"A Matemática dá poder às pessoas"

Há um mês, Jaime Carvalho e Silva, da Universidade de Coimbra, foi nomeado secretário-geral da Comissão Internacional para a Instrução da Matemática, a maior associação mundial dedicada ao ensino da disciplina. É o primeiro português no cargo. Por Maria João Lopes

O gabinete 2.3 do Departamento de Matemática da Universidade de Coimbra (UC) está forrado a livros. Há pilhas de papéis do chão ao tecto, em cima de mesas, estantes e cadeiras. Para Jaime Carvalho e Silva, é bom sinal. É sinal de que o gabinete tem vida.

Aos 54 anos, este investigador de Análise e História e Metodologia da Matemática já ganhou prémios por livros que escreveu e foi também autor dos programas da disciplina no ensino secundário. O docente, que acaba de assumir o cargo de secretário-geral da maior associação dedicada ao ensino da Matemática, alerta para a necessidade de se apostar na formação dos professores. E defende que quem ensina não pode parar. Não está a falar dele, mas podia.

Um dos objectivos da Comissão Internacional para a Instrução de Matemática é a partilha de ideias com todos os que se preocupam com o ensino da disciplina. O que é um bom professor de Matemática?

Quando falamos no professor de Matemática, não estamos a meter na equação os alunos, que são diferentes. Os alunos de agora são diferentes dos de há 50 anos. Os alunos das escolas centrais de Coimbra são diferentes dos da periferia. Em Portugal, são diferentes de Espanha. Um professor de Matemática pode ser bom num sítio e não ser noutro. Mas há algumas características: sabe muita Matemática, sabe comunicar, tem uma caixa de ferramentas pedagógicas para usar em diferentes situações, trabalha com os colegas, vai a encontros de formação. Sabe o que se passa na sua cidade, no país, no mundo. E está sempre a tentar ver qual é a Matemática que anda por aí e que pode usar como exemplo na sala de aula.

A Comissão Internacional para a Instrução da Matemática compara o ensino da Matemática a nível mundial, focando-se em diversos temas. Quais foram os últimos resultados?

Dos três últimos estudos, publicados nos últimos dois anos, podemos concluir que a tecnologia está a evoluir a uma velocidade tal que precisamos também de ser velozes para ver quais são as vantagens que podemos tirar para o ensino. Um outro estudo sobre desenvolvimento profissional diz-nos que um bom professor de Matemática não pode parar. O outro é sobre desafios matemáticos na sala de aula. Numa turma de 30 alunos, haverá um ou dois excepcionais, que acabam por ser esquecidos. Esse livro fornece pistas para o professor dar também algo aos alunos mais avançados.

Há países com melhor desempenho do que outros?

Quando dizemos melhor, estamos a usar uma palavra para classificar todo o sistema educativo de um país, que tem o básico, o secundário, o superior, o ensino profissional... Aquilo que os estudos internacionais fazem é concentrar-se num número de indicadores. O PISA [Programme for International Student Assessment, da OCDE], por exemplo, só estuda alunos com 15 anos. O objectivo é ver se são capazes de usar a leitura, a Matemática e as Ciências para tarefas a que o cidadão é chamado. Chegaram à conclusão de que Portugal não está muito bem. Estava no último grupo dos países europeus (com a Itália e a Grécia), a par da Rússia e dos Estados Unidos. Atrás de nós, estava a América do Sul, a Ásia menos abastada, as Filipinas, a Indonésia... A Finlândia estava em primeiro, o que, segundo um investigador finlandês, se pode dever ao cuidado na selecção dos professores. Lá, apenas admitem dez a 20 por cento das pessoas que se candidatam a professor. Tenho pena que, em Portugal, os resultados do PISA não sejam mais discutidos.

Defende que Portugal precisa de um forte investimento na formação de professores de Matemática e de mais tempo para o ensino da disciplina. Mais horas de aulas ou mais horas de estudo?

Mais horas de tudo. Não precisamos só de aulas. Há países como Singapura, em que, de manhã, os alunos estão na escola a ter aulas e à tarde estão a fazer trabalhos de casa com os professores, competições tipo olimpíadas, na Matemática e nas outras disciplinas. Não estou a dizer para copiarmos Singapura, eles têm aulas de meia hora, é uma estrutura muito peculiar, mas satisfaz esta característica: não são só horas de aulas e os trabalhos de casa não são feitos em casa.

Em Portugal, a qualidade dos docentes de Matemática não é a desejável?

No secundário, a qualidade é bastante boa. No segundo ciclo do ensino básico, não temos praticamente professores formados de raiz. No primeiro ciclo, a formação matemática dos professores é muito deficiente: são admitidos professores que podem ter terminado o 9.º ano reprovados a Matemática e não têm necessariamente formação matemática no secundário. O terceiro ciclo é uma mistura entre o segundo e o ensino secundário, a qualidade global não é tão satisfatória.

Neste momento, não estão praticamente a ser formados professores de Matemática. Este ano, só temos um a ser formado aqui [no curso de Matemática da UC]. Provavelmente, este ano, já começarão a faltar professores de Matemática. É uma generalização demasiado simplista dizer que há professores a mais. Durante alguns anos, formou-se mais do que as necessidades, mas isso não é negativo. O sistema não deveria chegar a uma altura em que tem que contratar todos os que existem, sem escolher...

Mas é por não haver pessoas interessadas na Matemática?

Não é isso. As pessoas entram num curso de Matemática e têm três vias: investigação, empresas e ensino. Se lhes dizem "o ensino está cheio", têm outras duas alternativas.

Um conselho eficaz para pôr uma criança interessada na disciplina...

Recomendo a leitura do livro O Diabo dos Números [Hans Magnus Enzensberger]. Foi escrito por um sociólogo, a mostrar aos matemáticos como é que devem comunicar. Pode ser lido a partir do 3.º, 4.º ano de escolaridade. Entre os oito e os dez anos. Podemos mostrar a beleza da Matemática nos diferentes níveis de ensino. Para o ensino secundário, já fiz várias vezes uma conferência sobre Como é que a Matemática ajudou os Aliados a ganhar a 2.ª Guerra Mundial?. Houve uma equipa de matemáticos que conseguiu decifrar os códigos alemães e, depois, os americanos, no Pacífico, decifraram os dos japoneses. Ganharam-se batalhas decisivas. É possível mostrar o poder que a Matemática dá às pessoas.

A tecnologia no ensino da Matemática é uma das áreas que o interessam. É importante, ou sem a tabuada nada feito?

A tecnologia não substitui a tabuada, a tabuada não dispensa a tecnologia. Para saber Matemática, uma pessoa tem que saber a tabuada, o que é um cubo, rectas paralelas... Mas também tem que saber usar a tecnologia. Quando comecei a leccionar, em 1976, não havia computadores a traçar gráficos. Havia um computador central na universidade, ninguém podia lá entrar, era muito sensível. A tecnologia veio dar mais possibilidades de trabalho. E a escola tem que preparar para esse mundo. Não é para substituir a tabuada ou outras coisas básicas. De algum modo, a tecnologia veio complicar o ensino, porque veio introduzir a necessidade de aprender mais, mas também veio ajudar, na medida em que permite visualizar, dar a dimensão do movimento, que ultrapassa o espaço bidimensional do livro. O computador também é um ecrã bidimensional, mas com o movimento temos outra dimensão.

O computador empobrece a criatividade do matemático?

Pelo contrário. Com a possibilidade que tem de simular situações, o computador veio aumentar o número de problemas que o matemático tem para resolver. Há revistas de investigação que apareceram nos últimos dez anos em que o que se publica não são os resultados, mas os padrões que ainda não têm explicação. O que é que o computador faz? Permite-nos rapidamente meter gráficos e tabelas num mesmo documento. O computador não limita absolutamente nada. As pessoas dizem que já ninguém multiplica dois números, um de três algarismos e outro de quatro, à mão... Pois não! Já ninguém anda em monociclos, as bicicletas tornaram-se superiores. Os monociclos eram divertidos, mas é a evolução natural... Não é a substituição dos cálculos mais complicados, que a máquina faz de forma mais eficiente, que tira a criatividade.

Hoje, o computador participa em todas as facetas da ciência. A actividade científica tornou-se, no fundo, sobretudo Matemática?

Sobretudo não direi, mas as áreas científicas usam cada vez mais Matemática. Uma controvérsia que não vi em Portugal diz respeito à última crise, que foi, em muitos países, atribuída aos matemáticos. Os modelos matemáticos da Economia, segundo alguns especialistas, foram mal usados pelos banqueiros. Estes disseram que os matemáticos lhes tinham dado fórmulas que não funcionam e os matemáticos ripostaram que um modelo matemático não é a realidade. Até há uma piada sobre isto: o dono de uma pecuária queria melhorar a produção de leite. Encomendou um estudo a um matemático, mas depois recusou-se a pagá-lo, porque achou que era um disparate. O estudo começava assim: "Suponhamos que uma vaca é uma esfera...". É o exemplo de um modelo matemático - uma simplificação da realidade. Cada vez mais, a Matemática é uma ferramenta de apoio à decisão de qualquer profissional. Um dos problemas mais difíceis de resolver é o clima. Os três computadores mais poderosos do mundo estão a fazer cálculos meteorológicos e não acertam. Esta invasão da Matemática por todas as áreas científicas faz com que seja preciso dominar, cada vez mais, ferramentas matemáticas. A Matemática que se aprende até ao nono ano não é suficiente para equipar um cidadão.

Onde é que costuma trabalhar? No café, no gabinete, no laboratório...

Trabalho muito no gabinete e em casa. De vez em quando, deito-me na cama, espalho os papéis... Não trabalho no café nem em sítios ruidosos, embora goste de música de fundo. De vez em quando, vou à biblioteca à procura de qualquer coisa inspiradora e fico lá encostado a uma prateleira...

Como é que se tornou matemático?

Não tinha nenhuma aspiração especial. Decidi estudar Matemática porque li dois livros, entre os 14 e os 17 anos, que me marcaram muito: As Curiosidades da Matemática e O Encanto da Matemática. Se não tivesse tido acesso a esses livros, eventualmente não teria ido para Matemática.

Qual é o problema matemático que mais o fascina?

Um dos que mais me interessaram é o Teorema das Quatro Cores: para colorir um mapa, bastam sempre quatro cores. Se for um mapa plano, por necessidade, nunca preciso de mais do que quatro cores. Países com fronteira não podem ser da mesma cor; se estiverem separados, podem. Demorou muito tempo a ser demonstrado. Nasceu há mais de 100 anos e só foi demonstrado nos anos 1970, usando o computador. Ainda hoje, não há uma demonstração só com papel e lápis.

Que problemas ocupam os investigadores a nível mundial?

Há muitos! O Instituto Clay, nos Estados Unidos, criou os prémios do milénio: sete milhões de dólares para sete prémios. [Quer] demonstrar os problemas mais importantes no fim do século XX. Um deles já foi resolvido, era a Conjectura de Poincaré. Também tem piada o problema da equação que descreve o movimento das águas a baixa profundidade, junto à costa. Não é fácil controlar o movimento das areias na praia. Andam sempre a meter pontões e esporões, mas a areia vai sempre para o lado errado. São postos a olho, nunca de forma científica. Seria muito interessante resolver essas equações, para poder controlar o movimento de fluidos, não vale só para a água. Quem conseguir resolver essa equação, ganha um milhão de dólares.

Há uma tradição na investigação matemática portuguesa? Em que é que somos bons?

É difícil dizer... Estivemos na frente da investigação matemática no tempo dos Descobrimentos. Os conhecimentos matemáticos permitiram fazer mapas e levaram a que os portugueses conseguissem navegar no oceano sem ver a costa, só com instrumentos astronómicos, o que é muito difícil. Fomos os mais avançados do mundo na altura. Mas a História de um país tem sempre altos e baixos. Hoje temos uma qualidade muito boa de investigação matemática em Portugal. As perspectivas são boas.

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