Um peixe chamado Juliana Snapper

Foto

Amanhã, no Trama, Juliana Snapper respira fundo e ganha fôlego para cantar - debaixo de água. A "operella" subaquática "You Who Will Emerge from the Flood..." é o objecto mais intrigante da terceira edição do festival, que decorre no Porto

Ela consegue pôr 60 desconhecidos, homens e mulheres (uma grávida incluída), a aquecer a voz de fato-de-banho e toalha de praia ao ombro na borda das piscinas do Clube Fluvial Portuense, logo no segundo ensaio de "You Who Will Emerge from the Flood...". Amanhã, pelas 22h, esperamos que os mesmos 60 voluntários mergulhem e se tornem numa espécie de equipa cantante de natação sincronizada, dirigida por uma maestrina que também canta. Debaixo de água.

Ela é Juliana Snapper, cantora e performer norte-americana de formação lírica com obsessões pontuais que resultam em performances, no mínimo, "sui generis". Filha de uma cantora de ópera, o universo lírico cedo deixou de ter segredos para Juliana, que estudou no Conservatório de Oberlin, na Califórnia, até se rebelar contra o tradicionalismo do meio. Importante, acredita, é experimentar todas as possibilidades "físicas e expressivas" da voz humana em situações extremas - mesmo que o radicalismo dessas experimentações conduza ao colapso da própria voz, como na performance "Judas Craddle", fruto de uma parceria com Ron Athey, em que cantava pendurada de cabeça para baixo. A monstruosidade é outro dos conceitos fundadores das performances de Juliana Snapper - as mesmas que ela situa "desconfortavelmente entre disciplinas".

Nas piscinas do Fluvial, no segundo de apenas quatro ensaios antes da apresentação ao público, Juliana Snapper e o compositor que a acompanha, Andrew Infanti, falaram ao Ípsilon de "You Who Will Emerge from the Flood...", um projecto que, além de envolver um grupo de voluntários da cidade onde é apresentado, tem uma outra particularidade: Juliana Snapper canta para a água, dentro de água. Quase que soa a brincadeira, juntar todas estas palavras na mesma frase e querer ser credível. Mas esta mulher loira e de lábios carmim, esta mulher dentro de um maiô preto ornamentado com uma flor que deixa descobertas as cornucópias tatuadas nos braços e nas costas, sorri muito e tenta explicar tudo. Não sabe dizer, exactamente, de onde surgiu a ideia de aprender a cantar dentro de água. Só sabe que de repente ficou "obcecada" e passou a dedicar muito tempo a estudar a melhor forma de o conseguir. Primeiro em banheiras e depois em piscinas, a cada vez maior profundidade para obter diferentes resultados. O segredo está em estudar, a partir do canto operático, uma consistente colocação de voz e o controlo da saída de bolhas de ar, de modo a integrá-las no seu aparelho vocal.

Com a ajuda tecnológica de microfones resistentes à água que captam os sons lançados sob a forma de bolhas de ar, e na companhia de dois homens encarregues de a trazer à superfície para respirar, Juliana Snapper encarna uma personagem rendida a um destino infeliz, interagindo com o coro. Andrew Infanti é chamado a explicar a narrativa desta "operella" (brincadeira com o universo da ficção científica): "É sobre uma criatura pós-humana que vive debaixo de água, o único ambiente em que imaginamos ser possível haver vida no futuro. Esta criatura está completamente sozinha, apenas acompanhada pela memória do que foi a humanidade". Sente-se tão ao abandono, submergindo e emergindo num sofrimento cheio de espectacularidade, que não sobrevive. E aqui entramos, claro, no território da tradicional narrativa lírica, ainda que Andrew procure inserir a componente emocional e trágica da performance no objectivo, comum à própria Juliana, de "reinventar os significados sociais da ópera". "Gosto muito de ópera, mas acho que é uma forma morta, que perde significados constantemente", justifica o compositor, numa clara cumplicidade com a cantora que também optou por abandonar a tradicionalmente rígida estrutura lírica. Cantar na água foi mais um passo, nada de extraordinário para esta mulher de obsessões únicas.

A cidade como personagem

"You Who Will Emerge from the Flood..." faz parte de um projecto mais abrangente, "Five Fathoms Deep My Father Lies", que Juliana tem vindo a desenvolver em espaços tão variados como casas de banho privadas, tanques ou grutas oceânicas, sempre moldando esta "operella" à tensão material entre a água, o ar e os espectadores. E é a especificidade de cada espaço e de cada público que torna cada performance singular, ainda mais no caso do espectáculo do Trama. Por se tratar do maior espaço em que alguma vez trabalhou, e também do menos intimista, as piscinas do Fluvial vão receber um espectáculo ímpar, com módulos pensados especificamente para a espectacularidade da grande escala.

Só do Coro Ensemble Vocal Pro Musica de Miragaia são 43 os voluntários, amadores, que responderam ao desafio lançado pela organização do Trama e mergulharam, literalmente, de cabeça neste desafio. A convocatória só dizia que teriam de aparecer preparadas para nadar e cantar em simultâneo, numa piscina grande e profunda; os 60 figurantes inteiraram-se da ideia do espectáculo pela própria Juliana, que faz questão de se envolver com os coros que orienta. No ensaio, se não soubéssemos o que se estava a preparar, quase poderíamos pensar que se tratava de uma aula de hidroginástica seguida de movimentos de natação sincronizada, numa coreografia aquática marcada pela portentosa voz de Juliana, com a cantora lírica que há nela a vir, literalmente, à tona.

Na quarta edição do Trama - Festival de Artes Performativas, que arrancou ontem e termina no domingo, a cidade do Porto transforma-se num palco em que as potencialidades experimentais das artes do espectáculo são exploradas em função da personalidade dos espaços que acolhem os espectáculos. O projecto de Juliana Snapper permitiu a integração do Clube Fluvial Portuense na lista dos parceiros deste festival e deu ao Trama a possibilidade de trabalhar um novo conceito, o da cidade enquanto personagem. "Trabalhar com voluntários das cidades por onde passo é uma tentativa de criar uma ligação com o público e, num plano mais abrangente, pode ser uma espécie de personalização da performance. Tem sido assim noutras ocasiões, com a criação da personagem da própria cidade. E isto é algo em que estou especialmente interessada".

O título desta performance - "You Who Will Emerge from the Flood..." - remete para um verso de "To Posterity", de Bertolt Brecht, um poema que Andrew diz ser endereçado a "sobreviventes de uma grande catástrofe". "Quase pode ser uma mensagem às gerações futuras", especula o compositor, "que certamente sobreviverão a desafios diferentes dos nossos". Eventualmente debaixo de água.

Sugerir correcção
Comentar