Um país maluco de andorinhas

a Tenho andado de cabeça no ar, olhos levantados para o céu, verificando o horizonte com ansiedade. Mas nada, só pombos nos beirais e gatos pretos nos telhados. Porém, gente de sorte já me mensajou que, sim, que as avistaram, que elas estão a chegar. Vislumbrar a primeira andorinha do ano é uma alegria inexplicável, como o deslumbre de um dia sair à rua e descobrir os jacarandás em flor ou aquele prazer raro de trincar as primeiras cerejas do calor. Agora, cerejas já as há todo o ano, vindas daqui e dali, mas como as andorinhas ainda não se dão em estufa e só arribam quando muito bem lhes parece, esta ainda é uma daquelas felicidades inteiras que o ciclo anual das estações nos traz. Extraordinário, pois é sempre certa esta improbabilidade de avezinhas do tamanho de uma mão conseguirem percorrer milhares de quilómetros, de África até aqui, e acertarem tantas vezes com o lugar de onde partiram seis meses antes. Este país gosta de andorinhas. Estão protegidas por lei (316/89 e 75/91) e foram iconizadas pelo povo. Sempre me intrigou o costume de pendurar reproduções de andorinhas, em barro pintadas, pelas varandas e fachadas das casas portuguesas. Um dia, dei-me ao trabalho de andar a perguntar a historiadores, antropólogos e museus a origem do costume. Não fomos muito longe, que nestas manias populares de três vinténs os registos não abundam. Mas cheguei à conclusão de que as mais antigas que alguém tinha para exibir eram aquelas que Rafael Bordalo Pinheiro, entre couves e restante bestiário, lhe deu para moldar em finais do século XIX - como aquelas que em 1891 pendurou nos fios telefónicos que decoram a maravilhosa Tabacaria Mónaco, ainda hoje no Rossio em Lisboa (e alçando o olhar, no tecto já enevoado pelos anos, há também um bando delas pintadas a voar). Se terão sido criação original ou apenas recriação de luxo de outras que já por aí andavam é coisa que provavelmente nunca saberemos, mas certo é que estes ornamentos de exterior caíram no goto do povo e espalharam-se alegremente pelo país ao longo do século XX (sorte a nossa, há nações desgraçadas a quem isto aconteceu com anões atrozes, de jardim). Dizem que a moda prosperou nas décadas da emigração, pelos anos 60 e 70, numa identificação simples entre gente e aves viajantes. E contam ainda que, no Brasil, uma casa com andorinhas de cerâmica na parede é casa de portugueses, certo e sabido.
Ao contrário do galo de Barcelos, que apesar das origens populares se tornou emblema nacional redesenhado e imposto pelo regime, as andorinhas alcançaram o estatuto de ícones adoptados e amados pelo povo. Quiséramos nós ser andorinhas, aves negras de um país onde o negro é cor (como dizia uma publicidade antiga do vinho do Porto em França), asas valentes, viajantes, saudosas, trabalhadoras, alegres, belas, doidas e livres. Como escreveu Alexandre O"Neill: "Um país maluco de andorinhas / tesourando as nossas cabecinhas /de enfermiços meninos, roda-viva / em que entrássemos de corpo e alegria!"

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