Estado gastou 485 milhões em negócio que valia um quinto

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O SIRESP vai servir polícias e serviços de informação e emergência Paulo Pimenta

O Estado está a pagar por uma rede de comunicações do Ministério da Administração Interna um total de 485,5 milhões de euros, cinco vezes mais do que poderia ter gasto se tivesse optado por outro modelo técnico e financeiro.

A conclusão vem num relatório escrito em Maio de 2001 pelo primeiro grupo de trabalho que estudou a estrutura desta rede de comunicações e a baptizou de Sistema Integrado das Redes de Emergência e Segurança de Portugal (SIRESP). Este sistema permitirá aos elementos das várias forças de segurança, dos serviços de informação, da emergência médica e da protecção civil comunicarem entre si.

O presidente desse grupo de trabalho, Almiro de Oliveira - um especialista em sistemas e tecnologias da informação com mais de 30 anos de docência universitária -, não consegue encontrar justificação para a discrepância de números, até porque o equipamento que foi adjudicado tem quase as mesmas funcionalidades do que aquele que idealizou.

"No nosso relatório prevíamos um investimento inicial entre 100 e 150 milhões de euros. A isso acrescentávamos dez por cento por ano, que corresponderia ao custo de exploração", precisa o professor universitário, que recorda que hoje, face à desvalorização da tecnologia, os valores do investimento inicial rondarão entre 70 e 105 milhões de euros. Quanto aos dez por cento de custos de exploração, Almiro de Oliveira sustenta que estes não estariam sempre a somar ao investimento inicial.

"Dever de cidadania"

"Tínhamos como princípio base o princípio do utilizador-pagador, ou seja, cada entidade utilizadora do sistema pagaria uma factura de acordo com o seu tráfego. No fim de cada período, a entidade gestora ou tinha prejuízo ou lucro: se tivesse prejuízo esse valor somava-se ao investimento adicional, se tivesse lucro abatia", justifica o perito, consultor de empresas e da administração pública.


Almiro de Oliveira explica que só agora decidiu falar sobre o SIRESP porque nunca foi ouvido no inquérito aberto pelo Ministério Público (MP) à polémica adjudicação do sistema - feita pelo ex-ministro da Administração Interna Daniel Sanches, já quando o Governo de Santana Lopes se encontrava em gestão corrente. "Esperei três anos pelos trabalhos e conclusões das autoridades judiciais num Estado de Direito... Entendi falar agora por este ser um dever de cidadania", diz.

Ligações perigosas

O inquérito, motivado por suspeitas de tráfico de influências e participação económica em negócio na adjudicação do SIRESP a um consórcio liderado pela Sociedade Lusa de Negócios (SLN), foi arquivado em Março deste ano. O relatório final do grupo de trabalho de Almiro de Oliveira também consta do "dossier", mas ninguém lhe deu importância. Nem os relatórios da Polícia Judiciária nem o despacho de arquivamento, assinado pelo inspector do MP Azevedo Maia, fazem qualquer referência ao documento. Nenhum dos membros que fizeram parte do grupo foi ouvido.


No despacho de arquivamento, Azevedo Maia admite que não se esgotou a produção de prova, mas considerou que mais não seria necessário para a sua decisão. Quanto ao comportamento do ex-ministro Daniel Sanches, o inspector descreve os vários cargos que este tinha no grupo SLN antes de entrar para o Governo, mas remata dizendo: "Não resulta porém dos autos que, ao proferir o despacho de adjudicação do concurso para a criação e implementação do SIRESP já durante o Governo de gestão, isso tivesse algo a ver com as suas ligações àquelas empresas do grupo SLN", a quem o sistema seria então adjudicado por 538,2 milhões de euros.

O ministro António Costa veio depois decretar a nulidade da adjudicação com base num parecer da Procuradoria-Geral da República, mas decidiu voltar a renegociar o contrato com o mesmo consórcio liderado pela SLN (onde também entraram a PT Venture, a Motorola e a Esegur). Retirando algumas funcionalidades ao sistema, Costa acabaria por adjudicá-lo por 485,5 milhões de euros.

Polícias usam a maioria dos 5000 terminais

Neste momento são elementos da GNR e da PSP que estão a usar a maioria dos 5000 terminais de comunicações do SIRESP, uma rede que também permitirá, por exemplo, que elementos da Judiciária falem através de um aparelho parecido com um telemóvel com membros dos bombeiros, do SIS, da PSP, dos serviços prisionais ou do INEM, entre outros.


Actualmente, cada instituição tem um sistema de comunicação próprio, normalmente incompatíveis entre si, o que impede que em casos de catástrofe ou grandes eventos se faça uma boa articulação dos meios no terreno.

Segundo nota escrita enviada pelo Ministério da Administração Interna (MAI), existem neste momento 5000 terminais a funcionar em Lisboa, Santarém, Coimbra, Portalegre e Leiria. Ainda este ano acrescerão os utilizadores do município de Lisboa, ou seja, a protecção civil e os bombeiros locais, além da polícia da autarquia. Apesar de serem públicas algumas queixas das polícias quanto à dificuldade de comunicarem com os terminais dentro de algumas esquadras, o MAI garante que não têm surgido queixas operacionais sobre o SIRESP.

Segundo o ministério, já foram pagos 24 milhões de euros à sociedade que ficou de receber os montantes a pagar pelos serviços do consórcio vencedor, a SIRESP, SA. Os valores em falta deverão ser pagos, duas vezes ao ano, até 2020. Nessa data ficarão saldados os 485,5 milhões de euros por que o SIRESP foi adjudicado ao consórcio liderado pela Sociedade Lusa de Negócios. Quanto à instalação total do sistema no terreno, ela deve terminar bem antes, no final de 2009.

Segundo o planeamento da rede, estão neste momento em instalação as estações base (antenas) de Beja, Viseu, Évora e Metro de Lisboa. Se tudo correr como previsto, seguem-se, no segundo semestre deste ano, Porto, Aveiro, Setúbal, Madeira e o Metro do Porto, ainda em estudo. Em 2009 deverão ser instaladas antenas em Castelo Branco, Braga, Guarda, Faro, Viana, Bragança e Vila Real.

Na passada quinta-feira, o Governo aprovou o procedimento que permitirá a aquisição de um mínimo de 18 mil e um máximo de 40 mil equipamentos. O montante máximo definido para cada terminal é de 850 euros, ou seja, 15,3 milhões de euros para os 18 mil terminais rádio.

Cinco protagonistas num negócio que atravessou quatro governosAntónio Guterres

Em Agosto de 1999, um Conselho de Ministros presidido pelo então primeiro-ministro António Guterres estabelece que é vital garantir a operacionalidade entre as comunicações de emergência e segurança, considerando aconselhável a instalação de uma infra-estrutura única que sirva de suporte às várias polícias, protecção civil e outras entidades. A decisão restringe as soluções tecnológicas ao sistema Tetra. Em Janeiro de 2001 é criado um grupo de trabalho para estudar o futuro sistema, presidido por Almiro de Oliveira, que pressiona o Governo - então acusado de já ter a decisão parcialmente tomada, ao optar pelo Tetra - no sentido de alargar o leque de soluções tecnológicas.


Daniel Sanches

Magistrado do Ministério Público desde 1973, Sanches foi director adjunto da PJ entre 84 e 88. Passou ainda pela direcção do SEF entre 88 e 94, ano em que se tornou director do Serviço de Informações de Segurança. Em 2000 larga todos os cargos na administração pública para se tornar consultor e administrador de empresas no grupo Sociedade Lusa de Negócios (SLN), ao qual, a 23 de Fevereiro de 2003 - na qualidade de ministro da Administração Interna do Governo Santana Lopes e três dias depois de perder as eleições legislativas -, adjudica um contrato de 538,2 milhões de euros. No grupo SLN foi administrador da Pleiade, presidente da Vsegur e secretário da assembleia geral do BPN.


Manuel Dias Loureiro

Foi ministro da Administração Interna de Cavaco Silva, deputado do PSD e presidente da mesa do congresso, sendo um dos notáveis do partido. O seu nome aparece ligado desde o início ao negócio do sistema de comunicações do Estado, já que na altura em que Daniel Sanches adjudicou o SIRESP à SLN, Dias Loureiro era administrador não executivo do grupo. Fazendo questão de dizer que não tinha qualquer quota na "holding", nunca soube explicar que interesses defendia no grupo, já que não era um administrador de carreira. Por outro lado, foi, como Daniel Sanches, administrador da Pleiade e também esteve com este na Vsegur, antes de Sanches integrar o Governo de Santana Lopes.


José Oliveira e Costa

Ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de Cavaco Silva, Oliveira e Costa era o presidente do grupo SLN na altura em que Daniel Sanches fez a primeira adjudicação do SIRESP ao consórcio. A sua filha é presidente de uma das empresas do grupo, a Datacomp, que também faz parte do consórcio vencedor. Ambos foram constituídos arguidos no processo judicial arquivado em Março. O BPN, do grupo SLN, está neste momento a ser investigado na "Operação Furação", que avalia suspeitas de fraude fiscal e branqueamento de capitais. Há ainda outro inquérito a correr contra o BPN, que teve por base queixas de pessoas que integram o próprio banco. Oliveira e Costa afastou-se da presidência mas mantém-se na retaguarda.


António Costa

O ministro da Administração Interna de José Sócrates apanha o "dossier" SIRESP numa altura em que Daniel Sanches já tinha feito a adjudicação ao único consórcio que apresentou uma proposta, a SLN. António Costa pediu vários pareceres sobre o SIRESP e foi apoiado num, da Procuradoria-Geral da República, que decretou nula a adjudicação feita por Sanches. Como o concurso continuava válido não podia anulá-lo, mas podia simplesmente optar por não adjudicar o sistema à SLN, considerando que a proposta feita não era satisfatória. Não foi essa a sua decisão e voltou a renegociar o contrato, conseguindo descer o preço em cerca de 50 milhões de euros depois de prescindir de algumas funcionalidades do sistema.


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