Sombra e o sol

Retrato de um bairro da Reboleira, em percentagens indefinidas de “teatro” e de “vida”, sem ceder à tentação do “documento social”, trocado por algo de mais sonhador

Até ver a Luz é a primeira longa-metragem do realizador suíço-português Basil da Cunha, depois de um punhado de filmes de formato curto que deixaram rasto em festivais importantes mas não chegaram ao circuito comercial nacional. É um filme “de bairro”, em todas as acepções da palavra. Foi rodado num bairro da Reboleira, nos arredores, nem por isso muito bem afamados, de Lisboa, de onde praticamente só sai no fim (e para “ver a luz”), com o concurso de actores amadores recrutados no local, num processo criativo que Basil da Cunha descreveu, em entrevistas, como sendo “colectivo” - ou maneira de ser também um filme “deles”, dos habitantes do bairro. Este ponto de partida e esta atitude (querer fazer com que o filme nasça “de dentro”) aproximam-se de uma tangente a muito do que Pedro Costa fez, de Ossos em diante, com o bairro e os habitantes das Fontaínhas, e nem é difícil encontrar outro ponto de contacto (com um filme como Ossos, justamente) no tratamento do som ambiente, feito de camadas que se sobrepõem (televisores ligados, conversas, ruídos domésticos) e assim traduzem a “porosidade” das casas e dos espaços do bairro, uma textura sonora que é um dos aspectos mais conseguidos de Até ver a Luz. Até porque é um som de um realismo falsamente “naturalista”, pelo contrário muito elaborado, muito fabricado - ninguém julgue que é mera coincidência o facto de às tantas se ouvirem, de um televisor, os diálogos de um filme de samurais de Akira Kurosawa (José Luís Guerin, no seu “filme de bairro”, En Construccion, utilizava um filme de Hawks, Na Terra dos Faraós, com um propósito semelhante).Não é mera coincidência porque Até ver a Luz, no fundo, é um filme de “samurais” (Basil da Cunha até o descreveu exactamente assim) mesclado com filme de gangsters, encenado e representado em jeito de teatro amador, na melhor acepção do termo. Dos samurais de Kurosawa e dos gangsters do cinema americano, das “vizinhanças” de Spike Lee (e dos seus “filmes de bairro” como Do the Right Thing) e das actualizações dessas tradições de samurais e gangsters que encontramos nalguns Takeshis Kitanos ou no Ghost Dog de Jim Jarmusch - que são estas duas, finalmente, as referências que mais nos cruzam o espírito durante o visionamento deAté Ver a Luz. Ainda assim, não é a pista completa: se as peripécias do protagonista Sombra, e as suas manobras para arranjar o dinheiro que deve ao “gang” quase burlesco que anda atrás dele, são importantes, tão importantes como elas são as “paragens”: as cenas de refeição, as discussões sobre coisa nenhuma, os intróitos com personagens que, estando ali, pouco ou nada têm a ver com o círculo duvidoso em que se movimenta Sombra e os seus amigos/inimigos (o encontro com a “tia”, ou a miudita que ficará depositária do lagarto de estimação de Sombra). É por aí que se fecha o círculo, se compõe o retrato do “lugar”, em percentagens indefinidas de “teatro” e de “vida”, sem nunca ceder à tentação do “documento social”, trocado por algo de muito mais sonhador: a luz do sol, mas também o céu, porque é pelos telhados da Reboleira que mais andam estes “gatos-samurais”, estes “cães-fantasma”, de Basil da Cunha.

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