Torne-se perito

Gorringe pode ser uma estação de serviço no caminho para os Açores

Testar uma hipótese sobre a chegada de muitas espécies às ilhas atlânticas foi o principal objectivo científico da expedição ao banco submarino, a cerca de 130 milhas naúticas do cabo de São Vicente

Frederico Almada procura desesperadamente cabozes, peixes que vivem no fundo do mar. Gonçalo Calado está mais virado para os nudibrânquios, que é como quem diz lesmas-do-mar. Mas se um deles se limita a avistar nas águas do Gorringe os peixes tão desejados quanto fugidios, o outro tem a sorte de as lesmas pachorrentas não terem maneira de se escapar das mãos dos mergulhadores. Lesma avistada é lesma trazida para bordo do Creoula e logo admirada por muitas cabeças humanas debruçadas em seu redor. Algumas fazem soltar um "aaah!" de fascínio, com o seu laranja de ferir os olhos. Há um motivo para os biólogos Frederico Almada e Gonçalo Calado, os coordenadores operacionais da expedição da Universidade Lusófona ao Gorringe, andarem em mar alto atrás de cabozes e lesmas-do-mar (e de outros peixes, esponjas e tudo o que vier à rede). Querem resolver um mistério: como é que a fauna dos Açores, que é hoje principalmente tropical, foi parar ao arquipélago, nos últimos 18 mil anos?
Existe também um motivo para se falar de 18 mil anos. O banco de Gorringe era uma grande ilha com duas grandes montanhas: o pico Ormonde e o pico Gettysburg, a umas 20 milhas náuticas um do outro. Muita da água dos oceanos encontrava-se congelada, pelo que o nível do mar estava cerca de 200 metros mais baixo do que hoje.
Tanto frio extinguiu muitas espécies e empurrou outras para os trópicos. Mas quando a última grande glaciação chegou ao fim, há 14 mil anos, a água tapou o Gorringe, que agora é um monte submarino. Senão integraria o rol das ilhas portuguesas.
"A maior parte das espécies tropicais dos Açores tem vindo a regressar há pouco tempo em termos evolutivos - só há 14 mil anos", explica Frederico Almada.

Um apeadeiro no AtlânticoTêm uma hipótese. Depois da última grande glaciação, as espécies seguiram dois caminhos: subiram ao longo da costa portuguesa em direcção a norte, ao mesmo tempo que, de apeadeiro em apeadeiro no meio do Atlântico, chegaram aos Açores.
O Gorringe pode ser assim uma das alpondras, como gostam de lhe chamar os cientistas, que permitiram a passagem das espécies entre o continente e a Madeira, as Canárias e os Açores. "As espécies tropicais dos Açores vieram, possivelmente, da Madeira. E as da Madeira vieram das Canárias, e as das Canárias da costa africana", diz Frederico Almada.
Esta hipótese foi apresentada pela primeira vez em 2001, pela equipa de Vítor Almada, do Instituto Superior de Psicologia Aplicada, em Lisboa, na revista Global Ecology & Biogeography. Baseou-se na distribuição geográfica de espécies de cabozes. Por transitarem entre ilhas quando são larvas, arrastadas pela corrente, e morrerem em mar aberto, são bons para testar a hipótese do Gorringe como alpondra.
Noutras áreas do saber, o Gorringe, descoberto em 1875 por Henry Gorringe, comandante do navio norte-americano Gettysburg, é famoso: a partir da década de 60 do século XX foi tido como a origem do terramoto que arrasou Lisboa em 1755, mas nos últimos anos esta hipótese tem sido fortemente contestada.
Agora, Frederico Almada e Gonçalo Calado procuram ter o ADN como prova de que o banco submarino funcionou, e continua a funcionar, como as pedras de passagem de um lago na dispersão das espécies para distâncias longas. Precisam dos esquivos cabozes, das lesmas-do-mar e de tudo o que aparecer, para comparar a afinidade genética das mesmas espécies apanhadas em diversos locais.
"Estamos a ver se todas as provas apontam para o mesmo percurso biogeográfico, porque não temos uma máquina do tempo para ver isto a acontecer", diz Frederico Almada. "Queremos saber se o Gorringe é a estação intermédia, sendo os Açores a estação terminal." t.F.

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