Natal de natais

A preparação deste texto desencadeou um breve exercício de etnografia doméstica. No meu arquivo visual de fotografias de infância, procurei rastos do Natal. Não abundam.

 

A foto mais antiga transporta-me a um cenário reconhecível (aí pelo final dos anos 60, ou início dos 70): à porta das lojas da Baixa lisboeta, montado num burro (na falta de renas), estou ao lado de um Pai Natal. Uma árvore de Natal de cartão serve de cenário. O Pai Natal tem uma barba falsa, óculos na ponta do nariz, um balão na mão (findo o instante da foto, talvez tenha passado para a minha posse). Em cima do burro, a criança fotografada vestia um casaco com botões metálicos. O reflexo do flash criou acidentalmente uma fonte de brilho intenso, como uma estrela. Num brevíssimo exercício de antropologia visual, encontrei alguns dos principais sedimentos da moderna ritualidade do Natal.
 
Estas festividades, como hoje as conhecemos, sofreram amplas remodelações em dois momentos históricos: refiro-me à Inglaterra vitoriana e à América de Roosevelt. No século XIX, o Natal incorporou a celebração burguesa das virtudes públicas e o fascínio pelo sucesso e bem-estar económico das famílias. A sociedade do séc. XIX, atingida pelas mudanças brutais provocadas pelos processos de industrialização, recolhe-se no lar, reconstruindo aí uma narrativa de harmonia. Esta narrativa do Natal moderno inclui a empresa de moralização do mundo do operariado (procurem-se os pobres virtuosos nos contos de Charles Dickens).

Neste itinerário, descobre uma nova recomposição das esferas do público e do privado: a celebração privada da harmonia familiar articula-se, na cena pública, com as práticas da dádiva. Numa sociedade dualista, cujo crescimento económico era acompanhado pela emergência das modernas bolsas de pobreza, e onde crescia também a perceção do risco e da insegurança, as festividades do Natal permitiam imaginar um remédio para a injustiça social, por via da dádiva aos mais pobres. No espaço doméstico burguês, a dádiva tem como destinatário a criança, transportando a experiência do dar sem receber e facilitando o jogo subtil das relações intra e intergeracionais. Nesse processo, as crianças são verdadeiros "passadores" simbólicos. Estamos perante a trindade moderna do Natal: família, infância, caridade.

O Natal, no que o descreve como ritual e civilidade familiar, foi acompanhado pela expansão de uma iconografia, de um mobiliário, que vai homogeneizar os recursos imagéticos disponíveis, abrindo espaço para o consenso decorativo que hoje conhecemos. A expansão foi rápida, como o alargamento dos mercados.

Transportado por imigrantes, nas primeiras décadas do século XIX, feito herói americano em Nova Iorque, o último "descendente" de São Nicolau, tornar-se-á, a partir de 1920, uma atração dos grandes armazéns. Regressou, com o plano Marshall, à Europa. Não sem conflitos. Claude Lévi-Strauss escreveu, em Les Temps Modernes (1952), acerca de um episódio ocorrido em Dijon: Le Père Noël supplicié. O antropólogo disserta sobre a encenação de um sacrifício do Pai Natal, num contexto de reivindicação da autenticidade cristã do Natal. Mas o Pai Natal sobreviveu a este suplício, revivendo na continuada celebração da nova religião do mercado e da abundância.

A Europa do Sul, periférica em relação à centralidade deste mercado, resistiu a este Natal moderno durante mais tempo. Quando revisitamos o arquivo de cantos da Natividade que dão corpo à 1.ª e 2.ª Cantatas de Natal de Fernando Lopes Graça, descobrimos um Natal com cenários e protagonistas diferentes. A narrativa cristã tem aí uma transcrição aculturada. Um traço particular do cristianismo, a humanização de Deus, permitiu que as representações do divino facilmente se ancorassem na escala do humano, doméstico e social, abrindo o campo do simbólico à permanente possibilidade de aliança entre a história santa e a trama humana. O presépio é o emblema mais evidente desta transcrição miniatural da narrativa cristã. A legibilidade deste universo foi muito afetada, nas últimas décadas, pelos processos globais de destradicionalização.

No mundo da romanidade em que o cristianismo antigo se expandiu, a celebração do Natal foi um instrumento de cristianização, re-significando cultos solares muito populares no Império. Mesmo num calendário cristianizado, subsistiram muitos imaginários diferentes que, de forma plástica, se combinaram. Esses sedimentos têm agora uma difícil legibilidade nas nossas sociedades. O tempo liso do mercado parece não dar espaço à narrativa e à genealogia, achatando o espaço social da memória. Como sempre aconteceu, o Natal sobreviveu mudando. Se o paradigma da abundância e do crescimento económico for substancialmente afetado, provavelmente o Natal conhecerá outras metamorfoses.

Sugerir correcção
Comentar