Fialho de Almeida nasceu há 150 anos

O seu nome impõe-se no meio lisboeta com a publicação mensal de Os Gatos

Celebra-se precisamente hoje o 150.º aniversário de nascimento do escritor Fialho de Almeida. Para muitos, um ilustre desconhecido, desses que servem para preencher o calendário pouco animado da nossa vida cultural. A efeméride justifica, como é habitual nestes casos, um programa de comemorações organizado pela Câmara da Vidigueira, de 4 a 7 deste mês, ao qual irá associar-se, dentro de dias, a Câmara de Lisboa. Mais do que uma simples rotina na vida autárquica, estas comemorações poderão, no entanto, significar uma oportunidade de reencontro com um escritor envolto há várias décadas em silêncio, mas que, curiosamente, tem vindo nestes últimos anos a despertar um interesse que transcende cada vez mais o meio académico. Chegados a este ponto, o leitor do PÚBLICO interroga-se: quem foi Fialho de Almeida? Qual a razão de comemorar, hoje, a data do seu nascimento?
José Valentim Fialho de Almeida nasceu em Vila de Frades a 7 de Maio de 1857 e faleceu em Cuba, Alentejo, a 4 de Março de 1911. De origem social humilde, Fialho viverá a sua infância no Baixo Alentejo, de onde partirá, em 1886, para Lisboa para prosseguir estudos. O seu trajecto académico será, no entanto, atribulado. Trabalhando como ajudante de farmácia para suprir as dificuldades económicas da família sobrevindas com a morte do pai, frequenta o Liceu Francês, a Escola Politécnica e conclui o Curso de Medicina, na Escola Médico-Cirúrgica, em 1885. À actividade clínica, que só fugazmente viria a exercer, preferirá Fialho a actividade jornalística e literária, colaborando em vários jornais e revistas da época. Funda, em 1880, a revista literária A Crónica e dirige, anos mais tarde, A Ilustração (Lisboa). Casa em 1893 com D. Emília Pego, enviuvando dez meses depois. Entre as suas obras literárias, merecem destaque Contos (1881), A Cidade do Vício (1882) e O País das Uvas (1893).
O nome de Fialho impõe-se no meio lisboeta com a publicação mensal, entre Agosto de 1889 e Janeiro de 1894, de Os Gatos, uma série de "folhetos" panfletários de "inquérito à vida portuguesa" que constituem "uma das mais impiedosas e sombrias análises do Portugal moderno e contemporâneo" (Aguiar e Silva). A acutilância do seu olhar, aliada à violência da palavra, provocaria um autêntico escândalo na sociedade do seu tempo. Crítico feroz da monarquia, mas também da República, pagou ainda em vida o preço desta heterodoxia: poucos dias antes de morrer, vê-se proibido de escrever no jornal brasileiro Correio da Manhã, onde as críticas ao Governo republicano vinham subindo de tom, e ameaçado de expulsão do país. A hipótese de suicídio que continua a envolver as circunstâncias da sua morte parece indissociável deste silenciamento ou "homicídio" simbólico cujas consequências ainda hoje se fazem sentir.
A atitude iconoclasta do panfletário, o riso de gárgula escarninha, o anarquismo ideológico demarcam-no quer do projecto reformista da Geração de 70 (nomeadamente de As Farpas), quer do Realismo/Naturalismo oitocentista que Eça representa. Mas o que há de mais inovador, diria mesmo, "revolucionário", em Fialho manifesta-se, sobretudo, na sua concepção estética e na sua prática literária.

Em primeiro lugar, nas suas páginas de crítica de arte. O papel pioneiro de Fialho, como reconhecerá J. Augusto França, manifesta-se na leitura e na valorização das artes plásticas do seu tempo, mas também na revelação de um "espírito admiravelmente antenado" (C. Pimpão) e sensível à modernidade artística europeia. Fialho denuncia o anacronismo que define o estado da arte em Portugal, a "atrofia da imaginação" e o "industrialismo artístico" em que se convertera a pintura naturalista, ao mesmo tempo que se mostra atento à novidade que a pintura impressionista então inaugurava e da qual será um dos únicos divulgadores entre nós. A ruptura com uma estética da imitação, patente nos "kodaks" naturalistas, a atenção à multiplicidade das sensações modernas, a valorização da emoção e do "eu sonhante" que encontramos nestas páginas anunciam um experimentalismo estético que não se confundirá com a novidade impressionista que Fialho considera também ameaçada de esgotamento. Sem se ter em conta este percurso da pintura analisado por Fialho, a sua inquietação estética aí patente, dificilmente se pode compreender a modernidade de pintores como Amadeo de Souza-Cardoso. Em segundo lugar, Fialho merece ser lido, hoje, pela novidade da sua escrita. Pela visão do Fialho diurno, poeta-paisagista maravilhado, mais do que com a "beleza colorida do mundo" (H. Buescu), com a beleza física da palavra. Essa mesma que viria a fazer "estremecer" Bernardo Soares. Mas também, e talvez sobretudo, pela "tinta delirante" do Fialho nocturno, agitado pelos fantasmas que nele habitam e a sua escrita procura dizer. Uma escrita que ele próprio define como "uma alucinação doida e disforme", fragmentária, como as "visões interiores" que ela convoca. Escrita onde ecoam as visões de Goya, mas também, acrescentaríamos, Ensor, Grosz ou Meidner. A vocação expressionista da escrita fialhiana confirma não apenas a modernidade deste escritor, como faz igualmente dele um marco entre nós cuja influência viria a ser decisiva para escritores como Raul Brandão: como notou Eduardo Lourenço, "na fraca medida em que existiu [o nosso "expressionismo], só a partir de Fialho podemos detectar a sua presença". O grotesco que caracteriza a sua escrita, enquanto forma de dizer o indizível, de expressar o inexpresso, confronta-nos não apenas com os nossos próprios medos e incertezas, mas com o colapso da razão no mundo moderno que é, afinal, o nosso.
Por último, pelo ensaio de fragmentação interior que encontramos em A Tragédia de Um Homem de Génio Obscuro e nos anuncia a aventura pessoana da heteronímia, mas também pelo desencanto que assomará no olhar de Bernardo Soares. Não serão estas razões suficientes para o celebrarmos hoje? Professora universitária

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