arte não está nada distante da sua vida”, considera Janita Salomé. “Foi um homem com uma vida extremamente rica e isso está presente na sua poesia, desde a adolescência em Silves até à morte no exílio: “É um fim trágico, mas de um estoicismo impressionante”. Agrilhoado, ele antigo rei respeitado pelos súbditos e adorado pelos poetas que, mesmo à chegada a Tânger, prisioneiro, lhe pediam protecção e apoio (deu-lhes, diz a lenda, as suas últimas moedas, manchadas com o seu próprio sangue). Despojado de tudo e vendo as filhas e a mulher Itimad, a sua musa, trabalhando como tecelãs para sobreviver, Al Mutamid interpelava o seu destino: “Grilheta, não sabes que já sou teu? / Porque és dura e sem piedade? / Se esse ferro deste sangue já bebeu / E a minha própria carne já mordeu / Não me roas os ossos por maldade”. Preso em Aghmat, recordava “os queridos lugares de Silves”: o Palácios das Varandas, “morada de leões e gazelas”, o rio onde tantas vezes ficara “preso nos jogos do amor / com a da pulseira curva, / Igual aos meandros da água / enquanto o tempo passava…” (de “Evocação a Silves”)

El Arabi Serghini aponta que, em Al Mutamid, a poesia daquela fase final tem o mesmo poder que nele tem a música Sufi [a vertente mística, espiritual, do Islão]. “Sublima a tristeza, permite-nos ganhar ânimo perante ela”. Paniagua, que o vê como um poeta moderno (“é muito pessoal e não necessita de adulterar a forma ou de adornar para o mecenas”), resume-o de forma eloquente e objectiva: “Uma juventude, sobretudo a fase portuguesa, com uma poesia hedonista, de amizade, amor e loucura. Depois a poesia áurea de rei, de poder, de guerra e de conquistas. E depois a poesia de sentimento humano, de lamento, de recordações”. Nele, diz, “vemos como que a queda de um império, e também a natureza humana”. Exclama: “É magnífico poder fazer música para estes sentimentos”.

A música, novamente. Aquela que ouviremos no Lisboa e em Beja, fiel à intenção original. Séculos de história, agora. Filipe Raposo, o director musical, contextualiza. “O interessante foi juntar três territórios no mesmo território. E o grande desafio é fazer deste o território do al Andalus no século XXI”.

Começaremos a viajar por ele este fim-de-semana. Preparemo-nos para nos descobrir nele.