A cidade do desejo

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"Os polícias de Nova Iorque não são muito espertos". Por isto, só por isto, os Strokes auto-censuraram-se e cortaram a faixa do seu álbum de estreia, aquele que os pôs no mapa, em 2001. É que o 11 de Setembro, aquela data em que muitos advogam que começou esta década, não permitia desrespeitar as forças de segurança de Nova Iorque, aqueles que apanhavam os pedaços de uma cidade despedaçada. Chamaram-lhe o ataque ao coração da América. Mas aquilo não é o coração da América. Ouçam David Bowie: "This is not America". Aquilo é outra coisa. É, em parte, uma ficção.

Numa edição de Fevereiro de 1958 da extinta revista "Look" por vinte cêntimos de dólar os americanos podiam comprar um dossier de 40 páginas sobre a Grande Maçã, A Cidade que Nunca Dorme. Lá dentro estavam as suas mil caras - os recém-casados em lua-de-mel, a família rica de Park Avenue, os miúdos da Village, religiosos e até um cão. E, através da fotografia, sublinhava-se a vertiginosa arquitectura da cidade, o primeiro impacto entre Nova Iorque e o mundo.

Na exposição "Only In New York", o Museu da Cidade de Nova Iorque mostra mais de cem fotografias dos arquivos da "Look" que ilustram a mudança atravessada pela cidade entre 1945 e o final da década de 1960 - "um retrato da cidade quando ela conseguia a sua 'star quality' no palco mundial", descreve a directora do museu, Susan Henshaw Jones.

"Depois da II Guerra, a cidade era uma nova capital cultural e uma cidade de quotidianos, de pequenas dimensões, de bairros", comenta Donald Albrecht, curador de arquitectura e design do museu e um dos dois organizadores da exposição.

"Estas fotografias são importantes porque a 'Look' precede a televisão, não se vivia num mundo muito visual e havia uma fome por boa fotografia", refere Tom Mellins, o outro comissário e curador independente.

E, lá dentro, muitas figuras, gente que chegava a Nova Iorque e se reinventava.

Nova Iorque é uma cidade que, mais do que de postal ilustrado, é cidade do cinema, da música, da TV e da fotografia a preto-e-branco. Uma fantasia construída pelas artes, pelas imagens, o imaginário do tudo é possível.

Mas será essa Nova Iorque injusta como "Um Dia de Cão", disco como "Febre de Sábado à Noite", veloz como os táxis amarelos de "Sexo e a Cidade" ou dura como "Taxi Driver"? Promissora como cantava Sinatra, suada como "Wall Street", acutilante como o Empire State Building, taciturna como a declaração de amor de James Murphy em "New York I Love You, But You're Bringing Me Down"? Clássica como "An Affair to Remember", cheia de bairros rivais como em "West Side Story", esquiva como "Janela Indiscreta"? Urbana e múltipla como a desenham os Beastie Boys em "An Open Letter to NYC", escura, suja, dúplice, como nos "comics"? É certo, ali nasceu o expressionismo abstracto, ali pintou Jean Michel Basquiat, ali serigrafou Andy Warhol. Mas tudo isto já morreu. Como a "Look", que fechou portas em 1971.

Ali jaz uma cidade sobre a qual se ergueram outras tantas. E, na sua base, está Nova Amesterdão, os gangues de Nova Iorque, depois a imigração, sempre a imigração, na cidade em que se falam 170 línguas, que é a mais populosa da América (mais de oito milhões de pessoas só nos cinco "boroughs") e que no pós-II Guerra viveu uma etapa fundamental da sua solidificação como cidade mítica. E que hoje é um primor de "marketing", que por quatro dólares podemos trazer para casa em t-shirts brancas que se declaram: I love New York.

Sob e sobre as ruas

A exposição, como o livro-catálogo de mais de 200 páginas que pela primeira vez revela parte das 200 mil imagens que fazem parte do arquivo da revista, está habitada pela cidade. A cidade em que havia bairros, como Harlem e Spanish Harlem, com vidas corriqueiras, caseiras, com música. A cidade dos "speakeasies", do jazz, da dança de Katherine Dunham, do Copacabana, do boxe de Rocky Graziano, do olhar vaidoso de Brando em "Um Eléctrico Chamado Desejo".

E também a cidade do primeiro emprego de Stanley Kubrick, que vendeu aos 17 anos a sua primeira foto à "Look". Engolidores de chamas, bailarinos, supermodelos, amantes. Uma parte da exposição foca-se sobre o facto de os nova-iorquinos viverem parte da sua vida no metropolitano - "O que os nova-iorquinos tomam por garantido e que os visitantes acham espantoso é que há quase tanta actividade sob as ruas de Manhattan quanto acima delas", escrevia a "Look" em 1958, mostrando fotos da vida nos túneis - ou nas ruas. E com eles, o amor vinha para o espaço público.

Outra dedica-se a Times Square, local icónico por definição mas que há 20 anos era um antro de submundo. A praça de hoje feita de néons, baptizada em honra do "New York Times", era de Fred Astaire e dos produtores da Broadway nos anos 1920; nas décadas de 40/50/60, a noite era das coristas, o dia não era dos turistas - era a terra de ninguém. Mas, ainda assim, fornecia os sonhos de alguns: "Se olharmos para estas fotografias, às vezes ficamos com a sensação... esta imagem de duas pessoas de olhos esbugalhados em Times Square, é uma imagem de filme. Tem por trás a ideia dos jovens que vêm para deixar a sua marca, dos viciados no trabalho", diz Donald Albrecht ao Ípsilon. Para Albrecht, é tanto a cidade quanto as imagens que dela circulam que perfazem esse imaginário. Que faz com que quase todos que a visitam sintam que já lá estiveram.

"Estas imagens reforçam-se mutuamente. Leonard Bernstein escreveu um musical, 'Wonderful Town', nos 1950s, há esta fotografia da 'Look', há os filmes. Há um mito que está a ser entrelaçado e que tem sido reforçado pelos média em geral", confirma. Uma mesma história perpassa as imagens de "Only In New York" - os "go getters", os "achievers", a busca do sucesso. "Nova Iorque adora pessoas ambiciosas - devora-as", dizia Jann Wenner, editor da "Rolling Stone", à "New York Magazine", falando de quando chegou a Nova Iorque, em 1977, vindo de São Francisco. "A minha fantasia era que só iria a Nova Iorque quando tivesse uma audição para o 'Saturday Night Live'. Mas foi isso mesmo que aconteceu. Aterrei em La Guardia e o taxista foi pela ponte da rua 59. Olhei para a cidade quando atravessávamos o rio e fiquei em lágrimas", recorda o actor e comediante canadiano Mike Meyers.

Será a imagem, a ilusão de Nova Iorque só feita de ambição? Não só mas sobretudo, dizem os comissários. "Los Angeles também é assim, mas Nova Iorque é tão fotogénica... Está tudo ali. Em Los Angeles é preciso guiar", evoca Donald Albrecht.

"A cidade é teatro, é teatral e é também o espaço em que nos podemos teatralizar a nós mesmos", prossegue. "Isso ainda acontece hoje. O 'New York Times' tem um artigo dominical chamado 'The Evening Hours', só com pessoas vestidas à moda à noite, algo que é característico de Nova Iorque - a ideia de nos identificarmos com moda inusual, com ser distintivo". Tudo isto é favorecido pelo facto de esta ser uma cidade de peões. "Se me vestir de forma estranha, tenho a certeza de ser visto por alguém. A hipótese de nos exibirmos são muito maiores", remata.

Nos anos mais duros (fins de 1970 e 80), a cidade perdeu 800 mil pessoas. Nos anos 1990, já ganhou um milhão. Mesmo depois do 11 de Setembro, mesmo com a crise a afundar Wall Street, um estudo do Instituto Pew concluiu no primeiro semestre do ano que 45 por cento dos americanos com menos de 35 anos querem viver em Nova Iorque. O sonho ainda está vivo.

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