Um professor deve ensinar todas as disciplinas até ao 6.º ano?

Vários países com melhor desempenho escolar que nós privilegiam a especialização por anos de ensino e por disciplinas

O ritmo com que o Ministério da Educação anuncia medidas atrás de medidas tem um efeito curioso: ninguém discute as implicações que cada uma delas e todas elas, no seu conjunto, podem ter no nosso sistema educativo. Uma das últimas medidas anunciadas consistiu em aproveitar o tratado de Bolonha para organizar a formação de professores de modo a que a habilitação ou profissionalização abranja o 1.º e 2.º ciclos do ensino básico. Quer isto dizer que um mesmo professor vai passar a poder ensinar todas as disciplinas nucleares - Língua Portuguesa, Matemática, Estudo do Meio/História, e Ciências - desde o 1.º até ao 6.º ano de escolaridade. A discussão sobre se a formação de professores ao nível do ensino básico deve ser generalista ou, ao invés, especializada tem lugar nas Ciências da Educação. Alguns académicos defendem que uma profissionalização generalista nos primeiros anos é melhor porque garante a interdisciplinaridade e um acompanhamento mais personalizado da criança. Outros argumentam que a especialização numa determinada área do conhecimento proporciona aos professores o conhecimento mais profundo necessário para melhor ensinar e, portanto, para os alunos aprenderem melhor. Alguns estudos, nomeadamente o Third Internacional Math and Science Study (TIMMS), recolheram informações sobre a formação - especialista ou generalista - dos professores dos vários países participantes. Com base nos resultados de alunos do 4.º ano, tanto em Matemática como em Ciências, não foi possível concluir qual era o tipo de formação associada ao melhor ou pior desempenho dos alunos. No entanto, dados compilados pelo Centro de Investigação da Universidade de Glasgow revelam que, na maioria dos países da Europa, a formação de professores para o 5.º e o 6.º anos é especializada e que, mesmo em anos anteriores, uma formação especializada é comum. A natureza desta especialização e o ano em que começa é distinta de país para país.
Por exemplo, em França, Inglaterra e República Checa, os alunos começam a ter professores diferentes para diferentes disciplinas no 6.º ano. Nos países em que a formação generalista domina até ao 6.º ano, há um outro tipo de especialização: o mesmo professor ensina todas as disciplinas apenas durante dois anos. Ou seja, em vez de acompanhar a mesma turma durante quatro ou seis anos, o professor acompanha os alunos apenas durante dois anos. Na prática, o que acontece é que o professor se especializa no ensino dos dois primeiros anos ou no terceiro e quarto. O modelo finlandês funciona assim, com uma particularidade importante. A formação dos professores generalistas até ao 6.º ano contempla um plano curricular com uma concentração ou um major, como é designado nos EUA. Durante a sua formação, os candidatos a professores têm de completar um curso de estudos que pode concentrar-se numa área disciplinar como a Matemática ou em matérias científicas e pedagógicas consideradas essenciais para se especializar, por exemplo, nos dois primeiros anos de ensino.
No caso finlandês, o país com melhor desempenho em testes internacionais, o facto de os professores se especializarem nos dois primeiros anos de escolaridade pode ter um impacto muito positivo, pois a iniciação à leitura e à escrita é a área principal a privilegiar. Como resumiu um dos cientistas participantes no último painel sobre o ensino da leitura nos Estados Unidos, ensinar a ler é uma ciência complexa! No caso dos Estados Unidos é típico haver uma coadjuvação por áreas a partir do quinto ano, com um professor a ensinar língua materna e História ou Ciências Sociais e outro a ensinar Matemática e Ciências.
Assim, mesmo em modelos menos especializados por disciplinas ou áreas curriculares, existe especialização, pois, quando um professor generalista ensina todas ou quase todas as disciplinas durante um ou dois anos, ele acaba por se tornar efectivamente num especialista nesses anos. Esta prática permite-lhe acumular um conhecimento curricular e uma experiência pedagógica específica que seria muito mais difícil de atingir se acompanhasse os alunos durante quatro ou seis anos. Com efeito, não só o professor tem a oportunidade de se especializar durante a sua formação, como se vai especializando ao longo da sua carreira, pois ensina os mesmos anos durante um período de tempo longo. E, como seria de esperar, vários estudos mostram que um dos factores que mais influenciam o sucesso escolar dos alunos é a experiência do professor. Em geral, um professor consegue melhores resultados à medida que se torna mais experiente.
Os dados são inequívocos. Primeiro, não se pode concluir que uma formação generalista contribua para acabar ou sequer mitigar o insucesso escolar. Segundo, vários países com muito melhor desempenho escolar que Portugal, entre eles a Finlândia, privilegiam a especialização tanto por anos de ensino como por disciplinas. Em Portugal, um modelo de formação de professores generalista que mantém o acompanhamento dos alunos por quatro ou seis anos sem delinear uma área de estudos especializada constitui um potencial agravamento do desastre que já é o nosso sistema de ensino.
Professora de Ciências de Educação do ensino superior

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