Luanda "é um espectáculo"

A arquitecta e investigadora Ângela Mingas dá esta quinta-feira, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, uma conferência sobre a receptividade popular em Angola da arquitectura do período colonial.

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A arquitecta e investigadora Ângela Mingas Rui Gaudêncio

Luanda “é um espectáculo”, diz, de sorriso rasgado, a arquitecta e investigadora angolana Ângela Mingas, lembrando-se da agitação, das suas avenidas favoritas, do seu trabalho como activista social de megafone em punho a falar da importância do património arquitectónico, enquanto a cidade serpenteia caótica à sua volta. Conhecida pela baía “bilhete postal” ou pelos musseques e pelos bairros degradados, Luanda é, sim, “uma cidade construída pelo colonial”, diz Mingas, que hoje dá a sua conferência sobre a Receptividade popular em Angola do património arquitectónico do período colonial.

Associada à exposição África – Visões do Gabinete de Urbanização Colonial (1944-1974) que está até 28 de Fevereiro na Garagem Sul do Centro Cultural de Belém (CCB), a conferência conta ainda com a palestra de Monique Eleb sobre as Experiências arquitectónicas da França colonial. A exposição, comissariada pela arquitecta e investigadora Ana Vaz Milheiro, mostra pela primeira vez o acervo do Gabinete de Urbanização Colonial e seus sucessores em cinco países africanos e mostra como aquela arquitectura de programa político tinha sentimentos – o colonizador queria reconhecer-se no país ocupado e criava-se assim uma dimensão de afectividade. Mas será recíproca? Depois do fim do Estado Novo e da independência – e da guerra –, o que resta desta arquitectura em Luanda, a “jóia da coroa” do império, como lembra Ângela Mingas, e como vivem os luandenses com ela?

Especialista em património arquitectónico, Mingas não tem dúvidas em apontar a capital angolana como “caso laboratorial, o foco de estudo do ponto de vista urbanístico e arquitectónico em Angola. Porque não há outra. Luanda tem um traço na sua personalidade, na forma como o cidadão lida com a cidade que é muito fenixiana – a cidade destrói-se e constrói-se desde que foi fundada” em 1576. Tal como a experiência do Gabinete de Urbanização Colonial foi única em relação aos seus congéneres europeus, também a posição arquitectónica de Luanda na presença portuguesa nos países africanos é especial.

Para a investigadora, “Luanda tem uma dimensão, uma monumentalidade… não tem nada a ver com Maputo, Praia, Bissau. O que significou [no império português] em termos de investimento e do ponto de vista arquitectónico é visível”. Entre musseques, periferia ou a baía milionária, “o grosso da cidade é todo construído na época colonial. Luanda tem uma escala superior em todos os aspectos às outras cidades portuguesas da época colonial e tem também uma expressão morfológica de maior impacto, a ideia de poder e de força está associada à cidade de Luanda e não às outras”, defende.

Na conferência, às 16h30 no Pequeno Auditório do CCB (com entrada livre), Ângela Mingas vai falar do que trabalhou não só na dimensão académica, como professora e investigadora, mas também como activista social, diz-nos. Espera que a sua apresentação “seja no mínimo um ponto de partida para a discussão". "Cheguei à conclusão de que não há pretos e brancos, há cinzentos que podem ser vistos por múltiplas perspectivas”, explica. Exemplo: o edifício do Banco Nacional de Angola. “Luanda tem até hoje como grandes ícones da cidade os objectos [monumentais] da arquitectura colonial, quer do período da escravatura (séc. XVI a XIX), quer do período colonial e o ex-líbris é o Banco Nacional de Angola (BNA), um edifício absolutamente fascista, Estado Novo, com todos os elementos neoclássicos, com os cânones de poder greco-romanos… e ninguém toca nele. E tanto não se toca que até a Assembleia da República é uma cópia do BNA”, nota.

Para Ângela Mingas, isso espelha o paradoxo que é a convivência “surpreendentemente pacífica” com o legado do colonizador. “Há uma relação de ideia, não com a colónia mas com o significado do objecto que não é a de era colonial, mas de poder. E isto transfere-se para todos os edifícios que existem à escala monumental – a ideia por trás é o que os faz prevalecer [na capital angolana].” Mas a preservação obviamente não é total, nem por directiva política, nem pela vivência da cidade. “Luanda tem processos de ruptura com o que fisionomicamente é o passado” desde a sua fundação, desde os primeiros contactos com os navegadores portugueses ou com o Império do Congo. Séculos passados e Luanda está "a viver a terceira destas grandes leituras de paisagem da cidade”, depois do modernismo dos anos 1950 em que, segundo Mingas, a cidade seguiu “ao pé da letra” o axioma de Le Corbusier que diz que para construir o futuro é preciso romper com o passado. “[Agora] estamos numa fase pós-modernista, republicana, independentista. Há um movimento político que determina uma mudança e surpreendentemente Luanda rasga. Ela mantém uma personalidade humana, mas enquanto paisagem, cenário urbano, há ali um processo, uma luta.”

E nessa luta há vítimas. As do quotidiano, ou, como descreve Mingas, as casas “do João, da Maria e do José”, a arquitectura da escala humana – “aquela que de facto constrói uma ideia de cidade” – “vem sendo depredada desde os anos 1940/50”. Os sobrados construídos até ao século XIX com madeiras do Brasil, “as casas típicas que são uma mistura entre a casa do pescador de Luanda e a casa portuguesa”, “os casarões de escravos que resistem, ainda com grilhões nas paredes”, são testemunhos históricos que “estão a sofrer uma predação do mercado imobiliário que está a reconstruir a paisagem da cidade”. Das pequenas casas nascem prédios, fruto da pressão imobiliária da cidade mais cara do mundo. O Estado protege os grandes edifícios, diz Ângela Mingas, e classificou (depois da independência) as pequenas casas históricas, mas “a lei do mecenato é muito recente, a lei do património cultural é de 2005 e não tem regulamento. Até a noção da multa, de programas de apoio, não existe”.

A sua cidade é não só “um espectáculo” de vida, “bipolar” ou uma “jóia”. “Luanda? Luanda é o máximo”, gesticula Ângela Mingas em vésperas da conferência. E conclui que as pessoas são centrais numa cidade que foi construída e destruída. Esvaziada pelo 25 de Abril e preenchida pela população até aí na periferia e pelos “grandes internacionalistas proletários, cubanos, russos e companhia”, estagnada durante a guerra civil e agora cheia de angolanos e de estrangeiros que procuram o Eldorado africano. A capital “preserva o seu cenário, muda os actores” e todos mudaram algo nela. “O que é o património para esta gente?”, pergunta-se a investigadora. “Se calhar o que é património é mais o estilo de vida, a personalidade de Luanda, porque este cenário vai-se partindo e construindo, mas o luandense atravessa-o."
 
 
 
 
 
 
 
 

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