Memórias do Brasil em Portugal

Vinicius de Moraes escreveu, quando por cá andou, na segunda metade dos anos 60, uma canção pungente intitulada Saudades do Brasil em Portugal. Gravou-a em casa de Amália e ficou registada, para a eternidade, em disco (já lançado em CD). Como agora se anda outra vez a falar nessa quimera (e não apenas a falar, a praticá-la) que é o enlace Portugal-Brasil e vice-versa, talvez ajude umas memórias avulsas.

Podemos começar no almanaque do Tio Patinhas ou nas revistas infantis do Mickey ou do Pato Donald. Importadas do Brasil (a ponto de haver quem imaginasse que Walt Disney pudesse ser brasileiro), "traduziam-nos" o americano Uncle Scrooge ou Scrooge McDuck por Tio Patinhas e os sobrinhos trigémeos de Donald - Huey, Dewey e Louie - por Huguinho, Zezinho e Luisinho. E lá vinham palavras que não se aprendiam na escola mas de que rapidamente se descobria o sentido: pão-duro era avarento, caixa-forte era cofre, esporte era desporto, pamonha era palerma, cotidiano era mesmo quotidiano e um pilantra era um patife. Confusão? Nenhuma. Não tardariam a Turma da Mônica, o Bolinha e o Cascão, esses já genuinamente brasileiros. Depois vieram os desenhos animados dobrados no Brasil e as novas palavras passaram a ter som cantado. No cinema e na televisão. Na televisão até traziam marca: "versão brasileira, Herbert Richards". Sendo que o nome do tal Herbert Richards soava a tudo menos a Brasil.

Enquanto as crianças se entretinham nessa despreocupada aprendizagem, adultos liam Drummond, Manuel Bandeira, José de Alencar, Machado de Assis, Cecília Meireles, e ouviam Vinicius, Jobim, Elis, Nara, Chico Buarque, Elizeth Cardoso, Bethânia, Edu Lobo, Caetano, Simone, Paulinho da Viola (como ignorar Memórias Cantando?) e tantos outros que aos poucos se nos foram tornando familiares. A editora Livros do Brasil, fundada em 1944 por António Augusto de Souza-Pinto, para além de clássicos da literatura universal que no Brasil já tinham sido editados mas em Portugal não (como Steinbeck, Huxley, Camus, Malraux, Hemingway, Moravia, Capote, Kafka, Proust, Joyce) ia lançando, com precisão e bom gosto, obras de Jorge Amado, Lygia Fagundes Telles, Dinah Silveira de Queiroz, Erico Veríssimo, José Lins do Rego, Gilberto Freyre, João Guimarães Rosa, Joracy Camargo, Dário Castro Alves, Herberto Sales, Machado de Assis, Rachel de Queiroz. Os brasileiros obviamente sem "tradução" e os outros respeitando a ortografia do português europeu. Era um imenso Brasil que se abria, literalmente, em belas páginas diante de nós. Não havia, nessa altura, a conversa barata do "país irmão"; apenas curiosidade, interesse natural e gosto pela arte.

Depois vieram o cinema de Glauber, a presença (saudosa) de Boal e os ecos de tudo o que ficara para trás, de Carmen Miranda ao triunfo de Amália no Rio. E Eugénia Melo e Castro a provar-nos que era possível vencer e ser aceite no Brasil sem imitar os brasileiros, ela que sempre manteve a pronunciação portuguesa nos muitos trabalhos e duetos que foi fazendo com os maiores nomes da música brasileira. E, aos poucos, a presença regular nos palcos portugueses de Caetano, Milton, Bethânia, Ney Matogrosso, Simone, Ivan Lins e tantos outros, com o empenho e a proximidade de nomes como José Nuno Martins, na TV e na rádio. Sendo que, antes, já por aqui haviam cantado Vinicius, Elis, Chico Buarque, Bethânia ou Caetano e Gil rumo ao exílio (num documentário que o DocLisboa mostrará, Tropicália, vai ser possível rever o inesquecível momento em que ambos actuaram, juntos, no programa Zip-Zip da RTP, em 1969).

Ah!, e no meio de tudo isto as telenovelas. A começar pela Gabriela (Jorge Amado em versão têvê), que agora regressou "modernizada". E com elas as jararacas, os jagunços, as babás, os urubus, as xepas, todo um léxico inesgotável para português ouvir e aprender a entender. E vieram os duetos forçados, as amizades sinceras, o muito que havia para dar e receber em doses fatalmente desiguais.

Agora, como se nada disto tivesse existido, depois da mancada (sim, sabemos bem o que significa) do acordo ortográfico, vêm as girândolas do Portugal-Brasil e Brasil-Portugal, com muito gugu-dada proto-lusófono, como se fôssemos analfabetos ou tivéssemos andado todas estas décadas adormecidos. É uma pena, voltamos à estaca zero de cada vez que queremos, simplesmente, dizer olá.

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