Nova Iorque está na rua

Foto

A reconversão do High Line, uma linha férrea desactivada que durante décadas foi uma cicatriz na pele da cidade, criou uma nova febre do espaço público - e um novo circuito artístico. Em Nova Iorque, o regresso aos parques é também um regresso à arte pública, e às suas infinitas possibilidades de intervenção

Esculturas monumentais, animais coloridos, sons da selva - estes são apenas alguns dos sinais da arte pública que ocupa os parques de Nova Iorque, servindo os turistas que descobrem a cidade pela primeira vez, os residentes que a encontram na sua rotina e os artistas - todos contribuindo para o debate sobre a reconversão de uma grande cidade e dos modos de a habitar.

Principalmente durante a última década, Manhattan tornou-se mais verde, beneficiando de novas áreas à beira-rio e de parques que fazem a metrópole respirar a outro ritmo. Uma transformação que tem acontecido passo a passo, dando uso a espaços abandonados, às vezes fazendo surgir árvores onde só se via cimento. Há flores e tapetes de relva em lugares inesperados, e instalações de artistas locais e internacionais que revitalizaram o acervo de arte pública da cidade. Apesar da extensão e do valor do seu programa cultural, o Central Park está longe de ser exemplo único; a cidade dispõe agora de uma infinita quantidade de parques com várias dimensões e projectos artísticos.

Nova Iorque já tinha tido destes pequenos milagres: quando o Bryant Park reabriu em 1992, foi como se nunca tivesse sido um dos locais mais perigosos da cidade, nos anos 70. Contudo, a nova vaga de renovação urbana tem trazido não só novos espaços verdes, mas programas de arte pública associados. É o caso do High Line, que inaugurou a primeira secção (da Gansevoort Street até à 20th St.) em 2009, e passados dois anos a secção que vai de West 20th St. até West 30th St.; a cidade espera agora a renovação do último troço da linha férrea que entre 1934 e 1980 transportou carne para o Meatpacking District, e produtos agrícolas para as fábricas e os armazéns do West Side.

Salva da demolição pelo movimento Amigos do High Line, fundado em 1999, esta antiga cicatriz de Nova Iorque grita agora a plenos pulmões a possibilidade de reinvenção de uma cidade. Mais de dois quilómetros de espaço devolvido ao público, como uma varanda sobre a rua, o Hudson e o skyline. Mas uma varanda aberta a performances e exposições, através de um programa de arte pública - o High Line Art - que convida os artistas a pensarem formas de ocupar um espaço singular e de dialogar com a comunidade e com a paisagem urbana.

O High Line Billboard é um desses espaços, no cruzamento da West 18th St. com a 10ª Avenida. Aí se encontra Women, uma enorme fotografia de Elad Lassry, quinta de uma série de instalações iniciada em Dezembro. É uma imagem totalmente desvinculada do contexto: duas mulheres de igual, observando-nos. A artista israelita, radicada em Los Angeles, "aborda a fotografia com uma sensibilidade escultural, criando imagens que destacam o acto de olhar", diz Cecilia Alemani, a curadora do High Line Art. Essa sensibilidade continuará pelas redondezas mesmo depois de 7 de Setembro, data em que Women abandonará o High Line; precisamente nesse dia, o The Kitchen, um dos mais proeminentes espaços da cena nova-iorquina, inaugurará uma individual de Lassry, Untitled (Presence).

Caminhando ao longo do High Line, encontramos mais seis projectos de arte pública: dois filmes (One11 e 103, de John Cage; e The River that Flows both Ways de Spencer Finch), uma instalação sonora (Untitled - Good & Bad, de Uri Aran, que transforma uma parte do High Line numa selva imaginária), e exposições de escultura e pintura. Entre arbustos de vários tons de verde, começamos a vislumbrar um mundo mágico de mini-esculturas, e rapidamente esta descoberta se torna um jogo para encontrar as seis obras (Oliver Laric, Alessandro Pessoli, Tomoaki Suzuki, Francis Upritchard, Erika Verzutti e Allyson Vieira) instaladas em espaços invulgares, entre o início e o fim do percurso. As pequenas criaturas fazem parte de Liliput, a primeira exposição colectiva de escultura no High Line. Mantê-la aberta um ano (de Abril de 2012 a Abril de 2013) permite, diz Cecilia Alemani, "que, ao longo das diferentes estações, a natureza abrace as esculturas, transformando o que está a sua volta e servindo como um pano de fundo em fluxo contínuo".

Tomoaki Suzuki é um dos destaques de Liliput, para a qual criou Carson, um homem-miniatura cujo estilo urbano, conseguido através de umas calças justas e um casaco de cabedal, de alguma forma espelha os frequentadores do espaço. A colecção de miniaturas contradiz o modelo da escultura monumental, de resto também presente no High Line através de Lying Figure, de Thomas Houseago: um gigante de quatro metros e meio, sem cabeça, que descansa apoiado nos seus cotovelos sobre o trilho da linha férrea original. No final do percurso, Alive-Nesses: Proposal for Adaptation, de Charles Mary Kubricht, obriga os transeuntes a pararem para processar a informação visual: os contentores dos Rail Yards aparecem camuflados de preto e branco, entre o verde da folhagem do parque.

Grandes parques, pequenos parques

Apesar de o High Line ser hoje um dos mais bem sucedidos exemplos de intervenção artística no tecido de Nova Iorque, existe desde 1967 um programa de arte pública para os parques da cidade que tem estimulado a relação do público com a arte e o meio urbano, e funcionado também como serviço educativo, dirigindo-se às crianças que ali brincam e que são atraídas pelas instalações interactivas ou pelas cores vibrantes dos objectos.

Foi aliás de uma parceria deste programa, gerido pelo New York City Department of Parks & Recreation, com a galeria de arte Marlborough que surgiram as Walking Figures que encontramos ao chegar à Dag Hammarskjöld Plaza. Dez homens sem cabeça e sem braços, da artista polaca Magdalena Abakanowicz, que parecem caminhar numa mesma direcção, avançando como um exército. Dag Hammarskjöld, o diplomata sueco que deu nome à praça, dizia que "nunca se deve olhar para baixo para testar o terreno antes de dar o próximo passo; só aquele que mantém o olhar fixo no horizonte distante encontrará o caminho certo". Parece a citação perfeita para enquadrar os gigantes que se preparam para a acção, "olhando o horizonte".

Um dos aspectos mais fascinantes de Nova Iorque é que a arte pública pode ser encontrada tanto nos parques mais centrais como nas pequenas manchas verdes que ocupam menos de uma rua em bairros como o Soho ou Tribeca - e tanto há lugar para artistas conceituados como para artistas emergentes. O Madison Square Park faz encomendas a consagrados desde 2004, tendo apresentado até agora 20 novas instalações. Este Verão foi a vez de Charles Long, com Pet Sounds. O artista de Los Angeles criou uma instalação sonora interactiva, com grandes tubos de cores que ondulam numa mesma direcção mas sugerem diversas associações: "O meu interesse recorrente pelo estranho está totalmente presente em Pet Sounds, onde algo tão familiar como um corrimão se transforma numa bolha inominável com uma presença física muito forte e algum poder de diálogo com o sentido somático do espectador. Os sons e as formas esculturais relacionam-se com a fisicalidade da pessoa que está a tocar o trabalho e por extensão com aqueles que estão a observar", explica Long. É toda uma experiência física e auditiva: enquanto as pessoas e os seus animais de estimação usufruem do espaço, Long pretende "intrometer-se no seu inconsciente".

Ficar na mente dos visitantes era também um dos objectivos pretendidos por Debbie Landay, presidente do Departamento de Conservação do Madison Square Park. "A arte visual e a música têm uma incrível capacidade de permear a psique pública e nós esperamos que Pet Sounds fique com os visitantes durante algum tempo". Depois de Pet Sounds - que pode ser vista até 9 de Setembro -, o espaço será ocupado por Buckyball, de Leo Villareal, a partir do final de Outubro. Não é a primeira vez que Villareal expõe no espaço público nova-iorquino. Na estação de metro de Bleecker Street na linha 6, direcção Uptown, é possível ver Hive, uma instalação permanente, montada no tecto, com cores e jogos de luz que mantêm os passageiros entretidos enquanto esperam pelo metropolitano.

Para o Madison Square Park, Villareal vai criar uma escultura de luz com nove metros de altura. Debbie Landau acredita que "Buckyball se adapta à paisagem única do parque, e partilha as cores mutáveis e a luz do Outono". A relação das obras com as estações do ano parece ser um elemento importante na escolha dos projectos para os diferentes espaços: Pet Sounds, com o seu lado interactivo, apareceu na altura em que as pessoas passam mais tempo no parque, e ao caminhar pelo Soho encontramos outra homenagem ao Verão, que ficará apenas até 23 de Setembro em Petrosino Square, um parque pequenino, renovado recentemente, que serve de refúgio da energia e do trânsito desta área da cidade. Chegando à esquina da Spring Street com a Lafayette, mesmo a uma certa distância conseguimos ver a touca cor-de-rosa da nadadora de Survival of Serena, uma escultura de Carole Feuerman que produz um efeito de relaxamento, tal como o próprio parque, convidando quem por ali passa a fazer uma pausa.

De volta à rua

A transformação da cidade está em expansão. Depois do High Line foi a vez do Brooklyn Bridge Park, que actualmente abrange 34 hectares nas margens do rio East, de Brooklyn Heights até Dumbo, com vista para Manhattan - seguramente uma das mais importantes aquisições para o espaço público da cidade. A primeira iniciativa, antecipando um programa de arte pública no parque, foi a instalação de Yoga (1991), peça em aço do artista americano Mark di Suvero, em Dezembro do ano passado. Na altura, Regina Myer, presidente do Brooklyn Bridge Park, explicou a importância do acontecimento: "Mark di Suvero é um artista extraordinário e um verdadeiro visionário da beira-rio de Nova Iorque. É uma honra receber Yoga com as suas linhas elegantes e a sua presença majestosa."

Já este ano, o parque recebeu a sua primeira obra expressamente concebida para o novo espaço. People, de Oscar Tuazon (artista americano a viver em Paris), é um conjunto de três esculturas inspiradas pela criatividade improvisada dos bairros urbanos e foi financiado pelo Public Art Fund, que dinamiza a arte pública em Nova Iorque desde 1977. Em exibição até Abril do próximo ano, no Pier 1 (entrada pela Furman e Old Fulton Street), People responde à paisagem do parque, usando materiais naturais e industriais que exploram as ideias de arquitectura, trabalho e reinvenção. As figuras reflectem preocupações tradicionais como equilíbrio, volume e peso, mas relacionam-se com as pessoas pela sua escala e pela sua utilidade, servindo como lugar de descanso ou cesto de basquetebol improvisado. "De muitas formas, as obras são inspiradas pela energia criativa das ruas de Brooklyn", confirma Andria Hickey, curadora do Public Art Fund. "Foram concebidas numa escala humana como espaços para as pessoas as percorrerem ou jogarem. E porque as árvores em cada escultura são orgânicas, têm uma vida própria no local, mudando ao longo da exposição.

A expansão dos espaços verdes, associada a um programa que promove a arte pública contemporânea, está a mudar o modo como os nova-iorquinos usam os seus parques. O tema foi recentemente alvo de uma conferência internacional - Greater & Greener: Re-Imagining Parks for 21st Century Cities - em Nova Iorque, homenageando o progresso que a cidade fez nos últimos anos. Os "novos" espaços têm vindo a juntar-se ao emblemático Central Park e a todos os outros parques que servem os bairros da cidade, levando cada vez mais as pessoas para a rua e fazendo-as sentir que são parte de uma comunidade. Projectos semelhantes ao do High Line estão em curso em St. Louis, Filadélfia, Jersey City e Chicago, e há novos parques que se acredita poderem requalificar zonas específicas das cidades, como o Grand Park, inaugurado no mês passado na Baixa de Los Angeles.

Entretanto, Nova Iorque continua a reinventar-se e a trazer novos projectos para a rua, comprometendo os artistas numa redefinição do posicionamento da arte pública. Tatzu Nishi, um artista japonês, está a construir uma sala-de-estar no topo da estátua de Cristóvão Colombo, em Columbus Circle, até onde as pessoas poderão subir para ter uma nova perspectiva da figura - uma intervenção que tem suscitado críticas por parte de alguns grupos da comunidade italo-americana, que acusam o projecto de parodiar o explorador e banalizar a história.

Mas o director do Public Art Fund, o organismo que encomendou Discovering Columbus, considera que a reacção das pessoas será diferente quando virem o resultado, no dia 20 de Setembro. "O trabalho de Nishi tem tudo a ver com chamar a atenção e oferecer ao público a possibilidade de acesso a monumentos urbanos, estátuas e detalhes arquitectónicos que normalmente não estariam ao seu alcance, e apresentá-los de uma nova forma, dando-lhe relevância contemporânea e abrindo os nossos olhos para algo que pode estar esquecido. Este não é um projecto histórico. É importante perceber que este é um projecto de arte contemporânea, a visão de um artista", argumenta Nicholas Baume.

O primeiro trabalho de Nishi nos Estados Unidos conseguiu provocar uma reflexão sobre o papel da arte pública antes mesmo de estar instalado. Só por isso, já acrescentou valor à leitura da cidade.

Sugerir correcção
Comentar