Uma história de resistência com final feliz (será?)

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Em Maio o antigo edifício do Banco Nacional Ultramarino, na Baixa Pombalina de Lisboa, recebe a primeira grande exposição de sempre do MUDE. Depois de três mandatos autárquicos de impasse e em ano de novas eleições autárquicas, a estratégia é de resistência activa

Uma verdadeira saga, a história do Museu do Design e da Moda (MUDE), para, chegados agora, a Fevereiro de 2009, entrarmos no antigo edifício do Banco Nacional Ultramarino, todo um quarteirão ao abandono numa das zonas mais nobres da Baixa Pombalina, em Lisboa, e começarmos a imaginar por fim a valiosa Colecção Francisco Capelo a sair das caixas e a voltar a ver a luz do dia.

Bárbara Coutinho, que em 2006 foi apontada para a direcção do museu por vir e que, entretanto, tem vindo a trabalhar em semi-invisibilidade, faz-nos uma visita guiada e fala pela primeira vez do projecto. Primeira paragem: um armazém nos Olivais, open space de mil metros quadrados com um pé-direito de cinco, luz suave e fria. Estantes repletas de mobiliário, caixas de transportadoras ainda fechadas e muitas filas de chariots para roupa: é aqui que ao longo dos últimos dois anos se têm conservado as mais de duas mil peças de design de equipamento e moda de um acervo único em termos nacionais e que se supunha que desde finais de 2007 estivesse instalado como museu no antigo Palácio Verride, em Santa Catarina.

Essa foi a promessa assumida por António Carmona Rodrigues, presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), quando, em finais de 2006, a colecção teve que sair do Centro Cultural de Belém, perante a transformação do antigo Centro de Exposições em Museu Berardo. Uma promessa que haveria de cair perante um sem-número de dificuldades, a começar pelas características do espaço - áreas fragmentadas, zonas de circulação exíguas, mau estado de conservação... - e a acabar nos problemas legais em que o edifício está envolto, um processo judicial que determinará se a CML poderia ou não ter-se tornado proprietária do palácio em 2003, quando o comprou à Caixa Geral de Depósitos, exercendo direito de preferência (o processo, em curso, foi lançado por um privado, Cornelis Eijrond, interessado na aquisição e posterior transformação do edifício em hotel).

O MUDE mergulhado então num semilimbo, a funcionar na quase invisibilidade numa pequena sala no Largo de Santo António à Sé e transformado num dos dossiers tóxicos da Cultura, problema sem solução ao longo de três mandatos autárquicos sucessivos. Em meados de Dezembro último, o executivo de António Costa fez aprovar em reunião de câmara a aquisição de um edifício alternativo: a antiga sede do Banco Nacional Ultramarino (BNU), 14 mil metros quadrados em oito amplos andares com entrada principal no número 24 da Rua Augusta.

Entramos.

O rés-do-chão é excepcional, mas também excepcionalmente difícil, quase inteiramente ocupado por um imenso e ondulante balcão de mármore negro e verde, ao centro de acesa polémica pública quando há alguns anos a Caixa Geral de Depósitos, proprietária do espaço, quis fazer obras de remodelação que implicavam a sua destruição. Para cima, nos restantes andares, nada: chão de cimento partido, roços abertos para passagem de fios que nunca vieram e paredes picadas até ao osso.

É com o edifício assim que o MUDE se vai apresentar pela primeira vez ao público, já a 8 de Maio.

Supõe-se que até 2011 a dupla constituída pelo arquitecto Manuel Caetano e o empresário Manuel Reis, proprietário de discoteca Lux, venha a transformar este corpo descarnado em espaço museológico, com zonas expositivas, reservas, um auditório, restaurante, cafetaria e lojas. Até lá, os arquitectos Ricardo Carvalho e Joana Vilhena assumem o desenho de exposição, com intervenções e requalificações temporárias do piso zero e primeiro andar para as exposições de arranque. O espaço destruído fica à vista, apenas suavizado e uniformizado por uma série de telas translúcidas.

No primeiro andar haverá uma espécie de antecipação do futuro MUDE, numa mostra com peças de nomes como Jean Prouvé, Le Corbusier e Charlotte Perriand, Charles & Ray Eames, Verner Panton e Marc Newson, no design de equipamento, e, na área de moda, de Pierre Balmain, André Courrèges, Paco Rabanne, John Galliano, Martin Margiela ou Yamamoto, peças que viverão em espaços encenados, com excertos de filmes, música e imagens de época. No piso zero, uma primeira colaboração já com um museu internacional, o Museu do Design de Zurique, para a mostra itinerante Ombro a Ombro, com cartazes políticos onde, em última análise, se mostra como se construiu a imagem pública de figuras do século XX como Hitler, Lenine, Che Guevara, Arnold Schwarzenegger, Yulia Timoshenko ou Barack Obama (em Lisboa a exposição integra um núcleo de cartazes nacionais da altura do Estado Novo à actualidade).

É uma filosofia de ocupação territorial com toda uma lógica por detrás: "Prende-se com uma convicção e uma vontade", diz-nos Bárbara Coutinho, apontada directora do museu em 2006 e a falar agora pela primeira vez sobre o projecto. Mas, por partes: a convicção: "Um museu não é um edifício, é uma colecção, uma equipa, um projecto, é uma programação que não tem que ter um edifício", explica-nos a antiga coordenadora do Serviço Educativo do Centro Cultural de Belém, onde ficou ligada à colecção do MUDE aquando da sua entrada lá, como depósito de Francisco Capelo, em 1998. É Bárbara Coutinho quem nos diz ainda que estas exposições recomeçam a contagem decrescente até à abertura final do museu: "Se temos uma colecção, um espaço, uma equipa e um projecto, temos o mais difícil." Trata-se de começar desde já a dar visibilidade e a rentabilizar o que, neste momento, não passa de um peso morto para a CML.

Sem retorno

No armazém onde está guardada, com climatização e segurança 24 horas por dia, a colecção, adquirida em 2002 pelo executivo camarário de Pedro Santana Lopes, custa mais de 200 mil euros por ano sem qualquer retorno, seja financeiro ou cultural. Com peças de mobiliário tão emblemáticas como o sofá vermelho inspirado nos lábios de Marilyn Monroe, do atelier Studio 65, a colecção custou à CML 6,6 milhões de euros em 2002, quando esta estava já à época avaliada em 10 milhões. Francisco Capelo pediu em troca voto presidencial sobre o destino do seu espólio. Hoje, diz-nos a directora do MUDE, e mesmo num mau momento de mercado, a valorização das obras é tal que apenas três delas fazem metade do valor pago pela CML. Hoje, a Mesa Arabesco, de 1949, de Carlo Mollino, valerá 1,7 milhões de euros, a chaise lounge Orgone Stretch, de 1963, de Marc Newson, cerca de 1,2 milhões, o bar Bar sur Patins, de 1937, de Paul Dupré-Lafon, chegará aos 800 mil euros e o conjunto secretária e cadeira Boomerang, de 1969, de Maurice Calka, aos 480 mil euros. Isto para não falar na valorização dos mais de mil coordenados de alta-costura - em muitos casos o conjunto completo visto em passerelle, a roupa, sim, mas também todos os adereços dos brincos aos sapatos, passando pela lingerie.

O compromisso, na altura da aquisição, ficou em protocolo: a criação de um museu em que a parte de design de equipamento que já era exposta no CCB se visse reunida com a secção de moda, um acervo único mas nunca exposto em Portugal. Em relação a isto, 2007 foi um momento de "desânimo" e "dúvida", reconhece Bárbara Coutinho. Até à visita ao antigo edifício do BNU, em que "voltou a haver sinais de que o museu era uma prioridade".

Ano de eleições

Não há compromissos políticos com uma data para o início de obras - apenas a vaga meta de 2011 -, nem de inauguração do museu. E 2009 é ano de eleições - camarárias, legislativas e europeias -, o que poderá supor mais indecisões e compassos de espera. Mas Bárbara Coutinho sublinha que, há sete anos, a decisão sobre a compra da colecção foi unânime: "Agora, há uma localização única no coração da cidade e a Baixa precisa de ser revitalizada. Se realmente se acredita nisto e que o museu pode dar um contributo, ele tem que ser encarado como um projecto suprapartidário, da cidade, ou, então, vai ser uma arma de arremesso e viver coxo, dependente de calendários políticos."

Até agora, diz esta responsável, a história do museu tem sido uma "história de resistência": "Tentar abrir este museu tem sido uma maratona: manter o passo, continuar a resistir e a correr." Agora o programa está feito - ou melhor, um novo programa, já que com a mudança de Santa Catarina para a Baixa, num espaço quatro vezes maior, teve que se começar o projecto conceptual do zero: "Santa Catarina pedia um projecto mais experimental, aqui a qualidade do espaço permite um museu mais institucional, mais desenhado para diferentes públicos, em que projectos mais experimentais e exposições temporárias coexistam com exposições mais longas da colecção."

Não há ainda um estudo económico profundo, mas os estudos prévios feitos pela equipa a trabalhar já desde 2006 apontam para a necessidade de um orçamento global de cerca de 2,5 milhões de euros anuais. Destes, segundo Bárbara Coutinho, no momento em que comece a funcionar em pleno, o museu deverá conseguir 40 por cento em receitas próprias vindas de mecenas, apoios pontuais, bilheteiras, concessões e aluguer de espaços.

Para Outubro deste ano está planeada a exposição É Proibido Proibir!, sobre o espírito contestatário das décadas de 1960 e 1970, para 2010 tem prevista uma mostra sobre a primeira geração de designers portugueses como António Garcia e Daciano Costa, cujos espólios deverão ser doados ou depositados no MUDE e está em preparação uma candidatura para em 2011 ser o MUDE a receber um encontro internacional de design. "Espero nessa altura já ter o museu aberto", diz Bárbara Coutinho.

Está previsto como o final feliz. Será?

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