Torne-se perito

Hungria reaviva fantasmas europeus de entre guerras

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Miklos Horthy (à esquerda) ao lado de Hitler numa visita à Alemanha em 1939 Hulton-Deutsch Collection/CORB

A crise financeira, o nacionalismo, a mudança da lei eleitoral, a retirada da autonomia dos magistrados e do banco central ou os limites à liberdade de imprensa evocam a ditadura de Miklos Horthy

Em 1977, Ingmar Bergman estreou O Ovo da Serpente, que nos mostra a Alemanha nos primeiros anos da República de Weimar: um país destroçado pela I Guerra Mundial e onde a inflação se descontrolara de tal modo que as pessoas tinham de sair de casa carregadas com malas de viagem cheias de notas para conseguir comprar um pedaço de carne de cavalo. A sugestão do realizador sueco era a de que a depressão económica e o desemprego tinham chocado o ovo do qual nasceria a serpente do nazismo, contribuindo também para agravar o ressentimento anti-semita que levaria ao Holocausto, já que muitos alemães acreditavam que os judeus estavam a enriquecer à custa da hiper-inflação.

Os fãs do sofisticado cinema de Bergman detestaram o filme, que lhes pareceu demasiado simplista, mas talvez convenha não esquecer demasiado depressa o aviso que este deixava: a depressão económica pode levar uma democracia liberal a transformar-se numa ditadura mais rapidamente do que gostaríamos de acreditar. Não aconteceu apenas na Alemanha de entre guerras.

Muitos dos que viram o filme, ter-se-ão lembrado dele perante a deriva autoritária agora em curso na Hungria. O partido de centro-direita Fidesz, de Viktor Orbán, obteve mais de dois terços dos deputados nas eleições de Abril de 2010, o que lhe permitiu aprovar uma nova Constituição, que agora se chama Lei Básica, e fazer passar no Parlamento mais de 300 leis ao longo do último semestre, muitas delas violentamente criticadas pela oposição húngara e por observadores internacionais, como a nova lei dos media, que permite, por exemplo, a condenação de órgãos de comunicação que as autoridades considerem que atentaram contra a "dignidade humana" ou ofenderam a nação.

O casamento passa a ser a união "de um homem e de uma mulher", e a "protecção da dignidade humana a partir do feto" fica também consagrada na Lei Básica, mas as leis que têm causado mais preocupação nas organizações internacionais são as que reduzem a independência do poder judicial e a autonomia do Banco Central, e também a nova lei eleitoral, que prevê uma redução de metade do número de deputados e que promove a criação artificial de grandes maiorias. O sistema actual já permitiu ao Fidesz obter 68% dos mandatos com base numa votação de 53%. Um estudo citado pelo politólogo americano Alan Renwick estima que essa mesma percentagem de votos teria correspondido, segundo a nova lei eleitoral, a 76% dos lugares no Parlamento. E nos 24% que sobrariam, há que contar com os 10 por cento obtidos agora pelo Jobbik, um partido nacionalista e xenófobo que se considera socialista, o que condiz bastante com a doutrina dos partidos fascistas europeus dos anos 30.

Na nova lei eleitoral, só ficou pelo caminho a intenção de permitir aos pais que votassem pelos filhos menores. Mas o Parlamento aprovou uma lei que concede direito de voto às pessoas de etnia húngara que vivem no exterior e são cidadãos de outros países, o que, além de perverter o velho princípio que faz depender a representação da tributação (no representation without taxation) e vice-versa, promete criar problemas com a Roménia, a Eslováquia ou a Sérvia, onde vivem minorias húngaras significativas. Quer a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, quer o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, já escreveram a Orbán pedindo-lhe que reexamine alguns aspectos da nova Constituição e de outras leis agora aprovadas ou em vias de o ser. E um financiamento de 20 mil milhões de euros à Hungria -que está a semanas de assumir a presidência rotativa da União Europeia (EU) - foi bloqueado pela UE e pelo FMI até que sejam restabelecidas as garantias de independência do Banco Central do país.

O Governo de Orbán tem vindo a dizer que alterará o que for necessário para respeitar os tratados europeus, mas, para já, ainda não tomou nenhuma iniciativa nesse sentido. E começam a surgir sinais inquietantes, como a prisão de vários deputados que participaram, no passado dia 1, na manifestação contra a assinatura da Lei Básica.

A pergunta que todos se fazem é se a Hungria está a derrapar para uma ditadura, ou, na melhor das hipóteses, para uma democracia musculada ao estilo da Rússia de Putin. E os mais pessimistas questionar-se-ão ainda se o prolongamento da actual crise económica não promoverá o aparecimento de fenómenos semelhantes noutros paises europeus.

O Mundo pré-1914 e hoje

Há boas razões para se argumentar que é bastante precipitado agitar-se o espectro do regresso das ditaduras, ou mesmo o da guerra, à Europa. No entanto, não será descabido lembrar que o mundo de 1913 apresentava singulares afinidades com o nosso. A circulação internacional de capitais era percentualmente superior à actual, as exportações de países como a Alemanha ou a Inglaterra atingiam índices que só voltariam a ser alcançados na década de setenta, e as pessoas atravessavam fronteiras livremente. Vivia-se um tempo de confiança na cooperação internacional e no progresso. E todos sabemos o que aconteceu em 1914.

Mas o período de entre guerras, após a vitória do "mundo livre", é igualmente ilustrativo. O politólogo António Costa Pinto observa que "80% da Europa tinha, em 1919, regimes liberais", e que "em 1939, 60% da Europa, incluída a Central e Oriental, já tinha ditaduras de direita".

Um dos casos é justamente o da Hungria, que no início de 1919 era uma democracia, em Março do mesmo ano era já uma ditadura comunista, e por alturas do Verão se transformara numa ditadura de direita, essa bastante menos efémera.

Para o actual recrudescimento do nacionalismo húngaro - lembre-se que o pan-eslavismo sérvio foi uma das causas próximas da I Guerra Mundail - concorreram decerto muitos factores, entre os quais o estado de quase bancarrota em que o governo socialista, agora deposto pelo Fidesz, deixou o país. Mas não é possível percebê-lo inteiramente sem o ligar à turbulenta história húngara desde a dissolução do Império Austro-Húngaro.

Mesmo o facto, aparentemente sem qualquer relevância prática, de a Lei Básica agora aprovada ter mudado a designação do país, de República Húngara para Hungria, tem um peso simbólico. "Omitir a designação de República", observa o historiador Manuel Loff, "é uma estratégia típica dos anos 30", seguida por Pétain, ou por Hitler, que nunca precisou de revogar a Constituição da República de Weimar para que a Alemanha passasse a ser o Reich e ninguém falasse de República".

Nas últimas décadas do império Austro-Húngaro, a Hungria, que gozava de assinalável autonomia no seio da monarquia dual, praticou uma política sistemática de assimilação forçada dos romenos e eslovacos que viviam no seu território, bem como de várias outras minorias étnicas, provocando ressentimentos que ainda hoje perduram e que, no final da I Guerra Mundial, contribuíram para tornar inevitável o desmembramento do Império Austro-Húngaro.

Em Novembro de 1918, o país tornou-se uma república independente, mas teve de pagar um altíssimo preço em perdas territoriais. Dois terços do seu território foram distribuídos pelos países vizinhos. A Roménia recebeu a parte de leão, a Transilvânia, mas a Hungria perdeu também a Croácia e vários outros territórios para a Sérvia, e viu-se despojada da Ruténia sub-carpática e da Eslováquia para a então Checoslováquia. Um dos objectivos declarados do Jobbik, hoje a terceira força no Parlamento húngaro, é a recuperação destes territórios, cuja partilha foi consagrada em 1920 no Tratado de Trianon.

Loff lembra que o país conseguiu reaver a Ruténia, parte da Transilvânia e alguns territórios que integravam a Jugoslávia durante a II Guerra Mundial, mercê da sua aliança com a Alemanha nazi. Mas, novamente, teve de pagar um preço: o de participar, ao lado dos exércitos de Hitler, na desastrosa campanha da Rússia.

Para Loff, a nova lei que concede direito de voto às minorias húngaras dos países vizinhos é uma actualização do jus sangüinis, o direito de sangue, que "os húngaros definem de forma particularmente agressiva face aos seus vizinhos, com quem ainda hoje se dão mal, como a Roménia, a Sérvia ou a Eslováquia".

Após a proclamação da República, em 1918, a Hungria foi liderada pelo governo democrático do conde Mihály Károlyi, que fez um pouco o papel de lebre, como Kerenski na Rússia. Em Março de 1919, perdeu o poder para a chamada República dos Conselhos, dirigida pelo judeu comunista Béla Kun, que impôs na Hungria uma ditadura do proletariado à imagem soviética. Derrotado pela ofensiva romena e pela constituição de um governo contra-revolucionário, liderado pelo almirante Miklós Horthy, Kun refugiou-se na URSS, onde acabou por ser eliminado durante as purgas estalinistas. A caracterização do regime de Horthy, que iria durar até à II Guerra Mundial, ainda hoje é fonte de controvérsia. "Nos encontros académicos internacionais há sempre discussão quando se integra a Hungria de Horthy nos regimes fascistas", diz Loff. "É uma espécie de franquismo", acrescenta, "mas Horthy, ao contrário de Franco, restaura uma monarquia sem rei e ele próprio se assume como regente".

Costa Pinto recorda que "a ditadura de Horthy coexistia com um parlamento eleitoralmente controlado e permitia alguma liberdade partidária", estando "próximo daquilo a que agora chamamos um regime híbrido, como o que hoje existe na Rússia".

No início da II Guerra Mundial, a Hungria começou por se manter neutral, mas no final de 1940 aliou-se à Alemanha nazi. Horthy, no entanto, e apesar de o seu governo ter promovido a repressão dos judeus - Arthur Koestler foi um dos intelectuais judeus que deixou o país nesta altura -, nunca foi ideologicamente nazi e procurou sempre subtrair a Hungria ao domínio alemão, o que conseguiu até 1944, quando Hitler ocupou o país. Este estranho almirante de um país sem mar - fora comandante da Marinha do Império AustroHúngaro - foi então preso pelas SS e levado para a Alemanha. Sobreviveu, contudo, à guerra e ainda pôde desfrutar de um ameno exílio em Portugal, no Estoril, onde veio a morrer em 1957.

Governada no final da guerra pelo fascista Szalassy, do movimento dos Cruzes-Flechas, a Hungria iria dar a sua contribuição para o Holocausto, matando e deportando um número significativo de judeus. Loff lembra que o anti-semitismo europeu começou por ser "sobretudo austríaco e húngaro" e que "a Hungria, a Roménia e a Croácia mataram minorias étnicas, incluindo judeus e ciganos, em alguns casos ainda antes de os nazis o fazerem".

O destino da Hungria após a II Guerra Mundial, com a sua entrada forçada no bloco soviético, pode ajudar a explicar que Horthy seja ainda hoje visto como uma figura patriótica, cuja memória muitos húngaros veneram. Loff conta que, em 1989, num encontro internacional em Bolonha, conviveu com estudantes húngaros "para quem Horthy era quase um herói nacional". Em países como a Hungria e outros, que foram aliados da Alemanha nazi e entraram em guerra com a URSS, argumenta o historiador, "o comunismo foi um regime imposto por um exército estrangeiro, o que mais facilmente os leva a tentar recuperar um passado anterior ao passado comunista que eles odeiam".

Costa Pinto admite que já existem hoje na Hungria "dimensões preocupantes" e que esta está a tornar-se "uma democracia de pior qualidade", mas nota que a deriva autoritária "é ainda muito inicial e reversível". Tanto mais, recorda, que a Hungria "é uma democracia plenamente integrada nas organizaçõe sinternacionais, como a União Europeia ou o Conselho da Europa", e que estas instituições "dispõem hoje de uma significativa capacidade de condicionamento, através de pressões económicas e outros meios. Loff também não prevê que "a Hungria esteja a um passo da ditadura", mas, perante as alterações constitucionais aprovadas e outros sinais exteriores, como "a prisão de deputados, as manifestações anti-semitas" e as notícias da criação de "milícias contra ciganos", acha que os passos que estão a ser dados vão todos nesse sentido".

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